• Nenhum resultado encontrado

As unidades familiares de produção agrícola e/ou agropecuária sob a lógica do capital.

AGRONEGÓCIO.

6.4 As unidades familiares de produção agrícola e/ou agropecuária sob a lógica do capital.

O ambiente no qual as unidades familiares de produção agrícola e/ou agropecuária operam, independentemente do seu grau de modernização, forma de organização da produção ou de gestão da força de trabalho, é marcado por uma acirrada disputa concorrencial e por elevado grau de monopolização do mercado. “No mundo real do agronegócio, os agricultores enfrentam uma situação de oligopólio, ou seja, poucas grandes empresas vendem máquinas e equipamentos, defensivos, fertilizantes, sementes e outros insumos” (MENDES, PADILHA JÚNIOR, 2007, p. 180). Além disso:

As empresas de fertilizantes são as mesmas que adquirem a produção, refletindo o fato de que a ADM, Bunge, Dreyfus e Cargill especializaram-se em logística de grandes volumes em escala global. Ao ‘contratar’ com os agricultores, essas empresas não apenas definem as margens reduzindo as suas incertezas, como também lhes fornecem crédito, armazenam e adquirem o produto (ZYLBERSZTAJN, 2005, p. 60).

Integrados ou não às cadeias produtivas do agronegócio, as unidades familiares de produção agrícola e agropecuária estão, hoje, subordinadas ao capital financeiro e à indústria do agronegócio. Assim, dominantemente, o capital é quem dita o modo como produzir, quais

184 fatores de produção utilizar, que resultados obter. Isto significa dizer, em outros termos, que sob a hegemonia do agronegócio no campo, ninguém está livre da lógica do capital.

As unidades de produção familiar modernas, ou em vias de modernizar-se, que logram êxito no mercado, seja individualmente, seja em pequenas propriedades ou em lotes de assentamentos rurais, na forma de associações, cooperativas, agroindustriais, na atualidade estão completamente dependentes dos fatores de produção controlados pelo capital transnacional e do crédito, ou do capital financeiro, oriundo de empresas que detém os principais mercados agrícolas ou agentes financeiros.

“É impossível produzir tomate sem agrotóxico” (informação verbal)55, disse-me um assentado no município de Campo Verde-MT. “Eu produzo no que o pessoal chama de ‘sistema tradicional’, com os venenos e tudo mais. Assim é mais vantajoso” (informação verbal)56. Seu Pedro vende sua produção nas feiras livres das cidades vizinhas do assentamento onde vive, para atravessadores e para os chamados “atacadões”, empresas que compram diretamente do produtor para revender as empresas varejistas. Ele trabalha em seu lote com sua família e, eventualmente, contrata trabalhadores da cidade ou mesmo do próprio assentamento onde vive e de outros vizinhos – em geral, aqueles que não prosperaram e não conseguiram se consolidar no “novo mundo rural”.

“É difícil escapar da lógica dos agrotóxicos, porque sem ele a gente não consegue garantir a produção, o produto não fica tão bonito como as pessoas na cidade querem” (informação verbal)57. Além disso, “dá menos trabalho, porque eles já ensinam como fazer, aí é só seguir as receitas” (informação verbal)58.

Nos assentamentos rurais da reforma agrária podemos encontrar uma heterogeneidade de situações muito grande, apesar de, como mostrei nos capítulos anteriores, possuírem um traço geral de sucateamento extremo. Mas em qualquer escala geográfica de comparação que estabeleçamos, de região para região, de estabelecimento agropecuário para estabelecimento agropecuário na mesma região ou no interior dos próprios assentamentos rurais ou pequenos estabelecimentos agropecuários, a variedade de casos é bastante complexa, desigual e com inúmeras particularidades. No entanto, como afirma Orzekovski (2013, p. 164),

55 Informação fornecida por trabalhador rural assentado, em Campo Verde-MT, 2012. 56 Informação fornecida por trabalhador rural assentado, em Campo Verde-MT, 2012. 57 Informação fornecida por trabalhador rural assentado, em Serrana-SP, 2013. 58 Informação fornecida por trabalhador rural assentado, em Serrana-SP, 2013.

185 a grande maioria dos trabalhadores camponeses [mas também pequenos agricultores, assentados da reforma agrária, entre outros trabalhadores do campo] segue como exemplo a lógica da burguesia agrária, reproduzindo tal modelo dominante, utilizando-se de sua tecnologia, sementes, agrotóxicos e tornando-se dependentes deste modelo; assumem o projeto capitalista nas unidades de produção camponesa-familiar, reproduzindo nas pequenas propriedades com referência nas grandes propriedades do agronegócio. De forma indireta, os camponeses reproduzem relações de produção capitalistas no momento em que usam insumos produzidos pelas empresas capitalistas (ORZEKOVSKI, 2013, p.164).

