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AGRONEGÓCIO.

7.1 A questão agrária hoje.

7. A ATUALIDADE HISTÓRICA DA REFORMA AGRÁRIA.

7.1 A questão agrária hoje.

Como vimos até aqui, as novas condições de reprodução capitalista pós-ditadura civil- militar e o movimento interno das classes sociais no Brasil e suas correspondentes forças políticas no interior do Estado produziram um novo conjunto de problemas no campo. O padrão de expansão do agronegócio, principalmente no quadro do novo desenvolvimentismo petista, a um só tempo desmantelou a reforma agrária como “caminho do progresso para a paz social” - conforme queria Jango – e impulsionou um espetacular desenvolvimento das forças produtivas com caráter marcadamente destrutivo.

Depois de mais de uma década de expansão e consolidação do agronegócio, a velha polêmica (dos anos de 1950) que relacionava a questão agrária brasileira ao desenvolvimento do capitalismo nacional foi, definitivamente, sufocada pela própria dinâmica do capitalismo brasileiro. Em parte, porque o capital encontrou uma via de acesso – que a ditadura civil- militar de 1964 consolidou - que não exigiu a eliminação do latifúndio para seu desenvolvimento. Evidentemente, este processo foi marcado por contradições próprias de uma combinação, ou aliança, entre capital e grande propriedade de terra, que redunda, hoje, em uma poderosa força política atuante no campo. Por outra parte, a própria ideia de “desenvolvimento nacional” foi posta em xeque pelos processos sócio-econômicos que redefiniram o padrão global da acumulação, abrindo caminho para o que veio a ser, mais tarde, a transnacionalização do capital e a hegemonia de sua forma financeira - ainda quando o Brasil completou a aliança entre latifúndio e capital vis-à-vis à industrialização desigual do campo.

Assim é que o debate sobre a eliminação dos supostos restos feudais da formação histórico-social brasileira; a função do campo (ou mais propriamente do setor primário) na evolução “truncada” da economia nacional; a dualidade constituída pelo “Brasil moderno” e pelo “Brasil atrasado” e até mesmo a discussão sobre o papel do latifúndio na manutenção da dependência econômica brasileira (Cf. DELGADO, 2001), tudo isto, foi afetado decisivamente pelas novas condições de reprodução do capital e pelo desenvolvimento do capitalismo brasileiro e pelas modificações daí decorrente na morfologia das classes sociais em confronto.

194 O ingresso brasileiro na nova divisão internacional do trabalho, por seu turno, inaugurado nos marcos da financeirização da economia mundial, não foi capaz de “corrigir” os efeitos deletérios produzidos pelo seu desenvolvimento, digamos, particular. O padrão de acumulação centrado na grande propriedade da terra persistiu, mesmo tendo assumido outros contornos.

Em termos políticos, a chance de uma “virada” histórica foi perdida ainda na década de 1930 quando a mudança de dominação de classe não exigiu uma ruptura do sistema social brasileiro fundado no/pelo latifúndio. Mais tarde, na viragem da década de 1950 para 1960, quando as lutas da classe trabalhadora, que impulsionavam um projeto de desenvolvimento nacional, criando um campo semântico entre as forças políticas em oposição, foram violentamente interrompidas pelo golpe militar. (OLIVEIRA, 2003). O que se seguiu a ditadura civil-militar de 1964-1985 já não permitia que os projetos políticos do passado, ainda que muito recentes, se afirmassem. Primeiro, pelo fato de que as forças políticas em disputa haviam se transformado de modo substancial. Segundo, porque as condições de reprodução e o padrão de acumulação decorrente da crise estrutural do capital que se fez sentir no Brasil, principalmente, a partir da década de 1990, exigiram uma atualização do programa político- econômico e das formas organizativas da classe trabalhadora que andavam em descompasso com relação à base objetiva na qual atuava.

