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O legalismo, então, estabeleceu suas bases fundamentalmente na figura da lei como expressão da “vontade geral” e, a partir daí, firmou-se na ideia de que a lei é criada para proteger os cidadãos contra o direito divino dos reis, que assegurava privilégios feudais da aristocracia contidos nas regras costumeiras e unilaterais do antigo regime. Em nome dessa proteção anunciou-se, tanto para os detentores do poder, quanto para o próprio cidadão, regra segundo a qual nenhum direito, nenhuma obrigação ou restrições a direito seriam reconhecidos sem a edição de lei, vale dizer, sem a participação do povo ou de seus representantes.

Além disso, a desconfiança na pessoa dos juízes, mais precisamente quanto à sua imparcialidade na condução das ações judiciais, levou ao desenvolvimento da ideia de que, diante do direito positivado, o magistrado, em nome da legalidade e da manutenção da “vontade do legislador”, entendida como a “vontade geral” expressada no parlamento, deveria adotar uma postura passiva e mecânica, de absoluta sujeição ao texto da lei.

E isso seria possível porque o movimento da codificação divulgou o falso pressuposto de que o sistema jurídico iria sempre, em qualquer momento histórico, pautar-se como um sistema completo, coerente e isento de lacunas, e se

55 PALOMBELLA, Gianluigi. Filosofia do direito. Tradução de Ivone C. Benedetti. São Paulo: Martins

manifestaria por meio de uma linguagem concisa e clara, o que lhe daria a capacidade de proporcionar pleno conhecimento e aceitação por todos, evitando a prática de qualquer contextualização ou interpretação.

Foi nesse contexto ideológico que surgiu uma das mais relevantes produções do movimento da codificação, o Landrecht − Código Prussiano de 1794 − inspirado no pensamento de Leibnitz e que tinha como ponto central a segurança jurídica, pela via da concisão e da clareza dos seus enunciados normativos. Antes já havia sido elaborada a Constituição Francesa em 1791, prevendo leis civis, e depois, em 1804, apareceu o Código de Napoleão de 1804.

O Código Prussiano continha expressamente a proibição de interpretação pelo juiz e a obrigação do julgador de resolver os casos dúbios, para evitar o non

liquet. Todavia, como mecanismo para suprir eventual lacuna, antinomia ou simples

contextualização, o Código previa a possibilidade de o julgador recorrer à comissão legisladora para obter uma interpretação autêntica. Assim, embora nessa sistemática o próprio legislador revelasse, naquela época, a necessidade permanente do texto de lei evoluir para alcançar novos parâmetros sociais, ante o crescente aumento da complexidade da vida social, difundia-se, por outro lado, pela proibição da interpretação, o entendimento de que a verdade jurídica é revelada pela simples observação do intérprete, em posição de extrema neutralidade diante do texto da lei.56

Tal tradição positivista legalista passou a ser a doutrina defendida pela escola da exegese, que marcou profundamente o modo de pensar dos juristas ocidentais no século XIX, não só na formulação da ciência jurídica, como na compreensão das tarefas dos julgadores e das próprias instituições judiciais, qual seja, declarar e expor as regras jurídicas postas pelo soberano, sendo praticamente imperdoável admitir a possibilidade do juiz, ao decidir os casos concretos, criar normas jurídicas.

56 Tércio Sampaio Ferraz Junior relata que na Antiguidade já havia registro de exemplos de

“rompimento radical” com a tese de que não há norma sem interpretação, como “a conhecida proibição de Justiniano de que se interpretassem as normas de seu Corpus Juris” (FERRAZ JUNIOR, Tercio Sampaio, A ciência do direito, cit., p. 68).

Ainda em relação à estrutura do Poder Judiciário, a existência de instâncias julgadoras em nível superior se justificaria basicamente pelo fundamento de haver asserções errôneas sobre o texto da lei, ou seja, pela possibilidade de o juiz que primeiro conheceu a causa ter se equivocado ao examinar as circunstâncias do caso em julgamento ou de não ter sido capaz de compreender e reconhecer as regras que disciplinam tais fatos.