A pesquisa coordenada por Medeiros e Leite (2004), já citada anteriormente, apontou um alto índice de consumo de insumos industriais nos assentamentos rurais estudados. Vale destacar alguns, como no Rio Grande do Sul, onde 90% dos assentados declararam utilizar agrotóxicos; 88%, adubo orgânico; 48%, adubo químico; 86% sementes certificadas/fiscalizadas; 54% medicamentos veterinários. (BENEDETTI, 2004, p. 71). Em São Paulo, mais de 85% dos lotes utilizavam máquinas e equipamentos agrícolas e em 90% dos lotes dos projetos dos municípios de Promissão, Araraquara e Sumaré foi identificada a utilização de adubação química; mais da metade fazia uso de agrotóxicos, com “...elevada incidência de envenenamentos que, em alguns casos, chegaram a levar a óbito” (BERGAMASCO et. alli., 2004, p. 128). No caso das experiências sergipanas, 88,5% dos assentados utilizavam sementes selecionadas; 63,5%, adubos químicos e 51,9%, agrotóxicos; apenas 7,7% dos assentados faziam uso de adubação orgânica. Além disso, perto de 80% dos assentados faziam uso de máquinas e implementos agrícolas, mesmo sem possuí-los. (LOPES et. alli., 2004, p. 244).

A fim de garantir a produção e a produtividade ou mesmo para poderem acessar linhas créditos – muitas vezes condicionadas à utilização desses fatores de produção - os pequenos agricultores familiares e assentados da reforma agrária fazem uso indiscriminado de herbicidas, pesticidas, fertilizantes químicos59. Através da inovação tecnológica e da imposição sumária dos fatores de produção, o capital transnacional submete a pequena produção à sua lógica.

59 Vale mencionar a contraditória relação entre a elevação das condições de vida representada pela conquista da

terra na luta pela reforma agrária e o adoecimento desses trabalhadores, em razão do uso intenso de agrotóxicos. Rosemeire Scopinho pesquisou a saúde do trabalhador em assentamentos rurais da reforma agrária, observando que se é verdade que o assentamento favorece a saúde, ainda que as condições sejam precárias, e o trabalho deixe de ser apenas espaço da realização de mais-valia, também é verdade que no assentamento o trabalho pode ser fonte de adoecimento, em função das cargas físicas, químicas e mesmo psíquicas. (SCOPINHO, 2010a, p. 1578-1580).

186 Atualmente, o Pronaf, principal linha de crédito da agricultura familiar, exige a comprovação da compra do “pacote tecnológico”, que inclui os agrotóxicos, para a liberação de recursos financeiros para custeio e investimentos na produção. E as linhas de crédito do Pronaf destinadas à produção sem agrotóxicos são parcas comparadas às demais. Segundo o Censo Agropecuária de 2006, 30% das pequenas propriedades declararam utilizar agrotóxicos. (FOLGADO, 2013, não paginado).

Mesmo não estando integradas ou vinculadas diretamente às grandes empresas, as unidades familiares de produção agrícola e/ou agropecuária estão inseridas

[...] num ambiente competitivo, que é estimulado pela grande empresa e pelas leis do mercado. A sua produção converte-se em produção para a comercialização, submetendo-se às exigências do grande capital (...) Como a maioria das pequenas empresas não dispõe da mesma tecnologia das grandes empresas, optam por intensificar a exploração sobre seus trabalhadores, que, em sua maioria são informais, pagando salários mais baixos, contratando sem registro em carteira e diminuindo os benefícios sociais (ALVES, TAVARES, 2006, p. 434).

A crise deflagrada no setor citrícola em setembro de 2012, quando os mercados europeu e norte-americano recusaram o suco de laranja concentrado brasileiro - sob a alegação de que a Europa tolera 220 partes por bilhão de resíduos do Carbendazin, fungicida produzido pela Bayer para combater a doença conhecida como “pinta preta”, e o Brasil permite 5 mil partes por milhão – elucidou os limites impostos pelo mercado as unidades familiares de produção agrícola. Apenas em um bairro rural localizado nos municípios de Itápolis e Ibitinga no interior de São Paulo, que visitei com Adriana Rodrigues Novais e Silvia Beatriz Adoue, os pequenos e médios agricultores derrubaram mais de cem mil pés de laranja. Entre aqueles que mantiveram os pomares, cerca de 80% dos estabelecimentos rurais ficaram sem contrato com as empresas processadoras de suco de laranja e, com isso, sem a possibilidade de comercializar a produção. Na maioria dos casos, eram agricultores modernos, com elevado grau de modernização e cujo processo de produção se baseia no “pacote tecnológico da revolução verde”.

