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2.2 À GUISA CONCEITUAL: OS FUNDAMENTOS DO SERVIÇO SOCIAL

2.2.1 A concepção materialista de história

História, advinda do termo grego historie, comumente, remete à investigação do passado e de seu processo evolutivo. Nos dicionários de Língua Portuguesa, o termo história significa o ramo da ciência que registra, aprecia e explica o passado da humanidade de forma cronológica. Essa concepção retilínea e “tradicional” de história, amplamente difundida e conhecida, é superada pela concepção dialética, que estabelece a primazia do homem na constituição da vida social.

Partilhando dessa segunda perspectiva conceitual, de cariz marxiano, parte- -se do pressuposto de que não há história sem existência humana. O homem,

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Com base nisso, “O recurso à história não é secundário e/ou lateral, mas pressuposto adotado como fundamento para a apreensão das características particulares do Serviço Social no Brasil e, por conseguinte, da configuração de uma determinada imagem social da profissão” (ORTIZ, 2010, p. 23).

enquanto ser genérico16, a partir da ação que transforma a natureza — o

trabalho17 —, produz seus próprios meios de sobrevivência e seus instrumentos

como bens necessários para a reprodução social. Retirando a existência humana das meras determinações biológicas, o trabalho localiza a atividade humana como eixo fundante do ser social, dotado de determinações essenciais, instituindo-lhe dimensão ontológica. Assim, trabalho é a atividade de transformação da natureza pela qual o homem modifica, concomitantemente, a si próprio como sujeito e a totalidade social da qual é partícipe (MARX, 2011).

É pelo trabalho que o homem autoconstrói sua condição humana, fazendo intercâmbio material com a natureza e constituindo um conjunto de relações encarregadas da reprodução material da vida em sociedade. Com isso, ao produzir suas condições materiais de vida, ou sua própria vida material, o homem imerge na dinâmica social, num processo ativo vital, fazendo história. Assim, a história “[...] deixa de ser uma coletânea de fatos inanimados, como para os empiristas, ainda abstratos, ou uma ação imaginária de entidades imaginárias, tal como para os idealistas” (MARX; ENGELS, 2006, p. 52).

A paráfrase de Marx, extraída da obra Ideologia Alemã, não deixa dúvidas das bases filosóficas do materialismo histórico e dialético. Ao partir de uma crítica ao idealismo alemão que considera as ideias, os pensamentos e os conceitos que determinam a concretude, o mundo material e suas relações, Marx e Engels, munidos política e filosoficamente, demonstram que, para esses filósofos alemães conservadores, a transformação da sociedade se dá no plano do pensamento e não alcança a realidade concreta. “Ainda que Hegel formule o problema das relações entre filosofia e realidade, seu idealismo absoluto aspira a deixar o mundo como ele é, pois, na sua opinião, a missão da filosofia é dar razão ao que existe e não traçar caminhos para a transformação do real” (VÁZQUEZ, 2011, p. 112).

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Ao abordar o caráter genérico do homem, Marx (2008, p. 84, grifos do autor), nos Manuscritos Econômico-Filosóficos, afirma que “[...] o animal é imediatamente um com a sua atividade vital. Não se distingue dela. É ela. O homem faz da sua atividade vital mesma um objeto da sua vontade e da sua consciência. Ele tem atividade vital consciente. Esta não é uma determinidade (Bestimmtheit) com a qual ele coincide imediatamente. A atividade vital consciente distingue o homem imediatamente da atividade vital do animal. Justamente, [e] só por isso, ele é um ser genérico”. Para maiores informações, consultar o capítulo Trabalho Estranhado e Propriedade Privada do livro Manuscritos Econômico-Filosóficos (MARX, 2008).

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Marx, em O Capital, diferencia trabalho de trabalho abstrato, uma vez que, enquanto o segundo tem vínculo estrito com a submissão do trabalho ao capital, o primeiro condiz com as formas mais elementares de constituição da vida em sociedade.

