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3 PARTICULARIDADES HISTÓRICAS E CONJUNTURAIS DA AMÉRICA LATINA

3.1 AS CIRCUNSTÂNCIAS SOCIAIS, POLÍTICAS E ECONÔMICAS DA

3.1.2 A realidade recrudescida da América Latina e do Caribe em dados

Em face desse espectro singular da América Latina e do Caribe, os dados do Balanço Preliminar das Economias da América Latina e do Caribe (CEPAL, 2009), da Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe, são notórios, ao indicarem que, apesar do ligeiro crescimento da América Latina na entrada do século XXI, no segundo quartel da primeira década, a crise internacional, provocada

pela “bolha imobiliária norte-americana”48, resultou em taxas negativas de

crescimento — em, aproximadamente, metade dos países da região —, e a exportação chegou a apresentar índices de -9,6 %, com destaque para o México, cujo percentual ultrapassou os 14 pontos percentuais negativos.

Os reflexos da desaceleração do crescimento econômico e das políticas de ajuste recaíram, mormente, sobre áreas e setores mais vulneráveis, como as políticas sociais, as quais têm sido mascaradas por propostas de reformas, que têm provocado o desmonte dos incipientes aparatos de proteção social. Em face dos pífios recursos alocados, as políticas sociais passaram a ser substituídas por programas focalizados de combate à pobreza e, por outro lado, abriram um nicho de mercado para os serviços e/ou seguros privados ou público-privados. No caso da Previdência, até o início do século XXI, “[...] nove países latino-americanos tinham implementado reformas estruturais em seus sistemas previdenciários: Chile (1981), Peru (1993), Colômbia e Argentina (1994), Uruguai (1996), Bolívia e México (1997), El Salvador (1998) e Costa Rica (2001)” (MESA-LAGO; MULLER, 2003, p. 27).

As consequências desse “desmonte” estão na distribuição de renda assimétrica, nas condições de vida da população, no acesso a bens e serviços e, sobretudo, nos níveis de indigência49 e pobreza50 da região, que, apesar de terem

diminuído na maioria dos países que a constituem, ainda mantêm taxas muito elevadas, o que pode ser observado na Tabela 1.

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A crise financeira internacional teve no seu epicentro os EUA, quando a oferta excessiva de crédito (com preços muito acima do valor venal) levou a uma ampliação desordenada da demanda imobiliária, que resultou num movimento inflacionário e na elevação das taxas de juros. Reversamente a isso, ocorreu uma retração da demanda e da liquidez das hipotecas dos imóveis. Credores e investidores foram afetados, uma vez que os primeiros não receberam, e os segundos não investiram e colocaram suas ações à venda na bolsa. Com excesso de ações à venda, a bolsa de valores norte-americana despencou e impactou, diretamente, o mercado financeiro mundial.

49 Os percentuais de indigência podem ser obtidos no Panorama Social da América Latina (CEPAL,

2012) da Comissão Econômica Para a América Latina e o Caribe.

50 Para a mensuração das percentagens de pobreza multidimensional, a CEPAL utiliza os seguintes

indicadores de carências: acesso a fontes de água melhorada; sistema de eliminação de excrementos; energia elétrica; combustível para cozinhar inseguro para a saúde; precariedade dos materiais de moradia; amontoamento; frequência à escola; e alcance de uma escolaridade mínima (CEPAL, 2012).

Tabela 1 — Percentagem de pessoas em situação de pobreza na América Latina — 2005-2012 PAÍSES ANOS 2005 2006 2011 2012 Argentina ... 30,6 ... ... 4,3 Brasil ... 36,4 ... 20,9 ... Chile ... ... 13,7 11,0 ... Colômbia ... 45,2 ... ... 32,9 Equador ... 48,3 ... ... 32,2 México ... ... 31,7 36,3 ... Paraguai ... 56,9 ... 49,6 ... Uruguai ... 18,8 ... ... 5,9 Venezuela ... 37,1 ... ... 23,9

FONTE: COMISSÃO ECONÔMICA PARA A AMÉRICA LATINA E O CARIBE (CEPAL). Panorama

Social da América Latina. 2012. Disponível em:

<http://www.cepal.org/publicaciones/xml/5/48455/PanoramaSocial2012.pdf>. Acesso em: 21 out. 2014.

