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P REFÁCIO DA Q UARTA

No documento O Capital - Volume I (páginas 146-152)

EDIÇÃO ALEMÃ

A

quarta edição me obrigou a estabelecer uma versão tão defi- nitiva quanto possível do texto e das notas. Sobre como procurei fazê-lo, algumas palavras:

Depois de confrontar mais uma vez a edição francesa e as notas manuscritas de Marx, tomei daquela alguns acréscimos para o texto alemão. Encontram-se à p. 80 (na terceira edição, p. 88), p. 458 a 460 (terceira edição, p. 509-510), p. 547-551 (terceira, p. 600), 591 a 593 (terceira, p. 644) e p. 596 (terceira, p. 648) na nota 79. De conformidade com as edições francesa e inglesa, incorporei ao texto (quarta edição, p. 461 a 467)65 a longa nota sobre os trabalhadores das minas (terceira

edição, p. 509 a 515). As outras pequenas modificações são de natureza puramente técnica.

Acrescentei ainda algumas notas explicativas, principalmente onde a mudança das circunstâncias históricas parecia exigi-lo. Todas essas notas adicionais estão colocadas entre colchetes e assinaladas com minhas iniciais ou com D. H.

Uma revisão completa das numerosas citações tornou-se neces- sária devido à edição inglesa surgida nesse ínterim. Para essa edição, a filha mais jovem de Marx, Eleanor, deu-se ao trabalho de comparar com os originais todas as passagens citadas, de modo que o próprio texto das citações de fontes inglesas, as mais numerosas, não aparecesse numa retradução do alemão, mas com o texto inglês original. Esse texto estava, portanto, a meu dispor para a quarta edição. Assim foram descobertas diversas pequenas imprecisões. Indicações erradas de pá- ginas, em parte cometidas ao copiar dos cadernos, em parte devidas a erros de impressão acumulados ao longo de três edições. Aspas ou reticências mal colocadas, como é inevitável num volume tão grande de citações tiradas de cadernos de notas, aqui e ali a tradução menos

feliz de uma palavra. Certas citações tiradas dos velhos cadernos de Paris, de 1843 a 1845, quando Marx não sabia inglês e lia os econo- mistas ingleses em traduções para o francês, casos em que a dupla tradução acarretava leve mudança de colorido, por exemplo, com Steuart, Ure e outros — quando então o texto inglês tinha de ser usado. E todos os casos semelhantes de pequenos lapsos e inexatidões. Quando agora se compara a quarta edição com as anteriores, pode-se ver que todo esse trabalhoso processo de correção nada modificou no livro que mereça menção. Apenas uma única citação não pôde ser en- contrada, a extraída de Richard Jones (quarta edição, p. 562, nota 47);66 Marx provavelmente se enganou ao transcrever o título do livro.

Todas as demais conservam todo o seu poder comprobatório ou o re- forçam na atual forma exata.

Aqui sou forçado, porém, a voltar a uma velha história. Só conheço um caso em que a correção de uma citação de Marx foi posta em dúvida. Como continuou, porém, a circular mesmo depois da morte de Marx, não posso deixar de aventá-lo aqui.67

Em 7 de março de 1872, apareceu no Concórdia de Berlim, órgão da União dos Fabricantes Alemães, um artigo anônimo: “Como Karl Marx cita”. Nele se afirma, com um gasto enorme de indignação moral e de expressões nada parlamentares, que teria sido falsificada (na sau- dação inaugural da Associação Internacional dos Trabalhadores, de 1864,68 e repetida em O Capital I, p. 617, quarta edição e p. 670-671

da terceira edição)69 a citação extraída do discurso pronunciado a 16

de abril de 1863 por Gladstone sobre o orçamento. Nenhuma palavra da frase “este aumento embriagador de riqueza e poder (...) está to- talmente limitado às classes possuidoras” constaria no relatório este- nográfico (quase-oficial) de Hansard.

