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CAPÍTULO II – A TEORIA DA ARGUMENTAÇÃO NA LÍNGUA

2.6 A relação argumento/argumento: a escala argumentativa

Fiél à ideia do encadeamento – o propósito da existência de um enunciado é ser levado a outro enunciado, e isto é argumentação – e ainda afastado de uma abordagem somente informacional dos sentidos (“o valor argumentativo de um enunciado não é somente uma consequência de informações elaboradas por ele, mas [...] além de seu conteúdo informativo, servem para dar uma orientação argumentativa ao enunciado, para levar o destinatário nesta ou naquela direção” (DUCROT, 1980, p. 15, tradução nossa)55), o arcabouço teórico da ANL ganha um novo método no início dos anos oitenta: a escala argumentativa (ou escala absoluta).

É perceptível, a esta altura, que a ANL preserva suas ideias básicas que a estabelecem enquanto teoria linguística, mas sua metodologia e o modo de observar e operar tais ideias tem um grande histórico de mudanças, do início até os dias atuais.

55

Do original: « la valeur argumentative d’un énoncé n’est pas seulement une conséquence des informations apportées par lui, mais [...] en plus de leur contenu informatif, servent à donner une orientation argumentative à l’énoncé, à entraîner le destinataire dans telle ou telle derection » (DUCROT, 1980, p. 15).

71 No caso das escalas argumentativas, grosso modo, trata-se de vislumbrar em gráficos os dois critérios supracitados (a análise não informacional, mas argumentativo-orientativa) por vias de uma relação comparativa, entre argumentações, postas em paralelo e ordenadas por conectivos (o que nunca significou linearidade ou engessamento de significações, pois a ideia básica da enunciação, sentido, subentendido, interpretação, situação e etc também estão preservadas). Ducrot explica que uma escala é instaurada por uma classe argumentativa (C.A.):

Nós diremos que um locutor – entendendo por esta palavra um sujeito falante inserido em uma situação de discurso particular – coloca dois enunciados p e p’ na C.A., deteminado por um enunciado r, se ele considera p e p’ como argumentos em favor de r. Suponhamos, por exemplo, que a vinda de Pedro e a de Paulo me parecem, uma e outra, dar crédito à conclusão A reunião foi um sucesso. Neste caso, nós diremos que, para mim, os enunciados Pedro veio e Paulo veio pertencem à C.A. determinada por A reunião foi um sucesso. (DUCROT, 1980, p. 17, tradução nossa).56

O que Ducrot propõe pensar com a ideia de escalas é que refletir a relação argumento/argumento para a ANL é considerar sempre um argumento mais fraco e outro mais forte (p e p’, respectivamente). Assim, o critério das escalas é básico: sempre há no mínimo dois tipos de argumentação, uma mais fraca (p) e outra mais forte (p’). E a ideia de força aqui tem um caráter apenas localizacional orientativo, e não físico (“argumentativamente mais forte”, cf. Ducrot (1980, p. 19). Eis o esquema da escala argumentativa (DUCROT, 1980, p. 27):

56Do original: « Nous dirons qu’un locuteur – en entendant par ce mot un sujet parlant inséré dans une situation

de discours particulière – place deux énoncés p et p’ dans la C.A. déterminée par un énoncé r, s’il considère p et

p’ comme des arguments en faveur de r. Supposons, par exemple, que la venue de Pierre et celle de Paul me semblent, l’une et l’autre, accréditer la conclusion La réunion a été un succès. Dans ce cas, on dira que, pour moi, les énoncés Pierre est venu et Paul est venu appartiennent à la C.A. déterminée par La réunion a été un

72 Quadro 8 – A escala argumentativa de “A reunião foi um sucesso”.

A escala na polaridade positiva A escala na polaridade negativa

A reunião foi um sucesso A reunião foi um fracasso

r ~r

p ’ e mesmo Paulo veio ~p Pedro não veio

p Pedro veio ~p’ e mesmo Paulo não veio

Como se pode perceber acima, Ducrot entendeu que a maior força (p’) ou menor força (p) argumentativa é estabelecida por operadores argumentativos. Ducrot define um operador como “uma palavra Y que, aplicada a uma palavra X, produz um sintagma XY [...] Dito de outra maneira, o operador não faz senão combinar, reorganizar de uma maneira distinta os constituintes semânticos de X” (DUCROT, 2005, p. 166, tradução nossa)57. Os exemplos clássicos de operadores argumentativos são pouco e um pouco: “Segundo minha definição,

pouco é um O.A. em relação à frase P ‘Pedro trabalhou um pouco’. [...] Pode-se construir uma

frase P’ ‘Pedro trabalhou pouco’ substituindo um pouco por pouco em P.” (DUCROT, 1989b, p. 18-19).

