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Em tempos de aprofundamento das fraturas sociais e de tendências regressivas na asseveração de conquistas históricas por parte da classe trabalhadora, o ponto de partida deste trabalho é o diálogo sobre a formação profissional em Serviço Social, no universo dinâmico e contraditório das relações sociais capitalistas. Todavia, abordá-la pressupõe considerá-la no contexto das condições emergentes no processo social, das múltiplas determinações que involucram as particularidades profissionais, densas de conteúdo histórico, dos rebatimentos impressos à inserção sócio-ocupacional no reconfigurado mundo do trabalho, dada sua condição de assalariamento, do seu necessário atrelamento às resistências emanadas dos planos de lutas do conjunto dos trabalhadores na interface com outras categorias e outros atores sociais, do caráter contraditório atribuído à educação (de graduação e pós-graduação), uma vez que assume dimensão utilitária ao projeto hegemônico, ao dimanar uma necessária população supérflua e subsidiária, sendo, ao mesmo tempo, o lócus privilegiado da produção do conhecimento.

Travejada por essas (contra)tendências, a formação não é aqui entendida como sinônimo de “ensinar fazer” Serviço Social, pois nela se encontram implicadas habilidades, competências e as atitudes investigativa, propositiva, ética e democrática como pressupostos de ruptura com uma visão conservadora e endogenista da profissão, “[...] evitando continuar pensando o Serviço Social pelo Serviço Social e no Serviço Social” (SANTOS, 2011, p. 28, grifos do autor), ou, como refere Montaño (2011a, p. 19-20), sustentando o Serviço Social como “evolução, organização e profissionalização das formas ‘anteriores’ de ajuda, caridade e da filantropia, vinculada agora à intervenção na ‘questão social’”. Mesmo perfilhando que a profissão foi criada para atender às necessidades do capital — num período histórico em que a classe trabalhadora se organizava e estava aglutinada pelo próprio desenvolvimento do capitalismo, no tempo em que as contradições entre capital e trabalho começavam a se explicitar —, esse processo implica a superação do não reconhecimento da profissão como trabalho assalariado, das influências da Igreja e das ações caritativas, que conduziam a visões

messiânicas do trabalho profissional, e da orientação positivista, que pressupunha a não percepção dos aspectos políticos, da contradição e da diversidade.

Com perfil sustentado em linhas teóricas, éticas e políticas, entende-se que a formação deve romper com seus muros internos e superar os equívocos, comumente recordados, de que o conhecimento teórico se basta por ele mesmo e de que não subsidia a intervenção crítica, consentida com a realidade. Iamamoto (2010, p. 240), ao tecer considerações sobre as conquistas e os desafios da profissão em tempos de capital fetiche, refere que, no âmbito da formação profissional,

[...] a formação teórica não pode silenciar a capacitação voltada às competências e habilidades requeridas para o desempenho do trabalho prático-profissional, que, resguardando um domínio teórico-metodológico e um direcionamento ético-político, se traduzam na construção de respostas às demandas postas ao assistente social — o que não se identifica com a imersão no terreno dos imediatismos. Trata-se, ao contrário, de conjugar as ações imediatas com as projeções de médio e longo curso [...].

Nesse cenário, mostra-se imperativo exercitar a capacidade de apreensão (a) do significado sócio-histórico da profissão, de modo a percebê-la como partícipe das relações sociais; (b) das particularidades interventivas, explicitando a diferenciação de um “profissional que faz de tudo” de um “mero burocrata”; (c) da necessidade social da profissão, a partir das demandas postas a ela; (d) do trabalho profissional ético e político, calcado numa formação alicerçada em bases teórico- -metodológicas sólidas, capazes de subsidiar o alcance dos objetivos profissionais; e (e) dos processos econômicos, políticos, sociais e culturais da sociedade, aqui representada pela latino-americana e caribenha, em suas expressões contraditórias. Na América Latina, apesar (a) da gênese do Serviço Social ter sido majoritariamente influenciada pela incorporação de referenciais exógenos à realidade nos processos formativos e interventivos, sob uma requisição profissional do Estado para trabalhar com as demandas sociais, e (b) de ter como marco o Movimento de Reconceituação, a profissão assumiu trajetórias, perfis e significados diferenciados, principalmente após a abertura democrática, quando se evidenciou uma “nova realidade” política nos países, cujos processos sócio-históricos redirecionaram o desenvolvimento da profissão na região latino-americana.

