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A reclamação como meio jurídico necessário na realidade brasileira

O sistema do common law conseguiu desenvolver, a partir das reuniões dos juízes na Câmara Exchequer (Exchequer Chamber), um rico mecanismo para enfrentar a multiplicidade interpretativa, até chegar à doutrina do stare decisis. Foi, sem dúvida, um longo processo histórico, até a consagração definitiva de uma técnica jurídica capaz de debelar, com razoável precisão, o fenômeno da insegurança jurídica gerada pela desobediência aos julgados das instâncias superiores.

Já os países do civil law optaram por deixar ao próprio sistema recursal a incumbência de corrigir tal fenômeno.

O Brasil, entretanto, de modo singular, optou, além do sistema recursal, pela ação reclamatória como meio de conferir à instância superior, de forma direta, conhecer de eventual descumprimento e, se necessário, determinar de imediato a correção do ato reclamado, fazendo com que a instância se alinhe com a decisão paradigma.

Não se trata de exagero ou irreverência jurídica. A reclamação, em nossa realidade, constitui, ao lado do mandado de segurança, um poderoso meio jurídico de garantir a autoridade das decisões dos tribunais, fazendo cumprir o que decidido pela instância superior.

Infelizmente, o nosso sistema recursal não possui agilidade suficiente para corrigir a contento eventual equívoco ou imprecisão no cumprimento de uma decisão judicial pela instância inferior. Deixar para as vias recursais a única opção para a parte interessada fazer valer o seu direito já declarado em decisão judicial, aí sim parece haver algum exagero.

Em outros sistemas jurídicos, apesar de inexistir a reclamação, verifica-se a presença de outros instrumentos que também possibilitam a expedição de ordem direta da instância superior para a inferior. No direito norte-americano, é possível a propositura de writs, que têm significativa preferência sobre os demais processos cíveis. Perante a Suprema Corte americana, o writ of certiorari180 tem grande

relevância para uniformizar o direito e só é admitido por “razões fortes”, por meio da apreciação dos casos mais importantes, de acordo com o próprio julgamento da Suprema Corte.

180 O writ of certiorari é um meio jurídico que possibilita à Suprema Corte americana decidir

discricionariamente se conhece ou não de determinada questão. Sua introdução no sistema jurídico norte-americano deu-se por meio de uma Lei de 3 de março de 1891. O desafio que o certiorari enfrenta é o de conciliar a necessidade de uniformização do direito aplicado em todo o território dos Estados Unidos com as limitações de um tribunal composto por apenas nove juízes. Dessa forma, é visto não como a solução ideal para tornar viável a atuação da Suprema Corte na uniformização do direito vigente, de acordo com o seu próprio julgamento.

Além disso, existe o writ of prohibition, que é considerado um remédio processual emitido pela Corte Superior que impede, proíbe, um juízo ou outro tribunal inferior de exercer jurisdição ou de extrapolar sua competência; e, ainda, no direito estadunidense existe o writ of mandamus, que se constitui em uma determinação para que o agente realize o seu dever de ofício, nas hipóteses em que não tem poder discricionário.

Já em Portugal, apesar de não existir na lei qualquer instituto processual que permita ao Tribunal Constitucional assegurar o cumprimento de seu julgado, tem-se admitido o chamado recurso autônomo com fundamento em violação de caso julgado.

No direito alemão, a lei do Tribunal Constitucional Federal prevê no seu artigo 32º as medidas provisórias (Einstweilige Anordnung) − traduzidas entre nós como

medidas cautelares − para “impedir uma iminente violência ou a partir de uma outra

razão importante, assegurar o bem geral”.

Como se observa, em qualquer sistema sempre acaba sendo desenvolvido pelo sistema jurídico algum mecanismo que de fato permita às instâncias superiores intervir nas instâncias inferiores, com finalidade de fazer cumprir, de maneira imediata, a decisão tomada pelos tribunais. O nosso sistema, nesse ponto, garantiu um grande avanço.

9 O DIFÍCIL DESAFIO: GARANTIR SEGURANÇA JURÍDICA NA

SOCIEDADE COMPLEXA. A FUNÇÃO DA DOUTRINA: VIGILÂNCIA

DO SISTEMA

A complexidade da sociedade gera mais complexidade, de modo que duas opções se impõem ao legislador: lutar contra a complexidade, impedindo-a em sua infinita autorreprodução; ou desenvolver meio jurídicos de adaptação, garantindo uma “estabilidade dinâmica” do sistema social.

