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A segurança jurídica completa e a doutrina de Hobbes

A busca da segurança não é uma pretensão recente. O direito romano, como nenhum outro, experimentou o desejo de garantir sua manutenção nos diversos cantos da Europa, com o forte apelo a uma segurança jurídica pautada em um ordenamento coerente e estável. Essa estabilidade também foi a bandeira dos protagonistas do movimento iluminista antes e depois da Revolução Francesa, tendo o pensamento da segurança jurídica absoluta fomentado, por longo período, uma ideologia marcadamente voltada para o culto da lei.

Sem dúvida a codificação, a pretexto de combater a incognoscibilidade e a incerteza do direito, elevou a lei à condição de instrumento indispensável para a positivação dos ideais revolucionários de segurança jurídica, de igualdade e de liberdade, dentro de um sistema que deveria ser considerado completo e isento de lacunas, cuja estrutura aceitava e disseminava a visão de Hobbes, no sentido de que o Estado (criado pelo contrato social) teria a função de limitar as liberdades ilimitadas, tornando efetivos os direitos subjetivos, com base na força pública.

A doutrina jurídico-político de Thomas Hobbes é um marco na evolução do direito no mundo ocidental porque enuncia o prelúdio da concepção positivista do

46 STERN, Klaus. Das Staatsrecht der Bundesrepublik Deutschland. 2. ed. 1984, apud CHEVALLIER,

direito, ao defender a figura do Estado legislador e centralizador na produção de lei como instrumento regulador das condutas humanas.

Na construção hipotética do contrato social, Hobbes atribui à lei uma finalidade precisa, que é a de assegurar a paz, que só pode ser atingida numa condição de absoluta subordinação dos indivíduos à autoridade do Estado Leviatã, exercida por um homem ou por uma assembleia de homens. A necessidade de o homem evitar o estado de natureza − um estado essencialmente bélico, em que todos guerreiam contra todos e no qual a paixão suplanta a razão − é elevada à condição decisiva para a associação entre os homens. E tal associação só se torna possível quando todos renunciam os plenos poderes e direitos, para que o Estado assuma o poder de mando por meio da lei, de maneira exclusiva. Esse poder absoluto, o summum imperium, confere ao soberano, e somente a ele, o poder de monopolizar a fonte do direito por meio da edição de leis, que representa uma vontade única decorrente de todas as vontades.

A propósito, encontra-se no Leviatã a seguinte passagem:

A única maneira de instituir tal poder comum , capaz de os defender das invasões dos estrangeiros e dos danos uns dos outros, garantindo-lhes assim uma segurança suficiente para que, mediante o seu próprio labor e graças aos frutos da terra, possam alimentar-se e viver satisfeitos, é conferir toda sua força e poder a um homem, ou a uma assembleia de homens, que possa reduzir todas as suas vontades, por pluralidade de votos, a uma só vontade. Isso equivale a dizer: designar um homem ou uma assembleia de homens como portador de suas pessoas, admitindo-se e reconhecendo-se cada um como autor de todos os atos que aquele que assim é portador de sua pessoa possa praticar ou levar a praticar, em tudo o que disser respeito à paz e à segurança comuns; todos submetendo desse modo as suas vontades à dele, e as suas decisões à sua decisão.47

Hobbes fala, então, de uma “unidade de todos, numa só e mesma pessoa” que, por sua vez, fundamenta a ação do soberano de maneira absoluta e ilimitada por meio da edição de leis, sem, todavia, aceitar a autolimitação do poder do Estado pelo direito. Afinal, o Estado deve objetivar sempre e em toda a parte a paz, a segurança dos indivíduos, e essa busca não conhece limites na ação estatal, pois o

47 HOBBES, Thomas. Leviatã, ou matéria, forma e poder de uma república eclesiástica e civil.

Tradução de João Paulo Monteiro e Maria Beatriz Nizza da Silva. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2008. p. 147.

insucesso do Estado nessa atividade autoriza todo homem “a procurar e usar todas as ajudas e vantagens da guerra”48, o que ocasionaria a volta ao estado de

natureza.

