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A R ESPEITO DA T RADUÇÃO

No documento O Capital - Volume I (páginas 118-122)

DE O CAPITAL

T

raduzir O Capital é uma tarefa incomum, como é incomum a própria obra. Trata-se de um dos textos mais importantes de toda a hu- manidade, sem dúvida o mais lido, o mais debatido, o mais criticado e o mais endeusado dos textos científicos. É possível que também seja o mais traduzido. Por isso tudo, vertê-lo mais uma vez apresenta certos dilemas que uma tradução comum não apresenta. Informar ao leitor mais exigente o modo como esses dilemas foram resolvidos, na presente tradução para o português, torna-se assim imprescindível, o que justifica esta nota.

A primeira questão é obviamente a fidelidade ao original. Cada tradução não pode deixar de ser também interpretação, na medida em que não há correspondência perfeita entre os vocábulos e a sintaxe das diferentes línguas. Cada autor luta com as limitações de sua própria língua para exprimir com a máxima perfeição seu pensamento. Que Marx mesmo travou essa luta contra as insuficiências do alemão, língua particularmente rica e flexível, provam as inúmeras expressões em inglês, francês, latim, grego etc. que se encontram em seus escritos, particularmente em O Ca-

pital. Quando o traduzir determinados trechos implica interpretar, colo-

ca-se a questão: o que o autor de fato queria dizer? Embora nesses mo- mentos a convicção do tradutor tenha seu peso, ele precisa seguir certas normas para que suas opções não sejam aleatórias ou inconsistentes. (Ver a esse respeito o “Apêndice” de F. Kothe, neste volume.)

Uma saída cômoda seria tornar a tradução a mais literal possível, escolhendo as palavras e a construção das frases de modo a reproduzir com a maior perfeição original. Só que essa maneira de proceder al- gumas vezes obscurece ou deturpa mesmo o sentido, sobretudo nas passagens mais complexas e mais densas de significado. Marx mesmo criticou o tradutor do volume I de O Capital para o francês, por ter sido literal demais.35 Para Marx, traduzir significa interpretar em sen-

tido amplo, o objetivo maior sendo o de revelar o sentido essencial do enunciado, sem manter sempre respeito absoluto à forma. Ele mesmo procedeu assim em numerosas citações que apresenta vertidas para o alemão. Safar-se, portanto, das dificuldades apelando à autoridade do dicionário seria uma fuga à responsabilidade de apresentar ao leitor em língua portuguesa um texto fiel ao espírito do seu autor e não apenas a sua forma.

Esse dilema se desdobra em outro: simplificar a exposição para torná-la mais acessível ao leitor comum ou manter a magnífica com- plexidade do texto original? É preciso notar que Marx mesmo se esforçou ao máximo para ser claro, mantendo ao mesmo tempo a elegância do estilo, em si erudito. Daí ele freqüentemente apresentar a mesma idéia em seus vários desdobramentos tendo em vista sua completa elucidação. As primeiras traduções de O Capital, feitas ainda em vida de Marx e de Engels, tenderam a certa simplificação, o que se justificava, ao ver deles, pela necessidade de apresentar ao público um conjunto de noções e uma forma de interpretar a realidade que então eram inteiramente novos e inusitados. Hoje, cem anos após a morte de Marx, a situação é completamente outra. O marxismo é amplamente divulgado e estu- dado, impregnando de mil modos não só as teorias econômicas, sociológicas, políticas, antropológicas etc. mas também a literatura, o teatro, a poesia, a linguagem jornalística e até mesmo o linguajar comum. Conseqüente- mente, o público está mais bem preparado do que há um século para penetrar nos meandros do pensamento de Marx, de modo que já não se justifica fazer uma tradução simplificadora de sua obra máxima.

Nesta tradução, deu-se prioridade à clareza do texto, sem, no entanto, tentar simplificá-lo. Procurou-se, sempre que possível, traduzir tanto a forma quanto o conteúdo do texto original. Ao mesmo tempo que se procurou a máxima fidelidade ao original, tentou-se recriar a sua beleza literária, no espírito da língua portuguesa. Esse propósito mostrou-se menos difícil de realizar do que se pensava a princípio. A explicação provável para isso é que, com a difusão do marxismo, o estilo da língua portuguesa foi, em alguma medida, influenciado pelas formas peculiares de Marx exprimir seu pensamento. O português que se pratica no Brasil no final do século XX é, sem dúvida, influenciado pelas grandes correntes universais de pensamento, que aqui encontram também sua ressonância. Cabe lembrar que textos primorosos, inspi- rados em Marx, já foram produzidos por autores em língua portuguesa. Esses textos fazem parte da cultura viva do país e contribuem para moldar-lhe a língua. De modo que o nosso português é hoje um ins- trumento bastante adequado para expressar a grande obra de Marx, inclusive quanto a sua qualidade literária. Muito do que é belo em alemão pode ser devidamente apreciado em português.