Em 2004, a fábrica da Cargill em Bebedouro, município do interior de São Paulo considerado o principal pólo industrial da laranja do país, foi incorporada pelos grupos industriais Cutrale e Citrosuco, em uma operação de cerca de US$ 300 milhões a US$ 400 milhões. Segundo Marcos Fava Neves, naquele momento, a citricultura brasileira movimentava ao redor de R$ 10 bilhões por ano e era o segundo produto mais importante em

187 exportações para o estado de São Paulo. A Cargill deixou a citricultura com um faturamento de cerca de US$ 2,7 bilhões no Brasil. A empresa, que detinha 11% do mercado, podia não estar operando em escala para competir na mesma base de custos do mercado, que possui pouquíssima margem para operações. Assim, realizou um realinhamento estratégico focando sua atuação em um menor número de cadeias produtivas, investindo onde poderia disputar a liderança do mercado, avançando de modo vertical para capturar valor. (NEVES, 2005, p. 115-116).

À época, para os agricultores de laranja, a transação entre Cargill, Cutrale e Citrosuco significou a redução do número de compradores do produto, que passou de cinco para quatro, sendo que apenas dois dominavam 70% do mercado. Naquele contexto, até mesmo um destacado economista do agronegócio expressou sua preocupação: “se a concentração continuar, com fusão ou aquisição entre as outras empresas, esse quadro pode se agravar”. Cutrale e Citrosuco converteram-se em players globais no contexto do mundialização do capital, incorporando a cartela de clientes da Cargill. Conforme sentenciava o ideólogo do agronegócio: “... é de esperar a perda de empregos, principalmente administrativos, das unidades adquiridas. Caso uma das fábricas seja fechada, também existirá um enorme impacto na arrecadação de Bebedouro ou de Uchoa”. Além disso, “também pode existir impactos se a Cutrale e a Citrosuco resolverem fechar uma das fábricas e transferir a produção para as recém adquiridas. O setor opera com capacidade ociosa” (NEVES, 2005, p. 116).

Com a crise de 2012, as unidades familiares de produção agrícola foram estranguladas, com poucas ou nenhuma chance de valorizar seu capital em outro ramo ou setor da economia, dado que para tanto, é sempre necessário um esforço maior que sua capacidade ou um volume de capital excedente que, na maioria das vezes, essas unidades de produção não dispõem. No bairro rural que visitamos, a maior parte dos pequenos e médios agricultores estava operando com recursos financeiros emprestados, de modo que, a perda da produção converteu o capital em dívida.

Diferentemente, o capital monopolista e transnacionalizado tem à sua frente a possibilidade de se (auto)valorizar em outro ramo, setor ou atividade, produtiva ou financeira. Além do processamento da laranja e da produção do suco concentrado para exportação, a Cutrale deslocou parte de seu capital para a produção de milho e soja na região centro-oeste do país, buscando escapar da crise do setor, conforme noticiou a imprensa, à época. (PRODUTORA..., 2012, não paginado).

188 Conformes crises cíclicas dos setores produtivos, como o citrícola, sugerem o problema posto para as unidades familiares de produção agrícola não se limita a possibilidade de se integrar ao mercado ou não e, com isso, conseguir se reproduzir sob a ordem do capital. Mas se, uma vez integrados, direta ou indiretamente, conseguirão manter as atividades produtivas e enfrentar os mercados hoje oligopolizados e transnacionalizados, determinados por variáveis econômicas, financeiras, sociais, políticas que escapam ao controle até mesmo dos grandes players globais.

Mesmo quando a integração de unidades familiares de produção agrícola ou agropecuária ao grande capital é exitosa para os agricultores que, assim conseguem modernizar-se e acumular algum capital, qualquer oscilação do mercado produz sérios abalos nessas unidades de produção, levando-as até mesmo à perda dos meios de produção, dos instrumentos de trabalho e da terra. Pois é justamente pela mediação do mercado que o sobretrabalho (e a renda da terra) é apropriado, tanto da unidade familiar e do próprio proprietário da terra, quanto dos trabalhadores, que eventualmente explora, temporária ou permanentemente. Isto porque, em geral, as unidades de produção familiar agrícolas possuem uma composição orgânica de capital inferior que a dos grandes players que, pela mediação do mercado, se apropriam de parte do valor gerado no interior dessas unidades, em geral, via preços de mercado. Assim, cabe nos perguntarmos: existe rota de saída?