A aceitação do poder absoluto do soberano após o contrato, porém, não implica a defesa de uso de seus poderes para a satisfação de seus próprios interesses, tese que posteriormente a obra de Montesquieu vai refutar, com base no argumento de base psicológica de que todo aquele que tem poder tende a dele abusar. Hobbes deixa claro que o agir do homem para a satisfação de seus interesses e pendores pessoais é próprio do estado de natureza. Nesse estado, o homem age necessariamente sem os ditames da razão. Por isso, na vigência do pacto pela paz, o homem deveria observar o dever de gratidão, não agir com sentimento de vingança e, no âmbito mais próximo do direito, que os homens “não arbitrem em seu favor”, que as disputas sejam levadas a um juiz imparcial e que o juiz ouça terceiros quando as partes não elucidarem a questão.

Como bem pondera Miguel Reale, tanto na obra de Rousseau quanto na doutrina de Hobbes, o contrato social nunca foi um fato histórico. Ambos não concebem o contrato como um fato que realmente ocorreu na evolução histórica da humanidade, por ocasião da passagem do estado selvagem para o suposto estado civilizado que, segundo o esse autor, teria sido vislumbrado por Altúsio e por Grócio.49

Assim, para Hobbes, em tese é possível o retorno ao estado de natureza, bastando que os homens abandonem os regramentos fixados pela razão e deem vazão aos sentimentos de cunho pessoal.

A lei estatal, produto da razão, deve ser entendida como instrumento de realização da paz para a boa convivência, num estado que não seja de guerra de todos contra todos. Essa lei, todavia, deve se conformar com a lei da natureza, pois as leis civis só adquirem sentido e utilidade quando a ela remetidas, já que são

48 HOBBES, Thomas, Leviatã, ou matéria, forma e poder de uma república eclesiástica e civil, cit., p.

113.

vocacionadas a viabilizar e assegurar a realização da paz e da segurança de todos. As leis da natureza e as leis civis têm a mesma extensão, se inserem umas nas outras e são reveladas por uma razão de cunho utilitarista, visando ao controle da sociedade.

Nas palavras de Alysson Leandro Mascaro, tanto em Do cidadão quanto no

Leviatã, Hobbes menciona a existência de leis que precedem a vida sob o pacto

social, as leis da natureza, cuja essência assim relata em Do cidadão:

[...] a verdadeira razão é uma lei certa, que (já faz parte da natureza humana, tanto quanto qualquer outra faculdade ou afecção da mente) também é denominada natural. Por conseguinte, assim defino a lei da natureza: é o ditame da reta razão no tocante àquelas coisas que, na medida de nossas capacidades, devemos fazer, ou omitir, a fim de assegurar a conservação da vida e das partes dos nossos corpos.50

À luz dessa definição, Jean-Cassei Billier e Aglaé Maryioli esclarecem com precisão que embora o pensamento hobbesiano recuse o dualismo da tradição jusnaturalista clássica entre direito natural (não estatal) e direito positivo (estatal), decide, porém, manter “as leis da natureza” como paradigma central apenas para justificar o respeito e cumprimento das leis do soberano como única maneira para o convívio pacífico entre os homens. Seria assim “um princípio teleológico racional, porquanto toda arquitectura do sistema jurídico-político se funda no desígnio original da paz e da segurança”.51

O artificialismo metodológico de Hobbes, embora reconheça num primeiro momento “as leis da natureza”, abre mão, posteriormente, de sua existência e importância durante o pacto social, ao reconhecer o Estado como a única instituição dotada de capacidade de produzir leis e de exigir o seu cumprimento.

A visão positivista do direito de Hobbes não se iguala às doutrinas modernas do positivismo jurídico, na medida que recusa a autolimitação do Estado por suas próprias leis e nega a neutralidade axiológica do sistema jurídico, ao atribuir às leis a função específica de manter a paz.

50 MASCARO, Alysson Leandro. Filosofia do direito. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2012. p.167.

51 BILLIER, Jean-Cassien; MARYIOLI, Aglaé. História da filosofia do direito. Tradução de Pedro

Norberto Bobbio, ao tratar dos pressupostos históricos do positivismo jurídico, vislumbra a doutrina hobbesiana sobre o direito como uma visão precursora do positivismo jurídico. Para ele, o filósofo inglês qualifica o direito com dois caracteres típicos da concepção positivista (formalismo e imperativismo). Diz Bobbio que, para Hobbes, “direito é o que aquele ou aqueles que detêm o poder soberano ordenam aos seus súditos, proclamando em público e em claras palavras que coisas eles podem fazer e quais não podem”.52

Do mesmo modo, Tércio Sampaio Ferraz Junior lembra que:

De fato, quando no início do Capítulo 26 do Leviatã, a propósito das leis civis, Hobbes as define como leis que os homens estão obrigados a obedecer porque são membros, não desta ou daquela Commonwealth em particular, mas de uma Commonwealth, o seu modo de falar toma características extremamente hodiernas, parecendo que estamos a ouvir um teórico geral do direito à moda, por exemplo, de Hans Kelsen.53

Aliás, tanto em Kelsen como em Hobbes, a lei é um comando cujos destinatários estão obrigados a obedecer tendo em vista a competência de quem a edita, sendo o fundamento de validade para aquele a “norma fundamental”, enquanto para este, a vontade do soberano em busca da segurança e da paz. Ainda, ambos defendem a existência de uma única interpretação correta da lei, que seria revelada sem a interferência das paixões e ideologias do intérprete.

Hobbes, em razão da finalidade, a utilidade da lei (destinada a assegurar a boa convivência entre os homens) se revela sempre boa. Cabe apenas ao intérprete e ao julgador descobrirem qual é a lei boa, útil e eficaz.

Por isso, como bem esclarece Tércio Sampaio Ferraz Junior, para Hobbes não é a jurisprudência (a sabedoria dos julgadores que faz as leis), mas a razão da sociedade civil, devendo “cada juiz guiar-se, nas suas sentenças, pela razão que

52 BOBBIO, Norberto. O positivismo jurídico: lições de filosofia do direito. Compilação de Nello Morra;

tradução e notas Márcio Pugliesi, Edson Bini e Carlos E. Rodrigues. São Paulo: Icone, 1999. p. 36.

53 FERRAZ JUNIOR, Tércio Sampaio. Estudos de filosofia do direito: reflexões sobre o poder, a

move o soberano ao fazer a sua lei; caso contrário, sua sentença será um comando apenas privado e, assim, injusto”.54

A teoria de Hobbes provocou forte impacto no caloroso debate sobre a codificação na Inglaterra, ao se posicionar contra o próprio sistema do common law, baseado nas decisões dos juízes, ou seja, com base nos precedentes (stare

decisis). Entretanto, não teve sucesso na sua pretensão codificadora. A tradição do common law levou à consolidação definitiva de uma atitude anticodificadora, que

melhor atendia às razões para o equilíbrio entre os poderes e a autonomia do Poder Judiciário inglês.

Posteriormente, com o advento da Revolução Francesa, a lei passou a ser vista como instrumento de positivação dos ideais iluministas, como forma de superar as regras jurídicas vigentes no antigo regime que, além de representarem a tradição absolutista, possibilitavam desmesurado poder decisório aos juízes. É que, à época, a situação do direito era confusa no território francês, em virtude da pluralidade de fontes e a sobreposição de diversas normas consuetudinárias, causando a incognoscibilidade e a incerteza das normas vigentes que, por consequência, davam aos julgadores poderes ilimitados, inclusive de se absterem de proferir decisões.

A desconfiança nos juízes e a exigência de garantir os direitos recém- conquistados pela burguesia produziram a necessidade de se ter a certeza do direito, e isso somente seria possível por meio de textos normativos escritos, positivados, à moda da tradição iluminista, ou seja, com a crença de que a razão poderia por intermédio do legislador estabelecer na lei, de modo incontroverso, um direito cognoscível seguro para todas as relações humanas. A razão humana surgiu, então, como manancial de conhecimentos claros e distintos, capazes de orientar, como uma verdadeira bússola, a espécie humana, que se julga capaz de decidir por si mesmo o seu destino.

54 FERRAZ JUNIOR, Tércio Sampaio, Estudos de filosofia do direito: reflexões sobre o poder, a

O dogma da onipotência do legislador, conforme bem registra Gianluigi Palombella55, passou por Rosseau, Sieyés, Kant e Cesare Beccaria. Por sua vez, na

polêmica entre Savigny e Thibaut, em 1804, sobre a possibilidade de uma codificação para a Alemanha, houve profundo debate a respeito da adoção de leis escritas, tendo Thibaut apontado como vantagem da lei escrita a criação de um direito civil próprio e geral para a Alemanha e não herdado (como era o direito romano), enquanto Savigny combatia a submissão da sociedade ao arbítrio do legislador e a redução da ciência jurídica a uma prática passiva e mecânica, despida de qualquer capacidade criativa.