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As mudanças a nível macro e meso preconizadas pelas actuais políticas educativas vêem legitimados os seus princípios e objectivos em estudos como aquele que o sociólogo João Freire (2005) elaborou, por solicitação do Ministério da Educação.

Neste estudo, organizado em oito capítulos, o autor, num primeiro momento, esclarece-nos quanto à missão de que é incumbido, a que se seguem um diagnóstico e um exercício comparativo segundo dois eixos: confronto com outras carreiras de estatuto social equiparável em Portugal (Docentes Universitários, Oficiais do Exército, Técnicos Superiores da Função Pública e Enfermeiros); confronto com outras carreiras docentes em países europeus (Espanha, França, Alemanha, Grã- Bretanha e Dinamarca). Num segundo momento, João Freire ocupa-se da configuração de uma estrutura de carreira docente alternativa, fazendo as suas “propostas de alteração ao dispositivo instalado” (Ibid., p. 45), onde alvitra a criação de três categorias, Professor Inicial, Professor Confirmado e Professor Titular. Desenvolve, também, com invulgar minúcia os aspectos relacionados com a avaliação e a transição para o novo quadro normativo, onde se podem ver reproduzidos alguns dos pressupostos elencados no actual ECD, e onde se afigura indefinível a fronteira entre o pensamento dos responsáveis pelo Ministério da Educação e o pensamento do autor, como prontamente ele clarificou, “preferimos partir de uma visão própria da situação, que julgamos ser, no essencial, partilhada pelos responsáveis do ME, tal como foi entrevisto na reunião inicial havida.” (Ibid., p.103).

Este documento é essencial para compreender que o ECD não foi alterado por se percepcionar que o anterior “se tornou um obstáculo ao cumprimento da missão social”66 ou porque a mudança visava compatibilizar a docência com outras carreiras da função pública ou a carreira docente em

65 Este diploma tem nova redacção dada pelo Decreto-Lei nº 270/2009, de 30 de Setembro.

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outros países, mas porque a sua estrutura se tornava incómoda para o poder político, vista como uma profissão demasiado livre e horizontal, sendo que “o sector da educação é actualmente terreno privilegiado das medidas de racionalização” (Lima, 2001, p. 127).

No referido estudo a estrutura da carreira “única” criada pelo estatuto dos anos noventa, apesar de “interessante”, abriu portas a “ilusões igualitárias” (Freire, 2005, p.12). O principal problema dessa estrutura era o facto de os três últimos escalões da carreira representarem um encargo anual de sessenta e três por cento das despesas com o pessoal, facto que é considerado indesejável quer “para a despesa pública paga pelo contribuinte”, quer “para a lógica de equilíbrio e desenvolvimento harmonioso” (Ibid., p.13) da carreira docente. Tal explica, desde logo, o afunilamento (condicionalismo) na progressão do antigo sétimo para o oitavo escalão, e consequente estruturação da carreira em duas categorias, numa lógica gerencialista inspirada nos princípios do modelo da Nova Gestão Publica67. Esta visão pode conduzir a numerosas complexidades e ambiguidades que importa detectar e revelar a fim de introduzir maior clareza. Todavia, “na educação os discursos gerencialistas têm vindo a ocupar a posição outrora assumida pelas teorias educacionais e pelo pensamento pedagógico, construindo narrativas de tipo gestionário que legitimam uma nova ordem baseada no mercado” (Lima, 2007, p. 45).

Quando Freire elenca os princípios que legitimam a carreira profissional dos docentes (pp. 18- 19), apresenta um dispositivo que compreende a identificação e a adesão à função nuclear da profissão (ensinar e educar), bem como o reconhecimento do esforço e desgaste, implicando enquadramento dos docentes mais novos. Ainda, a existência de uma hierarquia profissional, de base meritocrática, que pressuponha o desenvolvimento e progressão da carreira profissional com base na antiguidade e experiência, pontuada por momentos fortes de avaliação sancionados pela ascensão a uma categoria subsequente. Após a identificação das especificidades, condições e limitações, das várias fases do percurso profissional, implicitamente reconhece que não conciliará nunca o mérito com a quota, assim pronuncia, “que deve ser acautelado o efeito perverso de os não-seleccionados ou promovidos poderem ser considerados como, “incompetentes”, “falhados” ou por qualquer forma desconsiderados” (Freire, 2005, p. 19; itálico e aspas do autor).

67 Conceito que surgiu no início dos anos 90 (New Public Management) para designar as transformações introduzidas nos sistemas da

administração pública, de alguns países anglo-saxónicos, onde são aplicados mecanismos característicos do mercado ao sector público (Lima, 2007).

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Nas referências comparativas com outras carreiras de estatuto equiparável em Portugal, João Freire apresenta as sucessivas estruturas piramidais dos oficiais do exército, dos docentes universitários, dos enfermeiros, para finalmente as contrapor com a estrutura cilíndrica dos professores. Acaso o autor ter-se-á indagado que as escolas detêm uma elevadíssima concentração de habilitações académicas de topo68.