O hiato autocrático-burguês de aproximadamente duas décadas expressou a necessidade de reestruturação da profissão na América Latina, e, em muitos países, a estratégia “[...] foi o retorno ao passado: foram reinstituídos os docentes e

autoridades, anteriores às ditaduras, reimplantados os currículos antigos (dos anos 60, na melhor das hipóteses) e reintroduzida a bibliografia de referência dos inícios da reconceituação, como textos ‘atuais’” (MONTAÑO, 2009, p. 134). Todavia, aponta Alayón (2009, p. 2, tradução nossa):

Em muitos países, as condições impostas pelos processos de ditaduras militares fizeram retroceder. Em outras latitudes do continente, as maiores possibilidades de expressão e, logo, os diversos processos de transição democrática que se foram irradiando colocaram a necessidade de repensar e revalorizar os insuficientes esforços dos chamados “Estados de bem- -estar”8.

Sobretudo, países como o Brasil, pós reinstituição democrática, despontaram na produção do conhecimento, fruto da ampliação e da qualificação dos programas de pós-graduação na área, que tomaram como objeto de pesquisa o campo social. Desde os anos 70 do século XX, década em que foi criado o primeiro Programa de Pós-Graduação em Serviço Social,9 até hoje, percebem-se o florescimento e a consolidação de um amplo leque de temas nas pesquisas em Serviço Social, o que sinaliza o avanço significativo da produção do conhecimento na área, seja pelo rigor teórico, histórico e metodológico da realidade social e do Serviço Social, seja pela ampliação do conhecimento sobre os processos sociais contemporâneos (SIMIONATTO, 2004).

Entretanto, em termos de América Latina, percebe-se a pós-graduação

stricto sensu ainda muito jovem, com necessidade de: formação e qualificação de

docentes e/ou pesquisadores; superação da precariedade institucional, cuja primazia é de professores horistas; sobrepujamento da quase-inexistência de órgãos de regulação e fomento da pós-graduação e da pesquisa; eliminação das dificuldades com estruturas institucionais de pesquisa (MONTAÑO, 2011b); e combate à situação de ausência de pós-graduação (stricto sensu) na área, em 11 dos 20 países da América Latina e do Caribe, apontados no Quadro 1,10 no qual também se visualiza

8 No original: “En muchos países, las condiciones que imponían los procesos de dictaduras cívico-

-militares nos hicieron retroceder. En otras latitudes del continente, las mayores posibilidades de expresión y luego los diversos procesos de recuperación democrática que se fueron irradiando, nos colocaron en los umbrales de volver a repensar y revalorizar los insuficientes esfuerzos de los llamados ‘estados de bienestar’” (ALAYÓN, 2009, p. 2).

9

Essa questão será retomada no item “5.1.1 O Serviço Social brasileiro como lócus de partida”.

10 Carlos Montaño, no artigo A Pós-Graduação e a Pesquisa no Serviço Social Latino-Americano:

uma primeira aproximação (MONTAÑO, 2011b), apresenta, nos Apêndices, um quadro representativo da pós-graduação nos países da América Latina. Ao invés de utilizar o quadro do referido autor, optou- -se por usar os resultados da pesquisa realizada à aproximação do objeto de estudo dessa tese,entre os meses de março e dezembro de 2013, por haver divergências com os dados do autor, uma vez que seu artigo é de 2011.

que apenas cinco países dispõem de doutorado (e mestrado) na área e outros cinco possuem apenas mestrado.

