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AGRONEGÓCIO.

7.2 A reforma agrária na encruzilhada.

Ao que parece, alguns autores situados à direta no espectro político têm sido mais realistas que muitos sujeitos políticos e intelectuais de esquerda em enxergar o descompasso

198 existente hoje entre o problema agrário atual e o sentido histórica da reforma agrária. Evidentemente, pelos seus olhos, a questão não escapa ao cinismo burguês e toda a sorte de deformações ideológicas.

Entre seus representantes estão Francisco Graziano e Zander Navarro que, em meados de 2012, compareceram mais uma vez ao debate sobre o sentido histórico da reforma agrária hoje com um brevíssimo, porém expressivo artigo intitulado “Realidade Agrária e Ideologia”. Seu argumento central é que, nas últimas três décadas, o Brasil experimentou um “notável desenvolvimento agropecuário”, decorrente de avanços tecnológicos, da expansão das linhas de crédito, das agroindústrias e do cooperativismo – e para o qual a reforma agrária teve pouca ou nenhuma influência. Mesmo assim, diante da pujança do campo que, de acordo com os notáveis cientistas não teria promovido qualquer concentração fundiária ou devastação ambiental, “certas vozes” teimavam em “desqualificar sua trajetória virtuosa”, manifestando “opiniões negativas”. Isto porque essas “vozes” “não conseguem se desvencilhar do raciocínio típico da década de 1950, repetindo expressões conservadores como ‘fixar o homem no campo’ ou ‘sem reforma agrária não haverá justiça social’ como se as mudanças operadas fossem ficcionais”. Assim, esses críticos do desenvolvimento agropecuário atual tornavam-se “arautos do reacionarismo”. (GRAZIANO, NAVARRO, 2012, p. 139).

A expansão substancial do agronegócio demonstrou que o desenvolvimento das forças produtivas do capital no campo, de fato, não dependeu da eliminação da grande propriedade da terra. Ao contrário, a irracionalidade da grande propriedade capitalista da terra sustentou uma forma de desenvolvimento que constituiu a particularidade histórica brasileira. Conforme afirmei antes, o capitalismo brasileiro encontrou uma via de acesso para o desenvolvimento que articulou – hoje de modo completo – latifúndio e capital, dispensando a reforma agrária.

O neodesenvolvimentismo, por seu turno, encerrou todas as possibilidades que a história do capitalismo havia aberto para uma reforma agrária de tipo clássica. Isto, se é que a história brasileira alguma vez a comportou, dado que, por definição, há uma dissonância entre uma questão agrária constituída pelo processo de desenvolvimento desigual e combinado brasileiro e um programa de reforma agrária adequado às formas clássicas do desenvolvimento do capitalismo60.

60 A questão ainda merece mais atenção. Por hora, cabe assinalar que parece um equivoco teórico supor que

poderia ter vigência no Brasil um tipo de reforma agrária tal como se aplicou nos países do centro do sistema do capital, cujo desenvolvimento assumiu formas bastante distintas daquele observado na periferia.

199 De qualquer forma, o programa agrário de tipo clássico que por muito tempo orientou a luta da classe trabalhadora ruiu no interior das transformações de larga monta ocorridas nas formas de acumulação de capital, na subsequente reestruturação produtiva do capitalismo brasileiro ocorridas nas últimas décadas, bem como na dinâmica das classes sociais e de suas representações políticas.

A especialização produtiva que marcou a forma de inserção do país na divisão internacional do trabalho inviabilizou a conciliação que na década de 1950 e 1960 parecia possível entre desenvolvimento nacional, soberania e democracia. Como diz Plínio de Arruda Sampaio Jr.:

o ajuste aos imperativos da ordem global solapa as transformações que contribuíram para fazer do Brasil uma formação econômica e social própria e definida, que avançava em seu movimento de diferenciação e autonomização. Ficam irremediavelmente comprometidas as estruturas econômicas, sociais, políticas e culturais necessárias para que o sentido, o ritmo e a intensidade do desenvolvimento capitalista possam ser submetidos aos desígnios da sociedade nacional (SAMPAIO JR., 2013, p. 234).

