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Mais um avanço: as novas tendências no novo Código de Processo Civil

No NCPC, a reclamação encontra-se prevista entre os artigos 988 a 993, que formam o Capítulo IX do Titulo I (Da ordem dos processos e dos processos de competência originária dos tribunais) do Livro III (Dos processos nos tribunais e dos meios de impugnação das decisões judiciais).

Pela primeira vez o legislador inseriu no Código de Processo Civil o disciplinamento da reclamação, tendo assegurado, de modo genérico, o seu manejo contra decisão judicial de primeira instância que porventura venha a desrespeitar julgamento, de qualquer natureza, oriundo do respectivo tribunal (estadual ou regional), principalmente como instrumento eficaz para garantir a observância de “precedente proferido em julgamento de casos repetitivos ou em incidente de assunção de competência” (art. 988, inc. IV).

O instituto da assunção de competência objetiva uniformizar decisão no âmbito dos tribunais “quando o julgamento de recurso, de remessa necessária ou de processo de competência originária envolver relevante questão de direito, com grande repercussão social, sem repetição em múltiplos processos” (art. 947) e quando “ocorrer relevante questão de direito a respeito da qual seja conveniente a

prevenção ou a composição de divergência entre câmaras ou turmas do tribunal” (art. 947, § 4º).

Dentre esse rol de novidades, o grande destaque é a instituição do incidente de demandas repetitivas. Pelo artigo 976 do NCPC, “é admissível o incidente de resolução de demandas repetitivas quando houver, simultaneamente, efetiva repetição de processos que contenham controvérsia sobre a mesma questão unicamente de direito e risco de ofensa à isonomia e à segurança jurídica”. Pressupõe, assim, enunciado prescritivo (tese jurídica) como fonte de interpretações díspares a ponto de comprometer a harmonia do sistema jurídico com a instauração de insegurança jurídica por conta de decisões conflitantes.

Além disso, outro destaque importantíssimo é a ampliação dos tribunais para processar e julgar a reclamação. Antes apenas o STF e o STJ eram os tribunais competentes para conhecer e apreciar a ação reclamatória40, agora todos os

tribunais do país poderão ser destinatários da reclamação.

Em síntese, tanto os tribunais estaduais quanto os Tribunais Regionais (Federais, Eleitorais e do Trabalho), além da Justiça Militar, são hoje competentes para a ação reclamatória, na hipótese de que suas decisões venham a ser descumpridas ou tenham sua competência usurpada. Assim fez o legislador, com a nítida atenção voltada para a segurança jurídica e a uniformização da jurisprudência dos tribunais. Mas, afinal, o que significa essa tão almejada segurança jurídica? As decisões dos tribunais podem ensejar novas interpretações?

Visando a resguardar a utilidade das respostas a tais indagações, torna-se necessário, em primeiro plano, questionar-se: As alterações promovidas pelo legislador infraconstitucional têm amparo na Constituição Federal? Poderia ele dispor sobre a reclamação em lei ordinária ou trata-se de matéria reservada ao poder constituinte?

40 Também se defendia a sua utilização no âmbito do STM, ante a previsão da Lei n. 8.457/92, e no

TSE, sob o argumento de que o Código Eleitoral foi recepcionado como lei complementar e que, em seu artigo 21, existe regra obrigando os tribunais e juízes inferiores a dar imediato cumprimento às ordens emanadas do TSE.

4 DA (IN)CONSTITUCIONALIDADE DAS NOVAS TENDÊNCIAS

Surge de imediato, forte desconfiança quanto à atitude do legislador infraconstitucional ao modificar o alcance da reclamação em sede de lei ordinária, atribuindo-lhe novas tendências. Afinal, em face da redação original do texto constitucional, firmou-se o entendimento de que a reclamação seria um remédio de proteção da competência do STF e do STJ e de garantia da autoridade de suas decisões. E mais, consolidou-se o entendimento de que não seria possível o seu manejo perante os Tribunais Regionais Federais, Tribunais Regionais do Trabalho e Tribunais de Justiça do Distrito Federal e dos Estados.