Esse fenômeno também foi observado fora da teoria dos sistemas. Dentro do positivismo jurídico é possível se identificar, com muita evidência, a preocupação com a permanente complexidade das relações jurídicas em uma sociedade sempre em mutação, porém, não se tem notícia, mesmo no âmbito desse vigoroso campo teórico, de algum doutrinador propondo a radical conduta de se evitar a contextualização do direito ao caso concreto. Kelsen, como já observado, atribui à indeterminação a razão para a impossibilidade de se prever, à luz do texto de lei, a exata interpretação diante do caso concreto, o que justificaria a liberdade do Judiciário para decidir nos limites da moldura do quadro normativo.

Por sua vez, Herbert Hart, com seu arrojado pensamento, considera a textura aberta semântica do texto da lei o fator decisivo para, nos chamados casos difíceis, surgir a criação do julgador. A sua teoria parte do pressuposto de que a linguagem tem um limite para expressar a mensagem.

Diz ele que “não apenas no terreno das normas, mas em todos os campos da existência, há um limite, inerente à natureza da linguagem, para a orientação que a linguagem geral (da legislação) pode oferecer”.181

Assim, haveria “casos claros”, “simples”, também considerados “fáceis”, e “casos difíceis” para o aplicador. Aqueles, os casos simples, são “casos familiares que reaparecem continuamente em contextos semelhantes, a respeito dos quais

181 HART, Herbert Lionel Adolphus. O conceito de direito. Pós-escrito organizado por Penelope A.

Bulloch e Joseph Raz; tradução de Antônio de Oliveira Sette-Câmara; revisão de tradução de Marcelo Brandão Cipolla São Paulo: WMF Martins Fontes, 2012. p. 164.

existe um juízo consensual quanto à aplicabilidade dos termos classificatórios”182. Já

os casos difíceis surgem quando “a linguagem geral em que a norma se expressa não pode fornecer senão uma orientação incerta, como faria um exemplo igualmente dotado de autoridade”183. Em outras palavras, quer dizer que a linguagem geral em

que a norma se expressa destina-se ao caso evidente, familiar, já que a limitação imposta por essa linguagem impede que o legislador mentalize previamente todas as possíveis combinações que o futuro possa trazer, de modo a oferecer ao aplicador uma legislação tão detalhada que não haveria espaço para opções de escolha para o intérprete, como, aliás, chegaram a pensar os primeiros iluministas. Assim, entre os extremos do lícito e do ilícito estaria a zona duvidosa da força normativa do ato estatal, desafiando a obediência à chamada “estrita legalidade”.

O emprego, então, pelo legislador de uma linguagem com algumas imprecisões semânticas quanto ao alcance, ou seja, com textura aberta, decorre, assim, da incapacidade do homem de prever o futuro.

Como afirma Hart, “a incerteza nas zonas limítrofes é o preço a pagar pelo uso de termos classificatórios gerais em qualquer forma de comunicação referente a questões factuais”.184

E nessas zonas limítrofes estariam presentes os casos difíceis, onde não haveria um consenso sobre a opção correta entre aquelas que se apresentam ao julgador. Segundo Hart, “a necessidade de uma escolha nos é imposta porque somos homens, e não deuses”185, e nesse sentido o ser humano lida

inexoravelmente com duas desvantagens, ao tentar regular antecipadamente e sem ambiguidade algum comportamento por meio de um padrão geral: a nossa ignorância dos fatos e a imprecisão de nosso objetivo (com a edição do padrão geral).

Hart, ao defender o poder da “escolha” nos casos difíceis, aponta que uma forma inadequada de combater tal poder é “congelar o sentido da norma”, de tal

182 HART, Herbert Lionel Adolphus, O conceito de direito, cit., p. 164. 183 Ibidem, p. 165.

184 Ibidem, p. 166. 185 Ibidem, p. 166.

maneira que seus termos gerais passam a ser compreendidos com um único sentido em todos os casos em que se debate a sua aplicação. Isso, segundo ele, traria uma enorme incoerência, por forçar o aplicador a incluir na norma jurídica casos que gostaria de excluir e vice-versa, o que não ocorreria se a linguagem da norma permitisse uma textura aberta.