Essas ideias, expressão máxima do conceito de segurança absoluta, não tardaram a se revelar como inusitada ficção. Isso porque o dinamismo das relações humanas não poderia jamais se conformar a um disciplinamento concebido para ser estático, essencialmente imóvel. Constatou-se que a construção de ordenamentos jurídicos produz grande déficit normativo diante da realidade social, que por sua vez gera antinomias, imprecisões e lacunas que precisam da intervenção do intérprete para lhe dar coerência sistêmica e aplicação razoável. Jerome Frank, por exemplo, tornou-se referência, ao criticar a segurança absoluta, indagando:

Por que os homens buscam uma certeza irrealizável no Direito? Por que, dizemos nós, eles ainda não abandonaram o desejo infantil de um pai com autoridade, e inconscientemente tentam encontrar no Direito um substituto para aqueles atributos de firmeza, convicção, certeza e infalibilidade atribuídas ao pai na infância?57

Na atualidade é absolutamente inconcebível o regramento específico e detalhado de todas as formas de relacionamento humano.

Além disso, no processo criativo da norma jurídica individual e concreta, o intérprete vale-se da linguagem como instrumento de compreensão e reprodução dos significados obtidos a partir da norma jurídica geral e abstrata. Tem-se modernamente a ideia de que dos textos de lei não se consegue revelar o seu conteúdo, antes o intérprete lança sua compreensão, instaurando um processo de construção de significados fundados pelos valores historicamente vividos na sociedade.

57 FRANK, Jerome. Law and the modern mind. New Brunswick: Transaction, 2009. p. 22, apud ÁVILA,

Humberto, Segurança jurídica: entre permanência, mudança e realização no direito tributário, cit., p. 132.

Apesar disso, não raro se observa parte da doutrina, com nítido viés conservador, propugnar pela deferência exagerada a uma legalidade estática, única e universal, incentivando sobremaneira a manutenção da crença de ser possível o desenvolvimento da ciência jurídica com base no postulado da “verdade por correspondência”, defendida pelo pensamento de Aristóteles. Hoje é questionável afirmar-se que a verdade no mundo científico estaria livre de qualquer manifestação subjetiva do sujeito cognoscente e que apenas refletiria o dado empírico colhido no âmbito da investigação. Mais ainda, imaginar que a exata prescrição normativa seria possível de se extrair do texto da lei apenas com simples manejo adequado do método lógico-formal, o qual, por sua vez, asseguraria a única opção cabível no momento da aplicação do direito.

A tradição legalista teima insistentemente em condicionar, nos dias atuais, às vezes com certa evidência, às vezes veladamente, o modo de pensar de grande parte da comunidade jurídica, ao considerar como praticamente imperdoável, por conta da segurança e da igualdade jurídicas, se admitir a possibilidade do intérprete produzir significados a partir do texto de lei.

Portanto, a proibição da interpretação concebida no vetusto legalismo continua servindo de instrumento de contenção argumentativa do poder criativo do julgador, como se a presença do seu elemento subjetivo, por si só, tivesse o condão de projetar a sua interpretação para o estado de natureza hobbesiano, no qual moram o arbítrio, a vingança e insegurança.

Para alguns, o instituto da reclamação não deixa de considerar tais aspectos na sua previsão legal, por ensejar eventual engessamento das concepções normativas de determinado momento histórico. Sustentam que, desde a sua origem, sempre preservou como um de seus pressupostos a certeza de que o comando contido nas decisões do STF e do STJ, em qualquer condição, revela uma única opção de cumprimento, não havendo outras alternativas, ante a impossibilidade de contextualização do julgado, em face da realidade fenomênica.

5.3 A descrença na segurança jurídica e a indeterminabilidade da