É cediço que no direito constitucional vigora o entendimento de que as leis ordinárias têm competência material residual, ou seja, o que a Constituição Federal não determinou que é tratado por norma jurídica específica, será tratado por uma lei ordinária. Assim, quanto ao âmbito de incidência, considera-se que as leis ordinárias poderão tratar quaisquer matérias, exceto aquelas que não estão reservadas às lei complementares, aos decretos legislativos e às resoluções, e não estejam encartadas no conceito de cláusulas pétreas. Na hipótese, o instituto da reclamação não se enquadra entre as matérias pertencentes a tais exceções. Pelo contrário, a ausência de seu disciplinamento mais específico aponta que o próprio constituinte atribuiu ao legislador infraconstitucional o poder/dever de tratar da ação reclamatória em seus pormenores.

A ampliação de sua abrangência, por sua vez, não lhe retira a missão outorgada pelo constituinte originário. Simplesmente, vai além. Busca o legislador otimizar o seu uso dentro daquele desiderato primeiramente concebido, ou seja, de garantir segurança jurídica e isonomia na prestação jurisdicional. Pelo contrário, as novas tendências da reclamação vêm prestigiar o cidadão, verdadeiro destinatário dos serviços públicos, com um Poder Judiciário mais seguro e previsível.

O simples fato de o legislador infraconstitucional elencar apenas as decisões judiciais em sede de controle concentrado (abstrato) de constitucionalidade, deixando de mencionar as proferidas no âmbito do controle difuso como objeto de

reclamação, não quer dizer que houve restrição indevida do entendimento jurisprudencial anterior no sentido de que o termo “decisões”, mencionado no texto constitucional, contemplava as duas espécies de controle de constitucionalidade. Ora, no inciso II do artigo 988 do NCPC, fica evidenciado que a reclamação objetiva assegurar a autoridade das decisões de todos os tribunais do país, sem qualquer restrição quanto à sua natureza, podendo ser de cunho material ou processual, incidental ou de mérito, cautelar ou não. Nesse sentido, tal inciso teria maior abrangência do que inciso III, servindo este como espécie, em relação ao inciso anterior.

Com outros argumentos, antes do NCPC já existiam no campo doutrinário específico do tema vozes que propugnavam pela utilização da ação reclamatória perante todos os tribunais do país, na linha do que vem previsto nas novas tendências da ação reclamatória.

A argumentação mais contundente se fundamentava na ideia de que a sua utilização nos Tribunais de Justiça e nos Tribunais Regionais não poderia depender de prévia previsão em legislação federal ou estadual, pois a Constituição Federal apenas acolheu em seu texto um princípio implícito existente à época de sua promulgação, qual seja, de que os tribunais, de modo geral, têm poderes implícitos, necessários ao exercício de seus poderes explícitos.

De fato, o reconhecimento da reclamação como instituto jurídico em nosso sistema jurídico deveu-se ao entendimento do STF de que a teoria dos poderes implícitos teria aplicação na hipótese de descumprimento de suas decisões, posto que, na condição de corte de revisão, à época, não tinha meios de fazer valer a autoridade de seus julgados direta e imediatamente.

Assim, à luz do princípio da simetria, é possível concluir que os Tribunais de Justiça e os Tribunais Regionais, como instâncias revisoras, também são destinatários das mesmas razões vistas pelo constituinte para prever a reclamação no STF e no STJ, não existindo razão plausível para se restringir a aplicação da teoria dos poderes implícitos apenas em alguns de tribunais.

A propósito, no julgamento da ADI n. 2.212-1/CE, em 2003 (rel. Min. Ellen Gracie), o STF entendeu que a adoção pelo Estado membro do instituto da reclamação, pela via legislativa local, vale dizer, por meio de preceito na Constituição Estadual, "não implicava em invasão da competência privativa da União para legislar sobre direito processual".