“Essa frase não consta em parte alguma do discurso de Gladstone. Exatamente o contrário é que é dito.” (Com negrito) “Formal e materialmente, Marx mentiu acrescentando essa frase.”

Marx, a quem esse número do Concórdia foi enviado no mês de maio seguinte, respondeu ao Anônimo no Volksstaat de 1º de junho. Como não se lembrava mais que relato jornalístico havia citado, limitou-se, pri- meiro, a comprovar a mesma citação em duas publicações inglesas e citar, em seguida, o relato do Times, segundo o qual Gladstone afirma:

66 Ver t. II. (N. do E.)

67 Engels ocupou-se com o desmascaramento de reiterados ataques difamatórios por parte de representantes da burguesia, no sentido de que Marx teria falsificado uma citação de um discurso de Gladstone de 16 de abril de 1863, num trabalho especial: “Quando à questão de Brentano contra Marx por causa de pretensa falsificação de citação”. Esse trabalho apareceu em Hamburgo, em 1891. Ver v. 22 da edição MEW. (N. da Ed. Alemã.) 68 Ver v. 16 da edição MEW, p. 3-13. (N. do E.)

“That is the state of the case as regards the wealth of this country. I must say for one, I should look almost with apprehension and with pain upon this intoxicating augmentation of wealth and power, if it were my belief that it was confined to classes who are in easy circunstances. This takes no cognizance at all of the condition of the labouring population. The augmentation I have described and which is founded, I think, upon accurate returns, is an augmentation entirely confined to classes of property”.70

Gladstone afirma aqui, por conseguinte, que lastimaria se assim fosse, mas que é assim: que esse aumento embriagador de riqueza e poder está totalmente limitado às classes possuidoras. E quanto ao quase-oficial Hansard, Marx acrescenta:

“Aqui, Mr. Gladstone, em edição posteriormente ajeitada, foi bastante esperto para fazer sumir a passagem que seria compro- metedora na boca de um Chanceler do Tesouro inglês. Esse é, aliás, um consagrado costume parlamentar britânico e, de modo algum, uma invenção do pequeno Lasker contra Bebel”.71

O Anônimo se irrita cada vez mais. Desprezando as fontes de segunda mão em sua resposta no Concórdia de 4 de julho, sugere envergonhadamente que é “costume” citar discursos parlamentares se- gundo o registro estenográfico; mas também o relato do Times (no qual está a frase “mentirosamente acrescentada”) e o de Hansard (no qual ela não está) “coincidem inteiramente no plano material”, e mesmo o relato do Times conteria “diretamente o oposto daquela famigerada passagem do discurso inaugural”, com o que o homem cuidadosamente silencia que, ao lado desse pretenso “oposto”, ele contém expressamente “aquela famigerada passagem”. Apesar de tudo isso, o Anônimo sente que está encalhado e que só um novo subterfúgio pode salvá-lo. Por- tanto, enquanto ele criva seu artigo “atrevidamente mentiroso”, como foi mostrado há pouco, de edificantes xingamentos como “Mala fides”,72

70 Essa é a situação do caso no que concerne à riqueza deste país. Devo dizer por mim que eu veria com apreensão e com dor esse embriagador acúmulo de riqueza e poder se eu acreditasse estar ele confinado às classes abastadas. Isso não toma absolutamente conhe- cimento das condições da população trabalhadora. O aumento que acabo de descrever e que se fundamenta, creio, em informes exatos, é um aumento inteiramente confinado às classes proprietárias. (N. dos T.)

71 Na sessão parlamentar de 8 de novembro de 1871, o deputado liberal nacionalista Lasker declarou, numa polêmica contra Bebel, que se os trabalhadores alemães pusessem na cabeça imitar o exemplo dos integrantes da Comuna de Paris, o honesto proprietário burguês iria “matá-lo a porretaço”. O orador não se decidiu, porém, a publicar essas formulações e já no registro estenográfico constavam, em vez de “matá-lo a porretaço”, as palavras “subju- gá-los com poder próprio”. Bebel descobriu essa falsificação. Lasker tornou-se objeto de escárnio entre os operários. Por causa de sua estatura diminuta, deu-se-lhe o apelido de “pequeno Lasker”. (N. da Ed. Alemã.)