Em uma análise inversa, Marx demonstra que a subjetividade é uma objetividade abstraída, por isso, a vida material dos homens é que condiciona suas ideias e pensamentos, uma vez que esses se desenvolvem no interior do processo histórico concreto. Logo, são as condições objetivas e concretas que determinam sua consciência18 e, consecutivamente, a história das sociedades. Para Marx e Engels (2006, p. 51),

[...] a produção de idéias, de representações e da consciência está, no princípio, diretamente vinculada à atividade material e o intercâmbio material dos homens, como a linguagem da vida real. As representações, o pensamento, o comércio espiritual entre os homens, aparecem aqui como emanação direta do seu comportamento material.

Partindo dessa acepção, o homem distingue-se do animal pela sua capacidade de desenvolver atividades pensadas e com fito, conscientemente, transformador, na medida em que produz os meios que permitem a satisfação das necessidades mais elementares (alimentação, habitação, vestuário) para a garantia do direito à vida. A ação e o instrumento de satisfação geram novas necessidades, cuja busca por locupletar institui ao homem, independentemente de sua vontade individual, a fixação de atividade social. Mais do que uma relação de cultivo da vida, torna-se relação social de produção19, no tempo em que conjuga diferentes sujeitos

sociais, em circunstâncias e condições sociais diversas (MARX; ENGELS, 2006). Vê-se, pois, que, ao produzir seus meios de vida, o homem (re)produz sua própria vida material e social. A produção, como condicionante de toda a história, acarreta a geração de bens materiais e meios indispensáveis à satisfação de necessidades humanas e, ao mesmo tempo em que resulta das condições objetivas, condiciona histórica e socialmente a práxis revolucionária. “Esta concepção de história se baseia no processo real de produção, partindo da produção material da vida imediata; e concebe a forma de intercâmbio conectada a esse modo de produção e por ele engendrada [...] como fundamento de toda história [...]” (MARX; ENGELS, 2006, p. 65).

Sob essa ênfase, a história é entendida como um processo dinâmico e dialético, permeada de contradições que são medulares ao próprio processo de configuração e transformação da sociedade. O real é história. Assim, não é estático,

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Há que se recordar a clássica frase: “Não é a consciência que determina a vida, mas a vida é que determina a consciência” (MARX; ENGELS, 2006, p. 52).

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Ou relação de produção, como Marx designa no livro Contribuição à Crítica da Economia Política (MARX, 2003).

mas dialético; suas contradições internas levam os homens a transformar o mundo que em vivem, a partir das condições reais e/ou concretas, e a estabelecer relações para produzir suas condições reais de existência (BORGES, 1980). Por isso, o conhecimento da história pressupõe articular as múltiplas dimensões da vida social, em face das infinitas variáveis dos seus acontecimentos. Nessa ótica, “[...] a referência ao passado afirma-se numa nova dialética, integrando o presente como ponto de partida e o futuro, não como antecipação ‘visionária’, mas como instigação para a efetivação de possibilidades reais” (FONTES, 1998, p. 162).

O desenvolvimento imanente de uma forma histórica não é um contínuo retorno do mesmo. A dialética marxiana requer que o movimento de busca ao ponto de partida seja realizado em sua dinâmica permanente, de modo que o processo histórico seja explicado em sua síntese e que seus elementos (do processo sócio- -histórico) sejam conservados, a fim de superá-los para constituir novas sínteses.

Nesse cenário, a história20 não pode ser conceituada como uma simples sucessão de acontecimentos21, pois se cairia numa apreensão determinista do presente e em uma prospecção (previsível) do devir, como se a realidade não fosse processo e não se alterasse conforme a configuração da intervenção humana. Portanto, entende-se a dimensão “histórica” num duplo sentido: primeiro, porque, se tratando da história da sociedade, a menção é estritamente feita ao ser social, aos homens, aos sujeitos da história; segundo, porque, sendo os sujeitos um produto social, partícipes de relações sociais, na medida em que as ações se alteram, consecutivamente, a sociedade muda e as ideias dos homens também se transformam (SANTOS, 2011).