Além disso, naquele julgamento, a Suprema Corte enfatizou que a admissão da reclamação pelos Estados membros está em sintonia com os princípios da simetria e da efetividade das decisões judiciais. No seu voto, a ministra Ellen Gracie afirmou:

Evita-se, por essa via, no caso de ofensa à autoridade de um julgado, decorrente, por exemplo, de uma interpretação que extravase os seus limites, o caminho tortuoso e demorado dos recursos previstos na legislação processual, inegavelmente inconvenientes quanto já tem a parte uma decisão definitiva, transitado em julgado. Não vejo porque não se possa, no âmbito estadual, em nome do princípio da simetria, dotar os Tribunais de Justiça desse instrumento, para garantir a autoridade de suas decisões que, não impugnadas pela via recursal, tenham ali mesmo transitado em julgado.

Reforçando o entendimento da relatora, o ministro Sepúlveda Pertence, com bastante clareza, complementou:

Não obstante, já mais de uma vez, sustentei que os tribunais têm poderes implícitos, necessários ao exercício de seus poderes explícitos. Um deles é o poder cautelar. Foi com base nesta percepção que o Supremo construiu a medida cautelar em ação direta de inconstitucionalidade, antes de sua consagração no texto constitucional, e veio a construir, já sob a vigência da atual Constituição, a medida cautelar na ação declaratória de constitucionalidade. Outra manifestação de poder implícito dos tribunais é o poder de dar efetividade às suas próprias decisões e o de defender a própria competência, a partir do qual o Supremo criou, para si mesmo, o instituto da reclamação.

Porém, votaram pela procedência da ADI, e tiveram os votos vencidos, os ministros Maurício Corrêa, Moreira Alves e Sydney Sanches, que defenderam a tese de que a reclamação é instituto de direito processual e que, portanto, só poderia ser estabelecida por meio de lei federal e não por lei estadual.

Ney Moura Teles defende a utilização da reclamação nesses tribunais, independentemente de qualquer previsão legal. Para tanto, sustenta que:

O princípio da efetividade das decisões judiciais obriga o conhecimento da reclamação porquanto não pode o cidadão que tem, a seu favor, uma decisão judicial com trânsito em julgado, ficar à mercê da boa vontade do destinatário da ordem judicial. Insuficiente que tenha ele apenas o direito de oferecer representação para apuração da possível prática de delito de desobediência, a qual, como é cediço, não tem o condão de, por si só, fazer efetiva a decisão desobedecida.41

E ainda, complementa, afirmando:

Pela teoria, quando a um órgão ou ente é deferida a competência para determinado ato, outorga-se-lhe, igual e simultaneamente, todos os meios necessários ao exercício das atividades a que corresponde tal competência, dentre eles, os poderes necessários à irradiação no mundo fático do ato ou da decisão que prolatar em razão daquela competência.42

Para então concluir que:

A inexistência de previsão os regimentos internos dos TRFs não pode obstar o conhecimento do remédio da reclamação, pela incidência da teoria dos poderes implícitos, do princípio da efetividade das decisões judiciais, da simetria com o centro, e da interpretação sistemática do ordenamento brasileiro, com atenção à equidade, à isonomia e à analogia.43

Portanto, não há que se falar em inconstitucionalidade na atitude do legislador infraconstitucional ao prever para todos os tribunais do país a possibilidade de julgarem ação reclamatória, diante de eventual usurpação de competência ou de desrespeito aos seus julgados, máxime em se tratando de incidentes de resolução de demanda repetitiva ou de assunção de competência.

Em síntese, a atual disciplina contida no NCPC não só corrige uma distorção de poderes entre os tribunais, igualando e municiando todos eles com um meio rápido e eficaz contra eventuais imperfeições no cumprimento da decisão paradigma, como contribui para o aperfeiçoamento do sistema jurídico, com mais coerência e segurança, em caso de aplicação de suas normas.

