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Um meio termo: a segurança jurídica moderada e o equilíbrio de Luhmann

Apesar das críticas lançadas por Jerome Frank sobre a segurança jurídica e da ausência, nos dias atuais, de uma definição precisa do termo “segurança jurídica” entre os doutrinadores, principalmente em nosso país, não se pode negar que um estado de segurança mínimo nas decisões judiciais seja uma das pretensões do próprio ordenamento jurídico. E tal pretensão não pode ser reduzida, repita-se, a uma visão estritamente legalista, muito menos menosprezada por uma visão cética, propagadora de uma inaceitável impossibilidade total de segurança jurídica.

Com efeito, a noção de segurança jurídica é inerente à própria ideia de direito. Faz parte do próprio conceito do direito, como instrumento de regulação dos comportamentos humanos em sociedade, circunstância que tem ensejado a máxima

fundada nas ideias de Luhmann de que, sem um mínimo de certeza, de eficácia e de ausência de arbitrariedades, não se pode, a rigor, falar em sistema jurídico.

Em busca de uma maior precisão conceitual e examinando todos aspectos da segurança jurídica, para o fim de evidenciar os possíveis planos semânticos no emprego desse instituto, Humberto Ávila adverte que não se pode confundir segurança jurídica como fato (dimensão fática), como valor (dimensão estritamente axiológica) e como norma (dimensão normativa). Diz ele:

Uma coisa é o fato de os julgadores aplicarem o ordenamento jurídico a fim de confirmar as previsões feitas para a maioria das suas decisões; outra é a asserção de que é muito melhor um ordenamento previsível que um imprevisível; e, outra, ainda, a obrigação de os julgadores aplicarem o ordenamento de modo a aumentar a probabilidade de previsões das suas decisões por parte dos operadores do Direito.64

Logo em seguida, com precisão, esclarece:

Trata-se de planos diferentes, sujeitos a juízos diversos: segurança jurídica como fato é a capacidade de prever uma situação de fato; segurança jurídica como valor é a manifestação de aprovação ou de desaprovação a respeito da segurança jurídica; a segurança jurídica como norma é a prescrição para adoção de comportamentos destinados a assegurar a realização de uma situação de fato de maior ou menor difusão e a extensão da capacidade de prever as consequências jurídicas dos comportamentos.65

É nesse último sentido que empregamos o termo “segurança jurídica”. Em outras palavras, como um enunciado prescritivo condicionante das atividades de todos os poderes da República, principalmente do Judiciário, para adotarem comportamentos que promovam um estado de confiabilidade e de calculabilidade do ordenamento, com base na sua previsibilidade. Ou seja, no sentido de uma íntima correlação entre segurança jurídica como norma e segurança jurídica como fato.

Assim atua o legislador ao editar novos preceitos na ordem processual brasileira, com evidente propósito de aplacar a gritante incoerência e instabilidade das decisões judiciais, principalmente de tribunais. Ao prever a possibilidade do uso da reclamação perante todos os tribunais, nada mais fez do que assegurar um

64 ÁVILA, Humberto, Segurança jurídica: entre permanência, mudança e realização no direito

tributário, cit., p. 116.

instrumental capaz de viabilizar o resultado que se pretende atingir: uma segurança em movimento, um equilíbrio dinâmico66, ou melhor, com infinita atualização

cognitiva, mas evidentemente preservando os efeitos da prática dos atos e relações sociais travadas no pretérito.

Sem dúvida, na era contemporânea, caracterizada por uma realidade mutante, altamente complexa e pluralista, seria um despautério atribuir à noção de segurança um estado estático e conservador, que pudesse insculpir na parede da eternidade a exata e verdadeira compreensão dos textos de lei. Por outro lado, um sistema jurídico baseado em uma compreensão do direito fluida, como se tivesse uma natureza plástica pronta para ser descartada pelo decisionismo individual de qualquer intérprete, representaria a própria falência do sistema jurídico, diante de outros sistemas sociais.