Durante a reestruturação produtiva da economia brasileira, o “pacto estrutural” entre capital e latifúndio já estava consolidado, operando sob/sobre a conversão crescente da dependência economia brasileira em servidão financeira (PAULANI, 2008). Neste, o latifúndio (improdutivo) permaneceu como um nó górdio da questão agrária brasileira. Porém, a conversão da grande propriedade da terra produtiva em empresa rural do agrobusiness deslocou, progressivamente, o cerne do problema agrário do latifúndio (improdutivo) para a empresa rural produtiva. Os processos econômicos, políticos e sociais demonstrados até aqui apontam para esta modificação no padrão histórica da questão agrária brasileira.

Nesses termos, se o padrão de dominação próprio do capitalismo dependente possuía o latifúndio como elemento estratégico (FERNANDES, 2009), o padrão de dominação constituído nos marcos do capitalismo servil do Brasil (PAULANI, 2008) tem seu centro crítico na associação entre capital transnacional e propriedade (ou empresa) rural produtiva patrocinada pelo Estado. Isto não significa que o velho latifúndio não aja sobre os processos políticos, sociais e econômicos da sociedade brasileira contemporânea. Mas que sua

195 superação, seja na forma do parcelamento da terra, seja na forma da incorporação pelo grande agronegócio, não coloca fim ao problema agrário nacional, uma vez que a propriedade rural produtiva do agronegócio é, hoje, um elemento estratégico da econômica política do neodesenvolvimentismo, atuando decisivamente na vida nacional.

Em termos estritamente econômicos, as atividades que hoje puxam o chamado programa neodesenvolvimentista, tais como o agronegócio, a mineração, a atividade petrolífera e a construção civil possuem um denominador comum, conforme apontou Guilherme Delgado, qual seja, todas operam com base no monopólio dos recursos naturais que, submetidos à exploração intensiva ou extensiva, produzem renda fundiária, objeto de intensa disputa no processo de apropriação da renda. (DELGADO apud SAMPAIO JR., 2013, p. 214). Assim, a grande propriedade rural, o monopólio dos recursos naturais e a renda da terra se constituem em um dos problemas mais agudos no interior da questão agrária brasileira e do próprio neodesenvolvimentismo, de modo que a questão agrária também se vinculou organicamente ao problema do neodesenvolvimentismo por força do padrão de acumulação de capital que move a economia brasileira atualmente.

Segundo Delgado (apud SAMPAIO JR., 2013, p. 214),

Ao revitalizar o agronegócio como força motriz do padrão de acumulação, o ajuste do campo aos imperativos da ordem global reforçou o papel do latifúndio como base material do capitalismo brasileiro. A aposta na competitividade espúria, baseada na exploração predatória das vantagens comparativas naturais do território, como forma de conquista de mercados externos supõe a intensificação da agricultura itinerante e, em conseqüência, a abertura de novas frentes de expansão para o latifúndio. A liberalização do comércio exterior sem nenhum cuidado com a preservação da autonomia alimentar expõe os agricultores familiares à concorrência desigual de produtos importados, comprometendo a sobrevivência de pequenos e médios produtores. Por fim, a modernização indiscriminada, sob os auspícios das grandes multinacionais que controlam os pacotes tecnológicos e biotecnológicos da exploração do campo pelo capital, implica a eliminação de grandes quantidades de emprego no campo.

Conforme mostrei nos capítulos anteriores, estamos diante de um duplo processo de busca desmedida por ganhos de produtividade, tanto através da abertura de novas fronteiras agrícolas ou, como completa Delgado (apud SAMPAIO JR., 2013, p. 215), para consumo de recursos naturais, quanto mediante a intensificação do chamado pacote tecnológico da revolução verde. Em ambos os casos, o desenvolvimento das forças produtivas do capital assumiu um contorno destrutivo das relações sociais de produção, imprimindo um padrão de

196 reprodução social com alto potencial de degradação dos recursos humanos e dos recursos ecológicos. A pressão por novas terras e o aumento da produtividade do trabalho através do progresso tecnológico transformou os recursos ecológicos, a terra e os sujeitos que nela vivem em objeto da sanha do capital, sem que isso signifique qualquer “destruição criativa”. A degradação da Amazônia e a incorporação pelo agronegócio das terras onde vivem os povos indígenas, da floresta, os colocam no centro das contradições produzidas no seio do desenvolvimento capitalista brasileiro atual.