41 TELES, Ney Moura. A reclamação nos tribunais regionais federais. In: NOGUEIRA, Pedro Henrique

Pedrosa; COSTA, Eduardo José da Fonseca (Orgs.). Reclamação constitucional. Salvador: JusPodivm, 2013. p. 376.

42 Ibidem, p. 377. 43 Ibidem, p. 378.

Então, mais uma vez, qual o sentido e alcance dessa segurança jurídica? Haveria, de fato, meios jurídicos para assegurar a determinação, a previsibilidade e a cognoscibilidade dos comandos deônticos prescritos pelo legislador?

5 SEGURANÇA JURÍDICA NO ESTADO DE DIREITO

O advento do Estado moderno foi calcado na ideia de superação de antigas práticas absolutistas que vilipendiavam a integridade física e moral das pessoas. A nova ordem jurídica, concebida à luz do pensamento iluminista, passou a rejeitar os postulados "rex est lex" (o rei é a lei) e "the king can do no wrong" (o rei não responde por seus atos).

E, na resistência contra a opressão, a modernidade construiu verdadeiras muralhas jurídicas contra o arbítrio, erguidas na concepção legalista de que a lei seria o único mecanismo capaz de garantir o surgimento de um Estado livre da vontade única do soberano. Instituir leis que amparassem os novos ideais revolucionários seria estabelecer fundamentos de um novo pacto social, seria a grande tarefa a ser cumprida para uma sociedade mais igual, fraterna e garantidora das liberdades, o que mais tarde se traduziria na afirmação da liberdade do comércio, da expressão, da iniciativa empreendedora, enfim na formulação dos limites do Estado de Direito, onde, segundo Tércio Sampaio Ferraz Junior, o homem assume papel ambíguo perante o direito: "Fundamento de todas as positividades, o homem é também o seu objeto central."44

E, como bem sintetiza Jacques Chevallier, a nova ordem jurídica nesse novo contexto sufraga o pleno normativismo, pois:

O Estado de Direito se assenta, assim, sobre o fetichismo da regra: a norma jurídica tende a ser tomada como a própria realidade, capaz de fazer advir o que enuncia; e a passagem pela forma jurídica vem constituir a sua garantia suprema. Essa confiança depositada no direito não é somente de ordem racional; ela decorre de um jogo de crenças mais profundas; além do seu conteúdo concreto e de seu alcance prático, a norma jurídica é aureolada com um halo místico investida dessa dimensão sagrada, que se encontra já concepção “rousseauista” da lei. E é precisamente nesse ponto que o mito vem substituir a realidade, dando ao Estado de Direito todo seu alcance: o Estado de Direito não se reduz, de fato, a uma construção racional, a um desenho formal, mas ele se apoia sobre um investimento afetivo; e é essa mística que faz com que ele não seja somente um artifício, uma fórmula mistificadora, mas sim uma coerção efetiva, tanto os destinatários como os produtores da norma.45

44 FERRAZ JUNIOR. Tercio Sampaio. A ciência do direito. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2012. p. 42. 45 CHEVALLIER, Jacques. O estado de direito. Tradução de Antonio Araldo Ferraz Dal Pozzo e

E mais adiante, o autor conclui, citando as palavras de K. Stern:

O Estado de Direito significa que o poder estatal somente pode ser exercido sobre o fundamento de uma Constituição e de leis conformes à ela, do ponto de vista formal e material, a ela, e com a finalidade de garantir a dignidade do homem, a liberdade, a justiça e a segurança jurídica.46

Essa referência à segurança jurídica denota a necessidade da promoção de uma ordem jurídica profundamente fecunda e adaptável sempre aos novos padrões de comportamento social, gestados em uma sociedade que a cada dia assume, de maneira permanente, novas formas e modos de garantir a pacificação social.