Essas duas vertentes doutrinárias levaram a uma profunda perplexidade diante da exigência de segurança no sistema jurídico como um todo, e tal circunstância foi muito bem retratada por Leonel Severo Rocha, Michael King e Germano Schwartz, ao dizer que:

Na maior parte das sociedades democráticas, o Direito (lei) é percebido como o grande regulador, capaz de exercer influência considerável sobre o comportamento social principalmente em virtude de sua aparente habilidade de alterar a relação custo-benefício para aqueles atores individuais encarregados de administrar e gerenciar os sistemas. Ao mesmo tempo, o Direito (lei) é considerado um meio poderoso para se alcançar objetivos políticos e econômicos. Isso levou estudiosos críticos do Direito a aventarem uma “desconstrução do Direito”, que o veria pelo avesso, penetraria a superfície do discurso jurídico e tornaria possível desvendar os propósitos políticos ocultos na lei. Comprovou-se, porém, uma porção de problemas com essa visão utópica do Direito (da lei) como eficaz regulador do comportamento social. Não menos importantes foram as evidências crescentes que o Direito fracassaria na realização das grandes esperanças que pela lei pareciam funcionar com eficácia por breve tempo para, logo em seguida, produzir consequências imprevistas por legisladores e candidatos a reformistas.67

66 Na biologia moderna, o equilíbrio dinâmico é relacionado a uma condição em constante

modificação: a alostase (do grego allos = diferente; stasis= estabilidade). Recentes pesquisas demonstram que a suposta estabilidade interna dos organismos vivos é apenas aparente, inclusive sendo independente de fatores ambientais. Não existe um estado fixo nas condições de “steady-

state” ou “set points” (pontos fixos), simplesmente porque o organismo possui funcionalidade sujeita a mudanças constantes no seu comportamento, em função das suas relações com o meio ambiente.

67 ROCHA, Leonel Severo; KING, Michael; SCHWARTZ, Germano. A verdade sobre a autopoiese no

Por isso, o pensamento de Luhmann sobre o mundo jurídico condensa uma estabilidade jurídica mais adequada, quando defende, ao mesmo tempo, o fechamento do sistema jurídico diante de seu ambiente e promove a sua abertura cognitiva em face dos demais sistemas.

É preciso ressaltar, porém, que o aparecimento da teoria autopoiética não pode ser considerado como uma reação ao “vale-tudo” e ao extremo relativismo pós- moderno, como ponderou Misabel Derzi68.Todavia, merece acolhida a sua pretensão em enfrentar a plasticidade e a fluidez do direito pela teoria dos sistemas exatamente por essa teoria sustentar o fechamento operacional do sistema jurídico como condição possível e necessária. Sobre tal teoria, explica a doutrinadora mineira:

Na teoria dos sistemas, a interação entre sistema e ambiente depende da inclusão ou exclusão de elementos, acoplados ou desacoplados estruturalmente, por meio de equivalentes funcionais e seletividade. Avanços e recuos somente são produzidos dentro do próprio sistema, de modo que dados referenciais são introjetados, transformados em dados operacionáveis intrasistematicamente. Mesmos as irritações que podem provocar mudanças, a partir da comunicação, atuam na consciência social, mas tornam-se eficientes, se transformadas em irritações para dentro do sistema.69

Seguindo a ideia de Luhmann, a sociedade moderna é composta por subsistemas sociais funcionalmente diferentes que, a partir de sua própria recursividade, (re)criam formas novas sociais, inclusive o direito. Celso Fernandes Campilongo explica, com clareza, que um dos pontos de partida70 da teoria dos sistemas é a diferença “sistema/ambiente”, que na realidade é considerada como a primeira e principal diferença. Diz ele que um sistema caracteriza-se pela diferença com seu ambiente pelas operações internas de autorreprodução de seus elementos, explicando que:

68 DERZI, Misabel de Abreu Machado. Mutações, complexidade, tipo e conceito, sob o signo da

segurança e da proteção da confiança. In: TÔRRES, Heleno Taveira (Coord.). Tratado de direito

constitucional tributário: estudos em homenagem a Paulo de Barros Carvalho. São Paulo: Saraiva,

2005. p. 250.

69 Ibidem, p. 251.

70 Ressalta Celso Fernandes Campilongo que são quatro os pontos de partida da teoria dos sistemas:

sistema/ambiente; meio/forma; observação de primeira ordem/observação de segunda ordem e inclusão/exclusão (CAMPILONGO, Celso Fernandes. Interpretação do direito e movimentos sociais. Rio de Janeiro: Elsevier, 2012. p. 43).