No entanto, se durante muito tempo, o problema agrário brasileiro pode ser reduzido a uma questão setorial (Cf. DELGADO, 2001), este padrão de reprodução social altamente destrutivo representado pelo agronegócio o converte em um problema de mais larga amplitude que, no limite, diz respeito às condições elementares de reprodução social do conjunto da sociedade, impondo um conjunto de problemas associado à terra, à água, à ciência e à biomassa, e à manipulação genética de sementes e ao uso intensivo de agrotóxicos. Nesse sentido, é possível afirmar que o problema agrário, hoje, é também o problema do neodesenvolvimentismo.

Sob o neodesenvolvimentismo surgiram novas tendências no interior da questão agrária, como: (a) reconcentração fundiária; (b) intensificação do controle, direto e indireto, do capital internacional sobre a exploração agrícola; (c) nova rodada de grilagem de terras e (d) exacerbação da superexploração do trabalho, conforme indicado por Delgado (apud SAMPAIO JR., 2013, p. 216). A elas incluo outras, como: (a) a tendência à proletarização e à reproletarização precarizada de amplos contingentes de trabalhadores, sejam eles pequenos proprietários, posseiros, parceleiros da terra, povos tradicionais, ou simplesmente trabalhadores despojados da terra, sobre os quais a exacerbação da superexploração e da precarização estrutural do trabalho tende a incidir com mais força; (b) os efeitos do desemprego estrutural no campo; (c) e a eliminação das condições elementares da reprodução social, na forma de degradação dos recursos ecológicos e naturais.

As implicações sócio-culturais dessas tendências são, pois, devastadoras, como, por exemplo, a descampenização, (re)proletarização e recampenização concomitantes ao desenvolvimento desigual e combinado, de modo a destruir modos de vida tradicionais, rebaixando as condições de reprodução social; a destruição de formas de sociabilidade historicamente construídas por camponeses, povos indígenas, quilombolas, ribeirinho, entre outros, em razão da subordinação e da subsunção formal e real do trabalho no processo do

197 capital; nova onda de migração em busca de trabalho e a perda progressiva dos laços e referências sócio-culturais (para alguns, perda da identidade) que se constituem no vínculo com o território; perda da soberania alimentar; empobrecimento e padronização crescente da dieta alimentar, em detrimento das riquíssimas formas sócio-culturais de supressão das necessidades alimentares básicas; evolução de doenças relacionadas ao consumo de produtos com elevados níveis de agrotóxico, entre tantos outros.

O papel hoje assumido pelas unidades de produção agrícola e não-agrícola de base familiar no campo não deixa dúvidas de que a luta pela terra se tornou um momento bastante curto da luta pela constituição de uma sociabilidade baseada na autodeterminadação dos sujeitos. A lógica de expansão do agronegócio tornou essas unidades de produção no campo um importante mecanismo de ampliação da produção do valor, convertendo-as em seu apêndice, seja por meio da integração produtiva, seja por meio de sua subordinação aos fatores de produção das empresas transnacionais do agronegócio. Também aí, o trabalho abstrato passou a incidir de movo avassalador, proletarizando e reproletarizando aquela parcela dos trabalhadores que ora detém, sob a forma de posse ou propriedade, uma parcela de terra.

Agora, o controle de uma porção de terra, ou sua posse, que anteriormente conferia uma posição melhor ao titular na conjuntura agrária nacional, deixou de ser até mesmo uma possibilidade de autonomia e de uma reprodução social mais elevada com relação ao conjunto dos indivíduos despojados da terra. Constituiu-se, pois, em um sério e decisivo problema para aqueles que lutam pela construção da vida na terra.

Assim, a expansão do agronegócio no interior do neodesenvolvimentismo modificou o padrão histórico da questão agrária brasileira em todas as suas dimensões, implicando, definitivamente, no desenvolvimento da luta pela reforma agrária. Mas apesar disso, o debate atual sobre o significado histórico da reforma agrária está, em grande medida, ancorado nas condições anteriores de seu desenvolvimento, de modo que parece haver uma espécie de descompasso entre a extensão do problema agrário atual, a atualidade da reforma agrária e a luta concreta desenvolvida pelos sujeitos que, historicamente, são seus portadores.