A Tabela 1 mostra uma redução significativa da pobreza, especialmente na Argentina e no Uruguai, que diminuíram para menos de um terço seus percentuais de população em situação de pobreza num espaço temporal de sete anos. Chama atenção, igualmente, a retração de 16 pontos percentuais no Brasil e no Equador e, na sequência, a contração de 13 pontos percentuais na Venezuela, países que tiveram a gestão de “governos populares” nos últimos anos. Há de se considerar que o período foi marcado por condições econômicas internacionais adversas, mas, mesmo assim, esses países apresentaram resultados bem diferentes dos demais, com uma única exceção para a Colômbia. Diferentemente desse bloco, com governos conservadores, a Colômbia foi o único país que apresentou uma redução também significativa de 12 pontos percentuais em relação à população em situação de pobreza, seguida por países com resultados bem menos significativos, como o Paraguai, que reduziu apenas sete pontos percentuais, o Chile, que diminuiu menos de dois pontos percentuais, e o México, que ampliou em, aproximadamente, quatro pontos percentuais o seu contingente nos últimos cinco anos.

Contudo, mesmo sob políticas dirigidas aos segmentos pobres (e indigentes), o que se revela é a ausência de mudanças estruturais, uma vez que a distribuição de renda não equitativa ainda é uma característica marcante da realidade regional. Enquanto 20% dos “mais ricos” concentram em torno de 55% da riqueza na América Latina, têm-se apenas 3,5% da riqueza socialmente produzida

acessada por 20% da população pobre. Esse abismo é responsável pelo título atribuído à região, de mais desigual do Mundo, cuja diferença, apontada por Katz (2009), entre os 10% mais ricos e os 10% mais pobres remonta a 57 vezes no Brasil, 39 vezes no Chile, 67 vezes na Colômbia, 46 vezes no Equador e 76 vezes no Paraguai.

No que tange ao trabalho, não só houve redução da renda média,51 como

veio acompanhada de altas taxas de desemprego,52 sendo que, das seis economias

que representam, em conjunto, 90% do PIB da América Latina (Argentina, Brasil, Chile, Colômbia, México e Peru), cinco (Argentina, Brasil, Chile, México e Peru) apresentavam, em 2013, entre 5% e 7% de taxa de desemprego (CEPAL, 2013b).53 Corroboram essa conjuntura a deterioração das condições de trabalho, as jornadas extensivas54, a terceirização, a precarização das relações e formas de contrato de trabalho, a desprofissionalização e o trabalho “por conta”, que, segundo a CEPAL (2013b), tem-se sobreposto às taxas de elevação do trabalho assalariado em seis dos nove países com dados disponíveis (Brasil, Chile, Costa Rica, México, Panamá e Peru). Ressaltam-se, ainda, a mudança na composição da força de trabalho, a “captura da subjetividade” dos trabalhadores (ALVES, 2011) e o arrefecimento de suas lutas.

Somados à volatilidade do mercado financeiro internacional e à posição subalterna que a região ocupa no cenário mundial, esses fatores se revelam mais enigmáticos do que parecem. O fato é que a lógica de “acumulação flexível” (HARVEY, 1993) “[...] possui características que, ao mesmo tempo, produzem o desenvolvimento de determinadas economias e o subdesenvolvimento de outras” (CARCANHOLO, 2009, p. 252), provocando um “Salve-se quem puder” ou um “Quem pode mais, chora menos”. Esses ditos populares, mais do que representar as

51 “As remunerações médias (salários, aposentadorias e pensões) [...] não só não acompanharam a

expansão do produto em alguns países ao final da década (como a Colômbia e o Chile), como caíram 25% em termos reais, em média, nos demais países onde se processaram ajustes. As quedas de renda por habitante foram acompanhadas, em vários casos, por uma piora na sua distribuição, de modo que reduções de renda inferiores a 25% como média representaram diminuições significativamente maiores nos domicílios vulneráveis que se situavam em torno da linha de pobreza.” (SOARES, 2009, p.49-50).