“desonestidade”, “assertiva mentirosa”, “aquela citação mentirosa”, “mentira deslavada”, “uma citação completamente forjada”, “esta fal- sificação”, “simplesmente infame” etc., considera necessário deslocar a questão para outro terreno e promete, portanto, “explicar num próximo artigo o sentido que nós (o não-”mentiroso" Anônimo) damos ao conteúdo das palavras de Gladstone". Como se essa sua opinião sem autoridade tivesse o mínimo a ver com a coisa! Esse segundo artigo está no Con-

córdia de 11 de julho.

Marx respondeu mais uma vez no Volksstaat de 7 de agosto, trazendo os relatos do Morning Star e do Morning Advertiser 73 de 17

de abril de 1863. De acordo com ambos, Gladstone diz que veria com preocupação etc. esse aumento embriagador de riqueza e poder se o acreditasse limitado às classes realmente abastadas (classes in easy

circunstances). Mas que esse aumento estaria realmente limitado a

classes possuidoras de propriedades (entirely confined to classes pos-

sessed of property). Portanto, também esses relatos reproduzem de modo

literal a frase considerada “mentirosamente acrescentada”. Além disso, confrontando os textos do Times e de Hansard, Marx novamente cons- tatou que nos relatos de três jornais, independentes entre si, publicados na manhã seguinte, estava a mesma frase como tendo sido realmente dita, faltando ela no texto de Hansard porque revisto segundo o notório “costume”, ou seja, Gladstone “escamoteou-a posteriormente”, segundo as palavras de Marx, que, para concluir, declarava não ter mais tempo para perder com o Anônimo. Este parecia também estar saturado; ao menos não foram enviados a Marx números posteriores do Concórdia. Com isso, a coisa parecia estar morta e enterrada. Desde então chegaram-nos, no entanto, uma ou duas vezes, por meio de pessoas que tinham relações com a Universidade de Cambridge, rumores quanto a um inominável crime literário que Marx teria cometido em O Capital; mas, apesar de todas as nossas investigações, nada se conseguiu apurar de concreto. De repente, em 26 de novembro de 1883, oito meses depois da morte de Marx, apareceu no Times uma carta, oriunda do Trinity College, Cambridge, e assinada por Sedley Taylor, na qual o homen- zinho, que mexe com o tipo mais inofensivo de cooperativismo, de súbito, inoportunamente, lançou-nos luz afinal não só sobre a boataria de Cam- bridge, como também sobre o Anônimo do Concórdia:

“O que parece extraordinário ao extremo”, diz o homenzinho do Trinity College, “é ter sido reservado ao prof. dr. Brentano (na ocasião, em Breslau, hoje, em Estrasburgo) (...) revelar a

Mala fides que, evidentemente, ditou aquela citação do discurso

de Gladstone na oração” (inaugural). “O sr. Karl Marx, que (...) procurou defender a citação, teve a audácia de afirmar — em

meio aos estertores mortais a que rapidamente o lançaram os ataques magistrais de Brentano — que o sr. Gladstone teria re- tocado o relato do seu discurso no Times de 17 de abril de 1863, antes de ser publicado em Hansard, para fazer sumir uma pas- sagem que seria um tanto comprometedora para um Chanceler do Tesouro inglês. Quando Brentano, por meio de uma compa- ração minuciosa dos textos, provou que os relatos do Times e de Hansard coincidiam em excluírem de modo absoluto o sentido que a citação ladinamente isolada imputava às palavras de Glads- tone, então Marx bateu em retirada sob o pretexto de falta de tempo!” Esse era, finalmente, o osso enterrado! E assim se refletiu, glorio- samente, na fantasia cooperativista de Cambridge, a campanha anônima do sr. Brentano no Concórdia! Assim se postava ele, e assim ele brandia a sua espada,74 “num ataque conduzido magistralmente”, este São Jorge

da União dos Fabricantes Alemães, enquanto o dragão dos infernos, Marx, estertorava a seus pés “rapidamente em meio a agonias mortais”.