E, finalmente, ressalta que mesmo no sistema onde vigora o princípio do stare

decisis também existe uma forte resistência ao poder criativo dos juízes, com o uso

de uma retórica institucionalizada, segundo a qual a interpretação jurídica e o manejo dos precedentes para a devida resolução dos conflitos sociais buscam necessariamente uma referência a um direito já anteriormente posto.

Por isso, como profundo conhecedor do direito inglês, esclarece:

Na Inglaterra esse fato (o poder criativo dos juízes) é obscurecido pelo formalismo verbal, pois os tribunais frequentemente desmentem essa função criadora e insistem em que a função adequada da interpretação jurídica e do uso do precedente são, respectivamente, buscar a intenção do legislador e fazer referência ao direito já existente.186

Para Hart, “congelar” o sentido da sentido da norma seria uma forma inadequada de lidar com os casos difíceis, diante de uma multiplicidade de opções de decisão, condicionadas também por inúmeras limitações, seja pela semântica do texto, seja pela incapacidade intelectual do homem em prever o futuro.

Melhor se afigura, pois, a convivência com a instabilidade dentro dos parâmetros admitidos pelos sistemas jurídicos que, em razão da função regulatória das condutas humanas, não pode admitir a mudança brusca de entendimento da jurisprudência e muito menos o descumprimento das decisões das cortes superiores ou das súmulas por elas editadas.

A materialização de controle dessas mudanças necessárias e imprescindíveis desafia a construção de uma cultura de análise e de crítica das decisões judiciais. Teresa Arruda Alvim Wambier informa com conhecimento de causa, como já

mencionado, que os juízes ingleses em regra cumprem os precedentes, com receio de sua reputação ser comprometida em razão de eventuais críticas negativas decorrentes de uma decisão unilateral e fora do contexto do sistema jurídico.

Por isso, nos dias atuais torna-se indispensável o abandono da tradicional concepção de considerar, no Brasil, as decisões judiciais apenas como produto de uma atividade subalterna à imaginada vontade do legislador e imune a qualquer questionamento crítico sobre o seu processo de criação. Antes de tudo, a decisão judicial deve ser vista como uma norma jurídica produzida pelo julgador diante de um caso concreto, cuja particularidade justifica, ou não, um tratamento isonômico diante de um precedente ou de uma jurisprudência já consolidada e, para tanto, é importantíssima a análise dirigida principalmente para as razões lógicas e jurídicas que fundamentam a decisão, vale dizer, ao momento da interpretação/aplicação, pois é nesse instante que costumeiramente surge a incoerência.

Isso, porém, requer uma nova postura na academia, para incentivar o debate de texto e de jurisprudência, porque, não raro, se observa que o ensino do direito, em várias instituições, se restringe ao estudo das fontes do direito (válidas e vigentes), que é importante, mas não pode concentrar com exclusividade o aprendizado dos alunos, esquecendo-se de um ensino mais aprofundado sobre os procedimentos hermenêuticos, estratégia de argumentação jurídica e/ou de teoria da decisão judicial.

Diante desse cenário, João Maurício Adeodato lança forte crítica ao que ele chamada de ensino “mnemônico”, dizendo ao final:

Claro que essas regras de conduta, de primeiro nível, são importantes, pois elas serão alegadas como ponto de partida da interpretação, da argumentação e da decisão jurídicas. Todo argumento dogmático precisa partir de fontes do direito, ou seja, da norma simbólica. O equívoco é concentrar nelas o estudo do direito, que deve atentar para o aprendizado dos métodos e metodologias de interpretação, argumentação e decisão, guiado por regras que não se dirigem diretamente a tratar conflitos de conduta, mas sim conflito entre regras de condutas.187

187 ADEODATO, João Maurício Leitão. Uma teoria retórica da norma jurídica e do direito subjetivo.

A doutrina também deve se voltar de modo crítico para as decisões produzidas por nossos tribunais. Todos os operadores do sistema jurídicos precisam submeter tais decisões ao crivo da coerência e da validade dos argumentos diante das normas vigentes no próprio sistema jurídico. Essa atitude crítica deve criar ambiente favorável de controle sobre as decisões, originando, à semelhança do direito inglês, uma verdadeira rede de defesa contra o decisionismo individual.