Do ponto de vista da reforma agrária, isto quer dizer que o programa apoiado pelo desenvolvimento nacional conduzido pelo Estado e pela modernização e crescimento econômico compartilhado pelas forças políticas em oposição, se algum dia foi possível, hoje, definitivamente, deixou de ser.

As bases econômicas, políticas e sociais que poderiam dar alguma sustentação para uma reforma agrária deste tipo foram corroídas pela conversão do país em “plataforma de valorização financeira”, com uma estrutura produtiva crescentemente voltada para a produção de commodities para o mercado internacional. E também pelas transformações vultuosas na morfologia das classes sociais, decorrentes dos processos de transnacionalização do capital, por um lado, e precarização e desemprego estrutural, por outro lado. No campo, a conversão da ampla, heterogênea e complexa categoria da agricultura familiar em apêndice do agronegócio também é um processo que impacta decisivamente sobre o programa de reforma agrária atualmente viável.

Daí despontou um padrão de acumulação de capital que intensificou a “vocação” histórica nacional – dada sua formação econômico-social - para a produção destrutiva, consoante às tendências atuais do sistema do capital no quadro de sua crise estrutural. As forças produtivas do capital no campo atingiram os limites superiores do capitalismo mundial sem qualquer necessidade de reforma agrária, senão como a contra-reforma agrária que

200 produziu o “admirável novo mundo rural”. Pelo turno do desenvolvimento das forças produtivas do capital, a função clássica da reforma agrária – ao contrário da contrarreforma agrária - foi solapada. Nesse exato sentido e apenas nele, a reforma agrária perdeu sua atualidade histórica.

Pelo lado das forças do trabalho, porém, as condições do desenvolvimento econômico não abrem qualquer possibilidade de elevação substantiva das condições de reprodução e existência dos indivíduos que vivem do próprio trabalho. Mesmo as experiências de organização produtiva no campo - conforme vimos no capítulo anterior – estão experimentando um novo ciclo de reproletarização, seja pelo fracasso, seja pelo “sucesso” que obtém junto ao capital.

Desse modo, em função do fracasso generalizado do mundo do capital em incluir formalmente as forças do trabalho, a luta pela reforma agrária tem a chance histórica de encontrar outra via de acesso, diferente daquela que percorreu até o presente momento, já eliminada pelo capital. Para tanto, precisa encontrar um sentido compatível com as necessidades das distintas e heterogêneas frações da classe trabalhadora hoje diretamente afetadas pelo problema agrário, inclusive os povos indígenas, quilombolas, ribeirinhos.

Assim, a questão agrária brasileira se dimensiona atualmente a partir de problemas econômicos, políticos e sociais de larguíssima amplitude, relacionando-se de modo mais completo que nas décadas anteriores com o problema das condições elementares da reprodução social e da destrutividade promovida pelo desenvolvimento das forças produtivas. De modo que, mais do nunca, a reforma agrária precisa ser vinculada a questão da “revolução brasileira” - conforme assinalou Plínio de Arruda Sampaio Jr. (2013), a partir de Caio Prado Jr -, opondo-se, radicalmente, a qualquer forma de desenvolvimentismo.

Como demonstrei antes, o desenvolvimento das forças produtivas do capital e o crescimento econômico hoje possuem implicações devastadoras. Assim, acreditar que a reforma agrária possa acelerar o progresso social, criando as condições objetivas para a “revolução” significa intensificar o padrão de reprodução de capital altamente destrutivo dos recursos humanos e ecológicos. Por isso, a reforma agrária não pode mais estar vinculada a nenhuma forma de desenvolvimentismo, sobretudo ao chamado neodesenvolvimentismo do presente, sob pena de tornar seus sujeitos, de fato, “arautos do reacionarismo”, conforme disseram Graziano e Navarro (2012), embora por razões bastante distintas às assinaladas pelos decadentes ideólogos burgueses.