Quadro 1 — Existência de pós-graduação stricto sensu em Serviço Social na América Latina e no Caribe — 2013

PAÍSES PÓS-GRADUAÇÃO EM SERVIÇO SOCIAL

Argentina Possui mestrado e doutorado

Bolívia Não possui

Brasil Possui mestrado e doutorado

Chile Possui mestrado

Colômbia Possui mestrado

Costa Rica Possui mestrado

Cuba Não possui

El Salvador Não possui

Equador Não possui

Guatemala Possui mestrado

Haiti Não possui

Honduras Possui mestrado

México Possui mestrado e doutorado

Nicarágua Não possui

Panamá Não possui

Paraguai Não possui

Peru Não possui

Porto Rico Possui mestrado e doutorado

República Dominicana Possui mestrado

Uruguai Possui mestrado e doutorado

Venezuela Não possui

Essa realidade da pós-graduação é tributária do próprio Serviço Social em cada país da região, que, inegavelmente, traça caminhos peculiares à sua inserção e ao seu reconhecimento como profissão no mundo do trabalho assalariado e partícipe das relações contraditórias na sociedade capitalista. A pós-graduação, além de constituir-se como um notório lócus de produção do conhecimento, revela inconteste contribuição ao adensamento da

[...] intervenção na realidade através da construção de uma cultura intelectual, de cariz teórico-metodológico crítico, redefinindo a sua representação intelectual e social até então caracterizada, prioritariamente, pelo exercício profissional, no qual a dimensão interventiva tinha primazia sobre o estatuto intelectual e teórico da profissão (MOTA, 2013, p. 18).

É a partir desse movimento permanente que a profissão se mostra inacabada e cada vez mais “viva” na contemporaneidade. Destarte, é necessário reafirmar constantemente essa perspectiva sustentada pela produção do conhecimento oriunda de temas fincados na própria realidade (inclusive acadêmica), para não endossar a ruptura entre o trabalho profissional e as pesquisas realizadas por profissionais inseridos ou não em âmbito acadêmico.

A postura investigativa é necessária pra descortinar as armadilhas da vida cotidiana, passo crucial e insubstituível para uma intervenção profissional crítica, propositiva e, portanto, não repetitiva. Sem este entendimento, o profissional de Serviço Social não exerce seu papel como sujeito histórico possível e, dessa forma, não coloca em movimento as possibilidades históricas de transformação inscritas na própria realidade. (SILVA, 2007, p. 292).

Em termos graduados ou pós-graduados, elucubrar acerca da formação profissional à luz do marxismo e apreender os processos sociais em sua multidimensionalidade, como uma totalidade que é inacabada, provisória, movimento, mutação e devir, dá uma guinada qualitativa no significado do “homem” para o Serviço Social, na medida em que institui mecanismos que possibilitam o rompimento com as condutas psicologizantes, de culpabilização dos sujeitos, dado que

[...] não se julga um indivíduo pela idéia que ele faz de si próprio, não se poderá julgar uma tal época de transformação pela mesma consciência de si; é preciso, pelo contrário, explicar esta consciência pela contradições da vida material, pelo conflito que existe entre as forças produtivas sociais e as relações de produção (MARX, 2003, p. 6).

Entender a realidade social como fruto de contradições dos processos de (re)produção social, a partir de uma perspectiva crítica e dialética de leitura dos processos sociais de que os sujeitos participam, traduz-se em fundamento epistemológico que sintoniza a passagem do aparente, do imediato, do dado, do messiânico, do mero assistencial à apreensão da essência do objeto real, para constituir mediações para a construção de intervenções que vislumbram fomentar “pequenas convulsões revolucionárias”, para se tecer um trabalho profissional orientado a uma práxis revolucionária (MARX; ENGELS, 2006).

Portanto, trata-se de apreender o marxismo no Serviço Social enquanto direção política, enquanto teoria que ilumina a percepção da condição de classe e dos processos de reificação e alienação do trabalhador, pelo quais, fomentado pelo dialético metabolismo social do capital, conduza à superação dos limites dispostos pelo seu vínculo orgânico com a venda da força de trabalho e ao alargamento dos

horizontes em face de um aclarado projeto mais amplo de transformação social. A matriz teórica, nesse sentido, não é simplesmente uma preferência aleatória, mas uma filiação política para decodificar criticamente a realidade e organizar o pensamento, para formular estratégias e mediações direcionadas a responder de forma qualificada às demandas sociais e institucionais, em vista de um projeto que ultrapassa as barreiras corporativo-profissionais e alcança o conjunto social.