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Em que pese a Europa apresentar índices bem mais elevados que os dos países da América Latina, há que se considerar que o potencial econômico e político daquele continente, elementarmente, se diferencia da realidade latino-americana.

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A Colômbia é o único país que desponta com uma taxa média de desemprego de 10% em 2013.

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A jornada laboral média dos países da América Latina e do Caribe superam as registradas nos países da Europa. Enquanto, nos países latino-americanos, a jornada ultrapassa 40 horas semanais, ela não transpõe a média de 37 horas nos países europeus (CEPAL, 2012).

impressões desse contexto na organização política e econômica latino-americana, traduzem impacto estrito na vida dos trabalhadores.

Além de dar uma nova materialidade à produção, à circulação e à distribuição, a “acumulação flexível” debilita o mundo do trabalho, promove a despossessão do trabalhador das suas condições de vida, exige novas especializações, cria novas maneiras de fornecimento de serviços (financeiros ou não), além de demandar inovação e intensificação tecnológica (ALVES, 2011).

Os impactos desse processo finalizam e iniciam séculos produzindo, em escala mundial, “populações insolventes”, “sobrantes” — o “exército industrial de reserva”, nos termos de Marx. Como oportunamente define Ianni (1993, p. 114), tem-se hoje

[...] uma multidão de trabalhadores, populações ou coletividades nacionais, dispersas em grupos, etnias, minorias, classes, regiões, culturas, religiões, seitas, línguas, dialetos, tradições culturais, todos membros de uma estranha aldeia global. Articulados pelo alto, desde centros decisórios desterritorializados, recebendo aproximadamente as mesmas mensagens em todos os lugares, informando-se mais ou menos nos mesmos termos, sendo levados a pensar os problemas cotidianos, locais, regionais, nacionais, continentais e mundiais em forma mais ou menos homogênea. Uma fantástica aldeia global, em que se dispersa uma imensa multidão de solitários, inventada pelo alto, satelitizada, eletrônica, desterritorializada.

A partir desses imperativos histórico-estruturais do panorama latino- -americano de dependência, que “[...] envolve um controle externo simétrico ao do

antigo sistema colonial, nas condições de um moderno mercado capitalista, da tecnologia avançada e da dominação externa compartilhada por diferentes nações, [...] desde o controle da natalidade, a comunicação de massa e o consumo de massa, até a educação [...]” (FERNANDES, 1999, p. 100), o trabalhador é tido como um “[...] indivíduo parcial, mero fragmento humano que repete sempre uma operação parcial” (MARX, 2011a), que se vê destituído de sua concha (para fazer a analogia com o “caracol e sua concha”, aludidos por Marx), na medida em que não se apropria dos resultados do seu trabalho.

Sem embargo, a lógica do modo de produção institui a centralidade do trabalho assalariado na vida dos sujeitos, os quais, para garantir sua permanência (ou possível inserção) no mundo do trabalho, buscam pela propalada qualificação profissional para responder à demanda de um profissional polivalente, flexível, que transita entre os diversos espaços, que é propositivo, criativo e inovador. Nos termos de Alves (2011), explicita-se o “sociometabolismo da barbárie”, expresso pelas

dilacerantes contradições vivas do capital.

3.2 DESDOBRAMENTOS HISTÓRICOS DA DEPENDÊNCIA: O ESPECTRO