20Conhecemos somente uma única ciência, a ciência da história. A história pode ser analisada sob

duas maneiras: história da natureza e história dos homens. As duas maneiras, porém, não são separáveis; enquanto existirem homens, a história da natureza e a história dos homens estarão condicionadas mutuamente. A história da natureza, conhecida como ciência natural, não nos interessa aqui; mas teremos de analisar a história do homem, pois quase toda a ideologia se reduz ou a uma concepção distorcida dessa história, ou a uma abstração completa desta. A própria ideologia não é senão um dos aspectos dessa história.” (MARX; ENGELS, 2006, p. 41).

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“Mas, ainda uma vez, não se trata de tomar a história como sucessão de acontecimentos factuais, nem como evolução temporal das coisas e dos homens, nem como um progresso de suas idéias e realizações, nem como formas sucessivas e cada vez melhores das relações sociais. A história não é sucessão de fatos no tempo, não é progresso das idéias, mas o modo como homens determinados em condições determinadas criam os meios e as formas de sua existência social, reproduzem ou transformam essa existência social que é econômica, política e cultural.” (CHAUÍ, 2004, p. 8).

A história não é outra coisa senão a sucessão de diferentes gerações, em que cada uma delas explora os materiais, os capitais e as forças de produção a ela transmitidas pelas gerações que antecederam; assim, por um lado, prossegue em condições completamente distintas da atividade anterior, enquanto, por outro lado, transforma as circunstâncias anteriores por meio de uma atividade completamente diferente. (MARX; ENGELS, 2006, p. 77).

Sobretudo, a concepção materialista de história não se traduz em sucessão unidimensional de acontecimentos e etapismos, mas em produto das relações estabelecidas entre os homens, que é permeado de conservação e superação e leva à constituição de uma “unidade do diverso” ou uma “síntese de múltiplas determinações” (MARX, 2003), por isso, analisar a história enquanto processo é apreendê-la dialeticamente a partir do manifesto nas relações contemporâneas.

Como atividade humana, criadora e transformadora, a práxis revela sua dimensão histórico-real, ao retirar os véus idealistas e contemplativos que ocultam a realidade em sua dinâmica objetiva-subjetiva-objetiva. Não se trata de uma filosofia que, por si só, transforma o real, mas de substituição do objetivismo estéril, em que o objeto é visto e entendido em si mesmo, sem alteração do sujeito cognoscente — como faz o materialismo contemplativo ou metafísico — e do subjetivismo, como atividade meramente espiritual, que abandona a base material e objetiva dessa atividade — como faz o idealismo. Há que se considerar a vida social como produto da atividade humana, subjetiva e objetiva, material e histórica, na relação homem- -natureza, que é desenvolvida com finalidades22, como produto da consciência

práxis humana.

Nessa ótica, a mediação filosófica da realidade requer a íntima conjugação de fatores teóricos e práticos, uma vez que o homem precisa objetivar sua dimensão genérica para transformar a realidade e, ao mesmo tempo, transformar a si próprio, pois as circunstâncias (históricas, econômicas, sociais) fazem o homem, e o homem faz as circunstâncias. Em análise dialética, na clássica XI Tese Sobre Feuerbach, Marx indica que não basta interpretar o mundo, pois, somente com a interpretação, o mundo não é modificado. Interpretar é aceitá-lo. Há que se transformar. “Portanto,

22 Em O Capital, ao analisar a dimensão teleológica do processo de trabalho em que os homens se

inserem, Marx (2011a, p. 211-212) diferencia-os dos animais, ao demonstrar que “[...] uma aranha executa operações semelhantes às do tecelão, e a abelha supera mais de um arquiteto ao construir sua colméia. Mas o que distingue o pior arquiteto da melhor abelha é que ele figura na mente sua construção antes de transformá-la em realidade. No fim do processo de trabalho aparece um resultado que já existia antes idealmente na imaginação do trabalhador. Ele não transforma apenas o material sobre o qual opera; ele imprime ao material o projeto que tinha conscientemente em mira [...]”.

nem mera teoria, nem mera práxis; unidade indissolúvel das duas” (VÁZQUEZ, 2011, p. 154).