Operação é a reprodução de um elemento do sistema fechado a partir dos elementos que compõem esse mesmo sistema. A comunicação é a operação específica do sistema social, isto é, a operação interna ao sistema social [...]. O conjunto ou processo de sucessivas comunicações forma uma rede recursiva que define a unidade do sistema social [...]. Vista como uma operação, a comunicação não pode estar fora da sociedade. Desse modo resulta o conceito de sociedade como um sistema fechado de comunicações conectadas que reproduzem comunicação por meio de comunicação.71

O fechamento operacional dos sistemas e de seus subsistemas não quer dizer irrelevância em relação ao ambiente. A propósito, leciona Willis Santiago Guerra Filho:

A mencionada autonomia do sistema jurídico não há de ser entendida no sentido de um isolamento deste frente aos demais sistemas sociais, o da moral, religião, economia, política, ciência, etc., funcionalmente diferenciados, em sociedades complexas como as que se tem na atualidade. Essa autonomia significa, na verdade, que o sistema jurídico funciona com um código próprio, sem necessidade de recorrer a critérios fornecidos por algum daqueles outros sistemas, aos quais, no entanto, o sistema jurídico se acopla, através de procedimentos desenvolvidos em seu seio, procedimentos de reprodução jurídica, de natureza legislativa, administrativa, contratual e, principalmente, judicial.72

Paradoxalmente, o fechamento operativo de um sistema é condição para sua abertura cognitiva em relação ao ambiente, e tal abertura promove um processo evolutivo − inclusive o jurídico − que possibilita sua adequação para as novas condições de complexidade interna e ambiental73. Os sistemas são capazes de se

organizar e de mudar suas estruturas a partir de suas referências internas.

A ideia de estabilidade e mudança, paradoxalmente, permeia a teoria dos sistemas. O sistema jurídico também se submete a esse paradoxo, deixando claro que a segurança jurídica provoca, ao mesmo tempo, insegurança jurídica, e esta,

71 CAMPILONGO, Celso Fernandes, Interpretação do direito e movimentos sociais, cit., p. 69.

72 GUERRA FILHO, Willis Santiago. Teoria processual da Constituição. 3. ed. rev. e ampl. São Paulo:

RCS Editora, 2007. p. 72.

73 Segundo Guilherme Leite Gonçalves e Orlando Villas Bôas Filho, Luhmann parte da noção de

autorrefencialidade para determinar o conceito de sistema com base “no conceito de forma, elaborado por George Spencer-Brown. Para George Spencer-Brown, forma não está relacionada à estética (beleza ou feiura), mas significa um cálculo, uma operação. Forma é a operação de indicar e distinguir, assim como distinguir significa, simultaneamente, indicar. O cálculo é, por excelência, tautológico. Nesse sentido, é o único meio capaz de produzir uma diferença de dois lados: uma dicotomia. Forma é, portanto, a forma de uma diferença, uma separação, a linha de fronteira que estabelece a distinção de dois lados. A condição de existência de qualquer dos lados é a presença do outro, ou seja, a manutenção da diferença” (GONÇALVES, Guilherme Leite; VILLAS BÔAS FILHO, Orlando. Teoria dos sistemas sociais: direito e sociedade na obra de Niklas Luhmann. São Paulo: Saraiva, 2013. p. 44).

por sua vez, enseja reações dos operadores do direito em busca de mais segurança jurídica em um novo contexto social. Essa circunstância é bem evidenciada quando a teoria dos sistemas trata da integração entre os sistemas parciais (os subsistemas). É o que se verifica, mais uma vez, nas palavras de Celso Fernandes Campilongo:

No âmbito da diferenciação sistêmica, cada transformação de um sistema parcial é, simultaneamente, transformação do ambiente dos demais sistemas. Nesses termos, a transformação interna de um sistema afeta o ambiente de todos os demais. Isso exige mobilidade e dinamismo de ajustes recíprocos. Da perspectiva interna aos sistemas, pode-se dizer que a diferenciação produz indeterminação no interior dos sistemas: capacidade de ajustamento entre os sistemas.74

Entre sistema/ambiente não há interferência direta e casual. É preciso manter-se a distinção e a diferença para que se constitua a identidade de cada um. Repita-se, o sistema estabelece sua identidade à medida que se diferencia do ambiente. Por outro lado, não se quer dizer que o ambiente não influencie os elementos internos do sistema, mas tal influência não pode ser completa e avassaladora dos elementos internos do sistema.