A propósito, extremamente pertinente a observação de Willis Santiago Guerra Filho sobre a renovação interpretativa perante a função da dogmática jurídica, segundo a qual:

A compreensão do modo como se deve comportar, a qual em última instância é o que se pretende alcançar, implica, necessariamente, justificações normativas que terminam por se converter em dogmas. Importante, para a salvaguarda do estatuto científico da dogmática jurídica, é não transformá-la em instrumento de imunização desses dogmas à crítica e contra-argumentação racionais (ou “razoáveis”, já que não só fatos, mas também valores, estão envolvidos).188

Desse modo, a instituição da ação reclamatória, embora seja deveras útil, como referido, não é suficiente, pois é importante que a doutrina e academia sejam agentes de transformação para uma nova mentalidade dos operadores do direito, a fim de que tenhamos, aqui no Brasil, um Judiciário cada vez mais comprometido com a previsibilidade, estabilidade do ordenamento em dado momento histórico, para proporcionar aos cidadãos a desejada segurança jurídica.

10 IMPACTO DA RECLAMAÇÃO NO SISTEMA RECURSAL

Tendo o NCPC estendido a todos os tribunais do país a competência para conhecer e julgar a ação reclamatória que tenha por objeto decisões judiciais que afrontem decisões anteriores por eles proferidas ou usurpem a competência desses tribunais, pergunta-se quais os impactos que o sistema recursal sofrerá com essa inovação processual? A reclamação poderá substituir os recursos previstos na legislação?

Como já enfatizado, a doutrina tem dito que constituem pressupostos específicos da ação reclamatória: a) a existência de usurpação de competência; descumprimento de decisão proferida pelo STF ou pelo STJ; contrariedade à súmula vinculante do STF; b) a existência de identidade material entre a decisão reclamada e aquela anteriormente julgada, tida como paradigma (decisão que se quer garantir o cumprimento); e, c) a inexistência de trânsito em julgado.

Durante sua evolução, a reclamação chegou a ser identificada como recurso, conforme defendeu Alcides de Mendonça Lima, após o início da vigência da Constituição de 1988. Vislumbrou esse autor a possibilidade da reclamação se submeter, assim, a todo regramento processual derivado das normas gerais concernentes aos recursos, entre as quais a taxatividade recursal e a unirrecorribilidade (unicidade), implicando dizer que não haveria possibilidade de tramitação conjunta com os já conhecidos recursos ordinários e extraordinários.189

Tal modo de ver a reclamação levaria à conclusão inarredável de que sempre que fosse cabível um recurso, seria inadmissível a reclamação, pois sendo esta um recurso, seria vedada a utilização de outro recurso.

Antes mesmo da vigência da Constituição de 1988, Moniz de Aragão já sustentava o caráter supletivo da reclamação, ao ponderar que “a reclamação é indisfarçadamente, uma medida singular, cujo cabimento é condicionado pela

189 LIMA, Alcides de Mendonça. O poder judiciário e a nova Constituição. Rio de Janeiro: Aide, 1989.

ausência de outra qualquer fórmula normal de submeter um dado tema ao Supremo Tribunal”.190

Esses posicionamentos de Alcides de Mendonça Lima e de Moniz de Aragão tornariam a reclamação um instrumento de pouca ou nenhuma utilização. Difícil ou quase impossível imaginar-se uma decisão das instâncias inferiores que, atualmente, não ensejasse a interposição de um dos recursos tradicionalmente conhecidos. A consequência natural seria um instituto com reduzida capacidade de contribuir para a uniformização do direito e coerência do nosso sistema jurídico.

Entretanto, tanto o STF quanto a moderna doutrina nacional refutam tal entendimento. Como visto, no AgR Rcl n. 3.800/PR (rel. Min Ellen Gracie, j. 02.02.2006) o STF decidiu que a reclamação “não é recurso e não se destina a examinar o ato impugnado com vista a repudiá-lo por alguma invalidade processual- formal ou corrigi-lo por erros em face da lei ou da jurisprudência”.