Após o diagnóstico e o exercício de comparação, a que autor se entregou, desenvolve com inusitada particularidade a sua proposta de organização da carreira docente, fazendo o registo das suas propostas de alteração ao dispositivo legal então em vigor. Finalmente, o autor, em jeito de conclusão, faz algumas reflexões numa lógica de legitimação das propostas enunciadas. No entanto e apesar de anunciar o estudo como sendo comparativo conclui que “ o esforço analítico de comparação da situação actual dos docentes com outras profissões portuguesas e com homólogas carreiras em certos países vizinhos também não pode constituir, verdadeiramente, uma fundamentação para propostas de reorganização do estatuto profissional dos professores” (Freire, 2005, p. 103; itálico do autor).

Perante isto resta saber se a revisão do ECD teve algumas preocupações de revalorização da carreira, da promoção do mérito ou mesmo de qualquer esforço para equipará-la a outras carreiras públicas nacionais, ou a carreiras docentes de outros países. Ou se, pelo contrário, foi só o desacelerar da progressão profissional, da diminuição dos custos, dando expressão a um particular critério meritocrático de recompensa dos melhores, a que subjaz uma lógica diferenciadora, pois, mais oportunidades para todos não significa, necessariamente, as mesmas oportunidades para todos. Como se as oportunidades “de vida, fossem iguais para todos” (Lima, 2007, p. 32).

As organizações sindicais, à data, perante variados constrangimentos, usaram estratégias argumentativas radicadas em diagnósticos simplistas e pretensas evidências, como se pode inferir das declarações do secretário-geral da Federação Nacional da Educação (FNE) “a FNE usará todos os meios que estiverem ao seu alcance para evitar que este estatuto seja aplicado aos professores, nomeadamente através do pedido de intervenção da Assembleia da República”. Mais à frente acrescenta que o ECD “tem características muito negativas e, ao contrário do que diz a ministra da educação, vai ser um factor de perturbação nas escolas”, antecipando que “a profissão docente corre o risco de não ser atractiva para os jovens”69. A Federação Nacional dos Professores (FENPROF), em

68 Cf., Fátima Antunes (2006)

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comunicado,70 refere que “o ECD proposto pelo ME é um insulto aos professores, e será combatido por estes!”.

Licínio Lima em entrevista concedida à Revista SPN Informação sublinha que a revisão do ECD representa uma alteração de paradigma imposto unilateralmente, mesmo sendo globalmente e profundamente rejeitado pelos docentes, pelo “que nunca será o estatuto dos educadores e professores: será sempre o estatuto do Ministério da Educação e que o ministério e o Governo quiseram impor aos professores”71.

Após a aprovação do diploma (ECD) em conselho de ministros (23 de Novembro de 2006), a Ministra da Educação, em conferência de imprensa, desvalorizou os protestos dos sindicatos arguindo que “a história está cheia de episódios em que não houve acordo”. Referindo ainda que, “muitos professores percebem que este novo ECD serve para diferenciar, recompensar e dar maiores responsabilidades aos melhores professores, defendendo a escola pública”. Depois de elencar e justificar algumas das alterações do ECD, reforça o novo sistema de avaliação, por ele preconizado, apelidando-o de “rigoroso” e “consequente”, por conseguinte “representa um estímulo às boas práticas lectivas” e termina reiterando que serão professores titulares “os mais experientes e mais competentes”. O Primeiro-Ministro considerou na mesma data que o ECD é “um passo importante para termos uma educação de excelência e para valorizar a escola pública”. 72

Ao pretender mudar a realidade escolar com estes golpes legislativos, através de uma lógica de imposição, independentemente das circunstâncias e dos contextos, em nome de uma educação de excelência, secundamos Fátima Antunes quando afirma, “parece que o futuro já mora no actual Estatuto e em algumas importantes e singulares características das escolas e o recuo ao fordismo e ao taylorismo vem pela mão da proposta da tutela para a organização social e técnica do trabalho docente e dos docentes” (2006, p. 15; itálico da autora).

Santana Castilho, em carta aberta73 à ministra da Educação responsabiliza-a por quatro anos de educação queimada, advogando que “falhou estrondosamente com o sistema de avaliação de desempenho dos professores, a vertente mais mediática da enormidade a que chamou estatuto da carreira […e.], anda há um ano a confundir classificação do desempenho com avaliação do desempenho”. Também António Barreto refere que “ a situação criada é a de um desastre ecológico.

70 Disponível em http://www.fenprof.pt/?aba=27&cat=100&doc=1855&mid=115 , consultado em Junho de 2009.

71 Cf. Revista SPN Informação, Novembro, 2006, p. 20.

72 Declarações extraídas da Agência Lusa, de 23-11-2006

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Serão precisos anos ou décadas para reparar os estragos. Só uma nova geração poderá sentir-se em paz consigo, com os outros e com as escolas”74

3. O enquadramento normativo da carreira docente promulgado pelo XVII Governo