No entanto, toda essa descrição épica a Ariosto só serve para encobrir os truques desse São Jorge. Aqui já não se fala de “acréscimos mentirosos”, de “falsificação”, mas de “citação capciosamente isolada” (craftily isolated quotation). Toda a questão tinha sido deslocada, e São Jorge e seu escudeiro cambridgeano sabiam muito bem por quê.

Como o Times recusou publicar a réplica, Eleanor Marx encami- nhou-a à revista mensal To-Day de fevereiro de 1884, reconduzindo o debate ao único ponto de que se tratava: Marx havia ou não “acres- centado mentirosamente aquela frase”? O sr. Sedley replicou:

“A questão de saber se determinada frase constou ou não no discurso do sr. Gladstone era”, na sua opinião, “de importância muito subalterna” na disputa entre Marx e Brentano, “se com- parada com a questão de saber se a citação fora feita com a intenção de reproduzir ou de deformar o sentido de Gladstone”. E, então, ele admite que o relato do Times “contém de fato uma contradição nas palavras”; mas, o resto do contexto explicaria, mos- traria, corretamente, isto é, no sentido liberal-gladstoniano, o que o sr. Gladstone teria desejado dizer (To-Day, março de 1884). O cômico é que o nosso homenzinho de Cambridge empenha-se agora em não citar o discurso conforme Hansard, como seria “costumeiro”, segundo o anônimo Brentano, mas conforme o relato do Times, designado pelo mesmo Brentano como “necessariamente malfeito”. Naturalmente, já que a frase fatal falta no Hansard!

74 Engels faz aí uma variação em torno das palavras do fanfarrão e covarde Falstaff, que conta como ele teria, sozinho, lutado contra cinqüenta pessoas. (SHAKESPEARE. Henrique

Foi fácil a Eleanor Marx, no mesmo número do To-Day, reduzir essa argumentação a pó. Ou o sr. Taylor tinha lido a controvérsia de 1872 e, nesse caso, tinha agora “mentido”, não só “acrescentando”, mas também “indo além”. Ou não a tinha lido e, então, era sua obrigação calar a boca. De um modo ou de outro, ficou claro que ele não ousou, em nenhum momento, manter de pé a acusação do seu amigo Brentano de que Marx teria “acrescentado mentiras”. Pelo contrário, agora Marx não teria acrescentado mentiras, mas teria deixado fora uma frase importante. Mas essa mesma frase é citada à p. 5 do Discurso Inaugural, poucas linhas antes do que teria sido “acrescentado mentirosamente”. E no que se refere à “contradição” no discurso de Gladstone, quem é senão exatamente Marx quem fala, na nota 10575 de O Capital, à p.

618 (terceira edição, p. 672), das “sucessivas e gritantes contradições nos discursos de Gladstone sobre os orçamentos de 1863 e 1864"! Só que Marx não se lança à maneira de Sedley Taylor a diluí-los em amabilidades liberais. E o resumo conclusivo, na resposta de E. Marx, afirma então:

“Pelo contrário, Marx nada ocultou digno de menção nem acres- centou a mínima mentira. Mas ele reconstituiu e arrancou do esquecimento determinada frase do discurso de Gladstone que indubitavelmente foi dita, mas que, de um jeito ou de outro, encontrou o seu caminho — para fora de Hansard”.

Com isso, o sr. Sedley Taylor também achou que bastava, e desse conluio de catedráticos tramado durante duas décadas e em dois gran- des países resultou que não mais se ousou questionar a probidade literária de Marx, enquanto o sr. Sedley, a partir de então, há de confiar tão pouco nos boletins de guerra do sr. Brentano quanto o sr. Brentano na infalibilidade papal de Hansard.

Londres, 25 de junho de 1890

F. Engels

No documento O Capital - Volume I (páginas 146-152)