No enunciado dado, um exemplo de operador argumentativo seria o operador até

mesmo. Assim, enunciados como: Pedro, e até mesmo Paulo vieram (DUCROT, 1980, p. 19)

evidenciam que o operador mesmo estabelece uma diferença, uma distinção de força (argumentação) entre os dois argumentos: Pedro (p), o mais fraco, e Paulo (p’), o mais forte, ambos orientando para uma conclusão idêntica: a reunião foi um sucesso. Já que o conectivo

mesmo recorta um pressuposto do tipo: “Paulo é um homem ocupado, que não sai jamais:

para que ele saísse de sua casa, a reunião deveria ser, então, bastante promissora” (DUCROT, 1980, p. 19, tradução nossa)58.

57

Do original: “Definiremos como ‘operador’ una palabra Y que, aplicada a una palabra X, produce un sintagma XY […] Dicho de otra manera, el operador no hace sino combinar, reorganizar de una manera distinta los constituyentes semánticos de X” (DUCROT, 2005, p. 166).

58

Do original: « Paul est un homme occupé, qui ne sort jamais : pour qu’il se soit déplacé, il faut donc que la réunion ait beaucoup promis » (DUCROT, 1980, p. 19).

73 Umas das grandes pertinências das escalas ducrotianas é mostrar para a lingüística que, pelas escalas, os operadores têm a função de organizar argumentos. E todo operador estabelece ao menos dois grupos de argumentos: um incidido pelo operador, e outro sem o operador, mas aludido por ele. Um com maior potencialidade argumentativa, pelo pressuposto que o operador recorta, e outro com menor potencialidade argumentativa. É o caso de p até

mesmo p’, dentre outros: “Para poder dizer p e até mesmo p’, deve-se considerar que p e até

mesmo p’ sejam orientados para uma conclusão idêntica, e que p’ conduz a ela melhor que p

(DUCROT, 1980, p. 19, tradução nossa)59.

Outros conectivos que (como todos os outros) organizam argumentos e foram estudados por Ducrot, são o quase, o pouco, e o um pouco, dentre outros, cujos estudos veremos adiante.

Contudo, é bom que se entenda que a ANL é uma semântica estrutural enunciativa, e como todo estudo enunciativo, nenhum dado operacional está “petrificado” (imobilizados por uma prévia analítica intocável. Isto não é o estruturalismo da ANL). Cientes disso, a classe argumentativa para a qual os argumentos orientam será dada pelo subentendido (isto é, pelo olha interpretativo do leitor), neste momento da teoria. Isto colocará um jogo interpretativo em que o efeito de sentido poderá variar de interlocutor para interlocutor. A escala, então, não é rígida, não estanca a interpretação. Cada leitor sopesará as particularidades situacionais da enunciação e especificidades constitutivas da frase/enunciado diferentemente um do outro, mediante a orientação que o discurso lhe revela: “Podemos ter r por um argumento sem tê-lo, no entanto, por um argumento decisivo” (DUCROT, 1980, p. 17, tradução nossa)60.

Ainda no interior das escalas argumentativas, uma outra noção produtiva para análises é a implicação. De forma geral, Ducrot (1980, p. 52) explica que há em certos enunciados uma relação do tipo A implica B, e sua recíproca ~A implica ~B. Esta noção é geralmente vislumbrada pelo modo interrogativo, e sua negativa (que ele chama concessão) pelo conectivo até mesmo se, assim (DUCROT, 1980, p. 49, tradução nossa)61:

59

Do original : « Pour povoir dire p et même p’, il faut que p et p’ soient orientés vers une conclusion identique, et que p’ y conduise mieux que p » (DUCROT, 1980, p. 19).

60

Do original: « On peut tenir r pour un argument sans le tenir cependant pour un argument décisif » (DUCROT, 1980, p. 17).

61 Do original: « Est-ce que Pierre prendra sa voiture si la route est bonne ? – Non, même si la route est bonne, il

74 Pela interrogação (implicação):

Pedro vai dirigir seu carro (B) se a estrada for boa (A)? Pelo conectivo “até mesmo se” (concessiva):

Não, até mesmo se a estrada for boa (~A) ele virá de trem (~B).