Na doutrina, Cândido Rangel Dinamarco, com muita precisão, esclarece:

[...] com toda segurança a reclamação consagrada no texto constitucional não é, todavia, um recurso, seja porque não consta entre as modalidades recursais tipificadas em lei (argumento secundário), seja porque não se destina a desempenhar a missão que os recursos têm. Disse Nelson Nery Júnior: “é tarefa exclusiva do direito positivo estabelecer quais desses remédios são efetivamente recursos” e “não se pode determinar um conceito de recurso anterior ao que se encontra regulamentado pelo sistema da lei”. Acima disso, é decisivo para excluir a natureza recursal da reclamação o modo como seu julgamento pelo Supremo Tribunal Federal ou pelo Superior Tribunal de Justiça incide sobre o ato impugnado.191

Leonardo Morato diz serem necessários “temperamentos” na teoria da supletividade, sustentando inexistir vínculo de dependência ou de subordinação entre a ação reclamatória e eventual recurso, afirmando:

Reclamação é medida processual com finalidade diferente de um recurso, muito embora possa, por vezes, abranger o que poderia ser alcançado com o recurso eventualmente cabível. Sendo reclamação uma ação, mais precisamente, um writ, pode ela ser ajuizada contra um ato também passível de um recurso, eventualmente cabível.192

190 ARAGÃO, Egas Dirceu Moniz de. A correição parcial. São Paulo: J. Bushatsky, 1969. p. 113. 191 DINAMARCO, Cândido Rangel, A reclamação no processo civil brasileiro, in Nova era do processo

civil, cit., p. 205-206.

192 MORATO, Leonardo, Reclamação e sua aplicação para o respeito da súmula vinculante, cit., p.

Em seguida, aprofundando a sua exposição, o referido autor argumenta:

Percebe-se, portanto, que, com base na finalidade própria, de cada meio de impugnação disponível, pode uma mesma decisão ensejar um recurso e, também, a via reclamatória. E o resultado do recurso interposto ou não, admitido ou não, provido ou não, é desinfluente para o resultado da reclamação, pela qual se pode, até acabar alcançando, reflexamente, aquilo que poderia ter sido obtido por meio do expediente recursal próprio. Diz reflexamente porque a finalidade da reclamação não é, como já dito, a de fazer as vezes do recurso, mas perfeitamente concebível que a decisão proferida na reclamatória acabe resolvendo a situação da parte sucumbente anteriormente objeto de um recurso, como uma consequência do julgamento. Por isso é incorreto adotar, como regra absoluta, a regra enunciada por boa parte da jurisprudência, de que não se pode lançar mão da reclamatória para fazer às vezes de sucedâneo recursal ou de ação rescisória, pois, em sendo reconhecida a invasão de competência ou a afronta à autoridade das Cortes Superiores, plenamente cabível a reclamação, pois deverá haver, necessariamente, uma decisão que restabeleça a ordem, cujo teor pode coincidir com o que seria objeto do pleito recursal pertinente. Desse modo, a recorribilidade de uma decisão, ou a efetiva interposição do recurso próprio, não são pressupostos para o ajuizamento da reclamação.193

A reclamação, com mais frequência, ocorre na hipótese de descumprimento pelo juízo inferior de decisão proferida pelo tribunal superior. Descumprimento em tal hipótese não exige presença do elemento volitivo por parte do magistrado da instância inferior em querer afrontar a decisão do tribunal, basta que, a título de cumprimento, dê entendimento diverso, aquém ou além do que o tribunal decidiu. Essa particularidade foi observada há muito tempo pelo ministro Orozimbo Nonato, no julgamento da supra citada Rcl n. 141, ao falar da “afronta meramente interpretativa, e não por violência direta”.

Portanto, para caracterizar o descumprimento, a decisão reclamada precisa anular ou produzir efeitos diversos daqueles fixados pela instância superior, independentemente de assim agir propositadamente o juiz da instância inferior.

Na hipótese de descumprimento, na Rcl n. 10.793/SP (rel. Min. Ellen Gracie, j. 13.04.2011), o STF entendeu que as decisões dos juízes de primeiro grau contrárias à decisão do STF devem ser ajustadas pelo tribunal correspondente. A atuação do STF deve ser subsidiária. É o que ocorre na hipótese dos tribunais agirem em desconformidade com o STF. Assim, se houver aplicação equivocada pelo

193 MORATO, Leonardo, Reclamação e sua aplicação para o respeito da súmula vinculante, cit., p.

presidente do tribunal local ou regional quanto ao instituto da repercussão, será o