O que historicamente tem sido pretexto de subalternização da profissão, a partir dessa apreensão, torna-se ponto de partida e de chegada do trabalho profissional, porque somente encontra condições objetivas quando, à luz do pensamento marxista, se debruça no deciframento do arsenal de contradições com que a profissão lida cotidianamente. Contudo, mesmo que se apresente como um constante desafio ao Serviço Social, essa apreensão traduz a necessidade de um denso e rigoroso trato teórico-prático pautado na apropriação da história, da teoria e do método no Serviço Social, para a formação de uma massa crítica, a qual ratifica profícuos (e imprescindíveis) abandonos de posturas pragmáticas, irrefletidas e repetitivas.

Desse modo, a formação carece de tempo de adensamento, de reflexão crítica, de argumentações teórico-práticas, de mediações para a apreensão do método e sua objetivação, de correspondência dessas concepções com o movimento do real e de aproximações sucessivas, de desvendamento da realidade social, de estágio com qualidade (que tenha, de fato, um acompanhamento supervisionado, que proporcione processos reflexivos críticos) e de tantos outros indicadores que aqui se poderiam evidenciar.

A ruptura com falsos jargões11 ainda reproduzidos no Serviço Social

perpassa, inicialmente, esses fatores e a extrusão do ensino tradicional, pautado no metodologismo, no teoricismo, nas abordagens desconectadas da realidade social, na transmissão de conteúdos e nas abordagens interventivas em um ou em outro setor ou política social, como se o objeto fosse ambíguo nos diferentes espaços sociocupacionais, sem levar em conta o que (o objeto) apresenta expressões e matizes particulares aos sujeitos na sua construção histórico-social.

11

Jargões que expressam a ideia de que, na prática, a teoria é outra; de que a teoria é diferente da prática; de que o que se aprende em sala de aula pouco subsidia o trabalho profissional, dentre outros.

Não basta explicar as contradições, mas reconhecer que elas possuem um fundamento, um ponto de partida nas próprias coisas, uma base objetiva real; na verdade, mostram que a realidade possui não apenas múltiplos aspectos, mas também aspectos cambiantes e antagônicos. O próprio homem só se desenvolve através das contradições. (PRATES, 2012, p. 122).

Mais do que a ruptura com análises pseudo-concretas e reflexões acríticas, esse enredo formativo pressupõe o entendimento de que nada está fechado, pronto, com receituário interventivo, mas supõe o deciframento do aparente, do que está posto, do dado, do imediato e a inserção em lutas e enfrentamentos que ultrapassam a pseudoneutralidade profissional. Isso perpassa uma densa e sólida formação profissional, que aglutine o significado sócio-histórico dessa incorporação, bem como os desafios impostos e suas implicações no cotidiano profissional.

Nessa ótica, o processo de formação profissional deve estar pautado criticamente na constituição de condições objetivas para a defesa de um projeto de caráter crítico, de modo a passar de um trabalho fetichizado e reiterativo para um

competente, que aglutine mediações entre as bases formativas (teórico- -metodológicas, ético-políticas e técnico-operativas) e a operatividade do trabalho

profissional. Pautada nessa acepção, a perspectiva de formação profissional aqui defendida inclui sucessivos esforços de abandono da incorporação de teorias e técnicas conservadoras, para demarcar espaço para um rigoroso trato teórico, histórico e metodológico da realidade social, cuja interface dialética se expressa na concepção dos fundamentos da profissão.

Os Fundamentos do Serviço Social, apreendidos pelo eixo central história, teoria e método, traduzem para a profissão a análise de seu desenvolvimento atrelada aos processos sociais constitutivos da sociedade burguesa, do conjunto de conhecimentos vinculados a projetos societários, de uma gama de mediações que permite conhecer o real e desvendar as possibilidades de intervenção contidas na realidade, e não sobre ela, assim como a formulação de respostas profissionais a partir das múltiplas expressões da matéria-prima do trabalho profissional.