Ao tratar dos sistemas sociais, Guilherme Gonçalves e Orlando Villas Bôas Filho fazem o seguinte esclarecimento:

Assim como o sistema social, os subsistemas sociais são fechados-abertos. Os subsistemas podem sentir, ser irritados, estimulados pelo ambiente à medida que se autodeterminam, conforme adquirem autonomia. Neste sentido, não são isolados ou solipsistas, mas podem observar e processar informações ambientais. Tais informações, entretanto, são incapazes de determinar sua estrutura. Não há relação de causalidade. Tal abertura refere-se ao conhecimento, não afeta as operações internas dos sistemas. Ao contrário, é submetida a essas operações.75

A chamada abertura cognitiva, segundo tais autores, pode assumir formas mais ou menos complexas. A primeira, dizem eles, “é o acoplamento estrutural, via penetrações recíprocas e interdependentes entre sistemas que coevoluem”. Ocorre o tal acoplamento quando o sistema atinge um elevado nível de complexidade. E a segunda “é a irritação cotidiana que todo sistema sente de seu ambiente”. E, em

74 CAMPILONGO, Celso Fernandes, Interpretação do direito e movimentos sociais, cit., p. 57.

75 GONÇALVES, Guilherme Leite; VILLAS BÔAS FILHO, Orlando, Teoria dos sistemas sociais: direito

seguida, advertem que “a abertura cognitiva só se verifica à medida que os sistemas respondem a essas penetrações com suas próprias referências”.76

Em lição bastante elucidativa, diz Paulo de Barros Carvalho:

Os sistemas autopoiéticos ostentam a chamada “clausura organizacional”: são fechados no plano operacional, mas abertos em termos cognitivos. Isto quer dizer que o direito se comunica com os outros subsistemas sociais, mas de forma exclusivamente cognoscitiva. Seu modus operandi é totalmente alheio a qualquer influxo do meio exterior, seja do mundo da vida, seja de outras organizações sistêmicas de caráter autopoiético, como economia, político, moral, religião, etc.77

Os sistemas sociais usam a comunicação como seu ato de reprodução. E essa comunicação se opera com um código binário próprio, no caso do sistema jurídico lícito/ilícito (direito/não direito). Um sistema, portanto, deve sempre observar o seu tipo de comunicação e, no caso específico do sistema jurídico, esse tipo de comunicação deve qualificar os interesses das pessoas como protegidos ou repelidos pelo direito, ou, como diz Celso Fernandes Campilongo, “garantir e manter expectativas quanto aos interesses tutelados pelo direito e oferecer respostas, claras e justificadas, no caso de conflito”78, reduzindo, como, sustenta Luhmann, a

“insegurança a níveis socialmente aceitáveis”.79

Respostas claras e justificadas representam a busca por uma segurança jurídica possível, com evidente aspecto moderado. São as justificativas do julgador e de outros operadores do sistema jurídico que possibilitam uma relativa estabilidade e coerência nas decisões do Poder Judiciário. Assim, por meio de tais justificativas, o julgador se afasta de posições extremas como a da segurança absoluta, própria do Leviatã, e do relativismo cético, que compreende o direito como simples infantilidade.

76 GONÇALVES, Guilherme Leite; FILHO, Orlando Villas Bôas, Teoria dos sistemas sociais: direito e

sociedade na obra de Niklas Luhmann, cit., p. 63.

77 CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de direito tributário. 24. ed. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 183. 78 CAMPILONGO, Celso Fernandes, Interpretação do direito e movimentos sociais, cit., p. 79.

A segurança jurídica consubstancia, assim, um estado ideal que se atinge por meio de um processo de justificação, resultante de uma interpretação/aplicação realizada com os padrões próprios do sistema jurídico, e não de outros subsistemas sociais, à luz de procedimento argumentativo intersubjetivamente controlado.

6 A INSEGURANÇA JURÍDICA NA REALIDADE BRASILEIRA

No direito brasileiro não se percebe uma forte preocupação com a estabilidade e coerência do nosso sistema jurídico, apesar da doutrina empreender gigantesco esforço na defesa de tais propósitos. Talvez a crença exagerada na onipresença do legislador, aliada a uma convicção de que o intérprete seja absolutamente irresponsável pela obtenção da verdade jurídica, que é apenas revelada pela adequada interpretação, motivou certo conformismo dos aplicadores do direito em relação à quebra de coerência e unidade das decisões judiciais, máxime no âmbito dos tribunais.