A implicação é um acordo prévio (“accord préalable”) e doxal entre os interlocutores de um enunciado ou discurso, que evidencia que “A vai no sentido de B” (DUCROT, 1980, p. 48). Este acordo é uma espécie de contrato inscrito na língua. No caso dos dois enunciados acima, teremos os seguintes esquemas:

Quadro 9 – A implicatura e a concessão segundo a escala argumentativa

Implicação

[B se A?] B Dirigir o carro (consequente) A Estrada é boa (antecedente)

Concessão

[até mesmo se A, ~B] ~B Não pegar o carro (consequente)

A Até mesmo se a estrada for boa (antecedente)

Já que “uma frase do tipo B se A tende a fazer entender não somente ‘A implica B’, mas também a implicação recíproca ‘B implica A’”; E “[...] ao dizer que A implica B, nós tomamos [...] do mesmo modo como satisfatório um dos requisitos prévios à implicação recíproca ‘~A implica ~B’” (DUCROT, 1980, p. 51-52, tradução nossa)62.

Esta fase das escalas absolutas não efetivavam análise com duas escalas para um mesmo foco. Havia geralmente uma escala apenas (por isso eram absolutas), que sintetizava o movimento analítico e expressava a descrição argumentativa do enunciado.

Por fim, um mesmo argumento que oriente para duas conclusões foi um motivos teóricos pelos quais Ducrot abandonou a análise por vias de escalas, quando trabalhava os

62 Do original: « [...] une phrase du type B si A tend-elle à faire entendre, non seulement < A implique B >, mais

aussi l’implication réciproque < B implique A > [...] en disant que A implique B, on prend du même coup comme satisfait un des réquisits préables à l’implication réciproque < ~A implique ~B> » (DUCROT, 1980, p. 51-52).

75 operadores argumentativos pouco e um pouco, que ambos podem orientar tanto para sucesso ou fracasso, infringindo a organização das escalas. A própria postura analítica de Ducrot chega a ser paradoxal: o linguista aproxima-se de esquemas técnicos da Lógica para afastar-se deles. É um adotar para abandonar, o tempo todo.

Ducrot chega a assumir a possibilidade de paradoxos na escala, mas não desenvolve tal hipótese. Para ele, o fenômeno do paradoxo é uma relação menos forte entre A e B (uma implicatura menos forte):

Somos levados a reconhecer que haveria alguma coisa de paradoxal, de supreendente, no fato de que pudéssemos ter, ao mesmo tempo, ~A e B. Se então o locutor soubesse ~A compatível com B, a lei da exaustividade o obrigaria a dizer, visto que ela já deu, sobre as relações entre A e B, uma informação muito menos forte (a implicação que ele pôs, e em virtude da qual nós não temos A sem B, é de fato menos forte, porque ela se apresenta como confirmando somente uma expectativa prévia, porque ela se apóia já sobre o subentendido implícito de que A é favorável a B). (DUCROT, 1980, p. 53, grifo nosso, tradução nossa)63.

Ainda é importante marcar que, se acima, ao falar do paradoxo nas escalas argumentativas, Ducrot as define como “implicaturas menos fortes”, abaixo, em outro momento, Ducrot as define como “rupturas no discurso” ou “efeito polêmico”. Tudo parte da atitude do locutor de contrariar a relação contratual comum de implicatura doxal, rompendo com: “Não, mesmo se

a estrada for boa ele virá de trem”; e “Não, mesmo se Jacques vier, Pedro não virá, que

contrariadas, evidenciará que:

Nós teríamos tido, ao contrário, uma ruptura no discurso, e um efeito polêmico de paradoxo se as respostas tivessem sido respectivamente: - Mas não, sobretudo se a estrada for boa, Pedro virá de trem.

- Mas não, sobretudo se Jacques vir, Pedro não virá.

63

Do original: « [...] on est amené à reconnaître qu’il y aurait quelque chose de paradoxal, d’étonnant, à ce qu’on puisse avoir à la fois ~A et B. Si donc le locuteur savait ~A compatible avec B, la loi d’exaustivité l’obligerait à la dire , vu qu’il a déjà donné, sur les rapports entre A et B, une information beaucoup moins forte (l’implication qu’il a posée, et en vertu de laquelle on n’a pas A sans B, est en effet moins forte, puisqu’elle se présente comme confirmant seulement une attente préalable, puisqu’elle s’appuie déjà sur le sous-entendu implicite que A est favorable à B) » (DUCROT, 1980, p. 53).

76 [...] Nós não saberíamos sustentar essa distinção por uma prova que justificasse definitivamente as descrições argumentativas dadas aqui pela implicação e a concessão (DUCROT, 1980, p. 50, grifo nosso, tradução nossa)64.

Se por um lado as escalas argumentativas não conseguem organizar bem argumentos com duas orientações (trabalhar pouco pode orientar tanto para sucesso ou fracasso; e

trabalhar um pouco também), Ducrot assume tal falta, e passa a reelaborar a metodologia

analítica da ANL mais uma vez. Agora pela concepção dos Topoï Argumentativos.