Passando agora aos aspectos mais técnicos da tradução, convém informar que o original adotado foi o publicado na coleção “Karl Marx.

Friedrich Engels Werke”, volumes 23, 24 e 25, da editora Dietz Verlag, Berlim, 1977, que reproduz a 4ª edição de O Capital, revista e publicada por Engels, em 1890. Os prefácios publicados nesse volume mostram que essa edição é a mais completa e a mais autorizada da obra. Na tarefa de interpretar e desentranhar passagens difíceis ou obscuras, valemo-nos de traduções de O Capital em outras línguas, mas sempre dando prioridade ao original alemão. Esta tradução não é de modo algum uma tradução de traduções, mas seria faltar à verdade negar ou silenciar o fato de que, em vários momentos, soluções encontradas por tradutores para outras línguas foram úteis para que pudéssemos encontrar as mais adequadas em português. Confessamos com gratidão essa dívida e esperamos que esta tradução sirva, por sua vez, de apoio a futuras traduções de O Capital para outras línguas.

Adotou-se como norma utilizar as expressões marxistas vertidas ao português por economistas, sociólogos, filósofos etc. e de uso corrente, de modo a facilitar a compreensão do texto. Pareceu-nos que seria um purismo injustificável retraduzir por exemplo Mehrwert por mais-valor (em analogia com mais-trabalho e mais-produto), quando a expressão

mais-valia é o vocábulo consagrado em português. Não obstante, um

grande número de novas expressões — tais como produto-valor, obje- tividade do valor, forma-valor, mercadoria monetária, giro monetário etc. — tiveram que ser criadas. É preciso notar que boa parte dos termos técnicos de Economia, utilizados por Marx, são correntes na literatura econômica moderna e têm expressões portuguesas já consa- gradas, que foram, por isso, sistematicamente adotadas na tradução. Em suma, a invenção de novas expressões em português foi restrita ao indispensável, procurando-se adequá-las à terminologia corrente.

Como já mencionamos, Marx, ao citar autores em outras línguas que não o alemão, nem sempre foi completamente fiel ao original. Entendemos que não nos cabia “corrigi-lo”. Todas as citações são tra- duzidas da versão alemã de Marx. Em alguns casos foram acrescentadas “notas do tradutor” em que se apresentam traduções mais literais dos referidos textos, de modo que o leitor possa apreciar a maneira de Marx interpretá-los.

Outro pormenor não desprezível é que o volume I de O Capital tinha, em sua 1ª edição, numerosos trechos e vocábulos em itálico. Em edição posterior, Marx retirou os grifos. Pedro Scaron, tradutor de O

Capital para o espanhol36 alega que isso se fez para reduzir os custos

de impressão. Nas edições posteriores à primeira, do volume I, o texto foi em parte substancialmente alterado por Marx. Nesta parte do texto, assim como nos volumes de O Capital o método de grifar extensamente não foi utilizado. Resolveu-se por isso seguir nesse particular a 4ª edição,

que não contém os grifos, de modo a preservar a unidade de estilo da obra como um todo.

Finalmente, queremos assinalar que não se pretende que esta tradução de O Capital seja definitiva ou perfeita. É provável que con- tenha falhas e aspectos criticáveis. Pretendemos apenas ter realizado um trabalho consciencioso, visando corresponder às necessidades de um público de estudantes e estudiosos já consideravelmente sofisticado e exigente. Traduzir O Capital é uma aventura trabalhosa e até certo ponto esgotante, mas altamente compensadora em termos de satisfação e crescimento intelectual. Esperamos que os leitores participem da mesma com igual proveito.

São Paulo, 19 de maio de 1983

Flávio R. Kothe Paul Singer Regis Barbosa

No documento O Capital - Volume I (páginas 118-122)