É verdade que a Constituição de 1988 delegou ao STJ a competência para uniformizar o direito infraconstitucional e ao STF competência para promover a jurisdição constitucional. Apesar disso, pouco se avançou na concretização da missão de uniformização. Pelo contrário, verifica-se que nas últimas décadas tem-se vivido verdadeiro "caos jurisprudencial" no âmbito dos nossos tribunais superiores.

E a praxe forense é repleta de exemplos. Para contextualizar, vejamos dois exemplos da falta de um compromisso com a coerência e a estabilidade do sistema jurídico. O primeiro caso, no âmbito do Tribunal Superior Eleitoral (TSE).

A Justiça Eleitoral, em toda sua história, vinha admitindo, processando e julgando recursos contra a expedição de diploma80 contra candidatos eleitos, tendo

inclusive cassado mandato de governador de Estado vitorioso na eleição de 2006. Sucede que em 17 de setembro de 2013, o TSE, por maioria de votos, decidiu nos autos de recurso contra a diplomação que aquela ação seria incompatível com o texto da Constituição Federal de 1988. Essa decisão provocou grande perplexidade na comunidade jurídica, que já tinha formado entendimento de que a ação seria perfeitamente adequada ao nosso ordenamento jurídico. Em consequência, inúmeros recursos contra a expedição foram convertidos em ação de impugnação

80 O recurso contra a expedição de diploma era cabível nas hipóteses de: inelegibilidade ou

incompatibilidade de candidato; errônea interpretação da lei quanto à aplicação do sistema de representação proporcional; erro de direito ou de fato na apuração final, quanto à determinação do quociente eleitoral ou partidário, contagem de votos e classificação de candidato, ou a sua contemplação sob determinada legenda; e concessão ou denegação do diploma em manifesta contradição com a prova dos autos.

de mandato eletivo e devolvidos para as instâncias inferiores para reiniciarem todo o procedimento, com enorme prejuízo na duração razoável do processo.

Outro exemplo marcante no cenário nacional foi a decisão do STF quanto à fidelidade partidária. Durante a vigência da atual Constituição Federal, o STF, ao enfrentar diversos questionamentos sobre a aplicação do princípio da fidelidade partidária, construiu uma jurisprudência no sentido de inexistir fundamento para perda de mandato na hipótese de mudança de partido por parlamentar81. Entretanto, no ano de 2007, o TSE, em posição contrária à jurisprudência dominante do STF, entendeu que os efeitos da desfiliação partidária82, por causa de mudança de partido político, sem justa causa diante do Estatuto do Partido, ensejam a perda do mandato do eleito e a convocação do primeiro suplente do partido pelo qual o candidato havia sido eleito. E, em novembro de 2008, o STF chancelou o entendimento do TSE, ao declarar a constitucionalidade da Resolução TSE n. 22.610, que disciplina o processo de perda de mandato parlamentar (eleição proporcional) por violação à regra da fidelidade partidária.

Em todas essas decisões não se verifica nenhuma linha de debate sobre eventual risco de comprometimento da segurança jurídica ou da igualdade de todos perante a lei, ainda que fosse para demonstrar a preocupação dos julgadores com a coerência sistêmica e com o aspecto pedagógico da jurisdição. Pelo contrário, a ruptura das regras do jogo ocorre naturalmente, como se o Poder Judiciário fosse descompromissado com a necessária unidade dos sistema jurídico, como se não houvesse qualquer preocupação com a relevante circunstância de que as decisões judiciais geram efeitos no mundo fenomênico como "provocadoras de iniciativas", "modificadoras de iniciativas" e "inibidoras de iniciativas".

81 STF: MS n. 20.2927, rel. Min. Moreira Alves; e MS n. 23.405, rel Min. Gilmar Mendes.

82 Na Consulta n. 1.398/DF, o TSE, por maioria de votos, respondeu que “os Partidos Políticos e as

coligações conservam o direito à vaga obtida pelo sistema eleitoral proporcional, quando houver pedido de cancelamento de filiação ou de transferência do candidato eleito por um partido para outra legenda”. No julgamento do MS n. 26.604 (rel Min. Carmen Lúcia), o STF, no mês de outubro de 2007, reviu antiga jurisprudência daquele tribunal e, por maioria de votos, passou a adotar o entendimento do TSE, formalizado na Resolução n. 22.526.

Isso, provavelmente, deriva da associação da segurança jurídica a uma postura conservadora, autoritária e antidemocrática que alguns, por equívoco, nos