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CAPÍTULO I – O PARADOXO

1.4 A relação paradoxo/Retórica

Como este capítulo objetiva instaurar um panorama sobre os estudos do paradoxo que antecederá nossas discussões teóricas e analíticas, após as apresentações próprias da Lógica, passemos a expor uma outra linha clássica dos estudos do paradoxo, a da Retórica. Ainda sob a dicotomia-chave acima exposta, se a Lógica é partidária da rejeição da contradição, e trabalha unilateralmente [ou X], ou [NEG-X], a Retórica, por sua vez, é partidária da aceitação da oposição, e trabalha bilateralmente [X + NEG-X].

Exporemos adiante as relações opositivas clássicas das figuras retóricas, da Retórica (o que não significa de modo algum, é bom que se marque, para leitores mais radicais, incoerência teórica, já que concordar com tipologias não significa assumir teorias).

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Do original: « relation entre deux termes qui affirment et nient le même élément de connaissance » (WOŁOWSKA, 2008, p. 23).

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Do original: « mécanisme sémantique semblable qui consiste à actualiser une contradiction apparente pour orienter l’interprétation vers un autre sens » (WOŁOWSKA, 2008, p. 30).

40 Marcamos que não filiamo-nos à Retórica, de argumentação persuasiva, já que nossa base é de argumentação linguística, como veremos. O que dela retemos neste momento é a adesão à ideia de poder (teoricamente) enunciar paradoxos, e observar seus sentidos. Ou seja, a sua filiação a um paradoxo literário – que vê com bons olhos o paradoxo, ao contrário da Lógica –, nos é interessante. Deste modo, usar nomeações da retórica não significa que façamos, professemos ou nos filiemos à Retórica clássica, ou qualquer outra.

As figuras retóricas são, a princípio, de base lexical, isto é, não estão filiadas ao âmbito do funcionamento da linguagem. São tipos de significações estruturais. Passemos a uma rápida visada da tipologia paradoxal retórica:

A) ANTANACLASE (relação entre mesmas palavras): segundo Wołowska (2008, p. 30, tradução nossa)24, “consiste em aproximar duas acepções lexicais ou discursivas da mesma palavra”. São exemplos:

Porque às vezes, é bom escolher a partir de não escolher; Morrer não é morrer, meus amigos, é mudar.

B) OXÍMORO (relação entre palavras contraditórias): “[...] constitui uma união direta de duas palavras contraditórias” (WOŁOWSKA, 2008, p. 30, tradução nossa)25. Ou como explica Landheer (1996, p. 113-114, tradução nossa)26: “o oximoro é uma expressão verbal que não cobre apenas um único constituinte; o mais comum é uma combinação nome/adjetivo”. São exemplos:

Eles se arrastam de forma penosa na sua velha juventude. Um silêncio eloquente.

Uma obscura claridade

C) PARADOXO SINONÍMICO (relação entre uma palavra e seu sinônimo contrário): sugerido por Landheer (1996, p. 108; 113). Como explica Wołowska (2008, p. 47 e

24 Do original: « [...] consiste à rapprocher deux acceptions lexicales ou discursives du même mot.

[...] Car parfois, c’est bien choisir de ne choisir pas (MONTAIGNE, apud LANDHEER, 1961, p. 104)

Mourir n’est pas mourir, mes amis, c’est changer (LAMARTINE, apud LANDHEER, 1961, p. 104).»

(WOŁOWSKA, 2008, p. 30).

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Do original: « [...] constitue une union directe de deux mots contradictoires. Ils se traînent à peine en leur vieille jeunesse (GILBERT apud MORIER, 1961, p. 829) » (WOŁOWSKA, 2008, p. 30).

26 Do original: « l’oximore est une expression verbale qui ne couvre qu’un seul constituiant, le plus souvent une

41 49, tradução nossa)27, não consta nas figuras retóricas, e parece de difícil enquadramento nos dois anteriores, já que sua relação é estrutural de oposição entre palavras sinônimas. São exemplos:

Giscard pensa no futuro, mas não no porvir. É traição se casar sem tornarem-se esposos.

Morrer não me incomoda em nada. Mas me causa pena deixar a vida.

Ainda é interessante considerar a existência de um tipo mais marginal, mas existente na sua singularidade:

D) PARADOXO HIPONÍMICO: (relação entre uma palavra e seu hiperônimo contrário), como explica Landheer (1996, p. 113, tradução nossa)28: “a reabsorção dessas contradições aparentes se faz sempre por um adissimulação qualquer na semântica dos elementos lexicais”. É exemplo:

Lindt e não-chocolate.

Resumidamente, temos:

Quadro 1 – Tipologia paradoxal principal da Retórica

Tipologia paradoxal retórica relação lexical

Antanaclase relação paradoxal entre X e contrário de X

Oxímoro relação paradoxal entre X e não-X

Paradoxo sinonímico relação paradoxal entre X e não-{sinônimo de X} Paradoxo hiperonímico relação paradoxal entre X e não-{hiperônimo de X} Obviamente, outros tipos existem, alguns como por exemplo, a “antítese” de Landheer (1996, p. 113) e o “contrário” de Wołowska (2005, p. 104), que não constituem paradoxo para nós, porque apenas ladeam termos opostos, mas não configuram mescla destes termos.

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Do original :

« Giscard pense au futur, mais pas à l’avenir (SANGUINETTI apud RASTIER, 1987, p. 80).

C’est trahison de se marier sans s’espouser (MONTAIGNE). De mourir, ça ne me fait rien. Mais ça me fait peine de quitter la vie. (PAGNOL) » (WOŁOWSKA, 2008, p. 47; 49).

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Do original: «La résorption de ces contradictions apparentes se fait toujours par une dissimilation quelconque dans le sémantisme des éléments lexicaux» (LANDHEER, 1996, p. 113).

42 Ainda é interessante dizer que pudemos observar que os muitos dicionários por nós pesquisados ao longo desta pesquisa acabam por perfazer três grupos básicos, no tocante ao paradoxo: um primeiro, que trata dessa fenomenologia da contradição pela entrada paradoxo; um segundo, que trata dessa mesma fenomenologia da contradição pela entrada oxímoro (e não apresenta a opção “paradoxo”), e um terceiro grupo, que não trataria de nenhum dos dois. Poderíamos falar de um quarto grupo que apresenta os dois.

Hipoteticamente, pela nossa amostragem dos dicionários aqui utilizados, o primeiro grupo parece ser o maior, e o segundo o menor – de acordo com o nosso levantamento parco e limitado, que está longe de esgotar a infinitude da prática lexicográfica, mercantil, especializada ou não, dos dicionários. Em todo caso, nosso objetivo não requer a precisão dessa informação quantitativa. Por exemplo, ao procurar a entrada paradoxo no Dictionnaire

de la Linguistique, de Mounin (1974, p. 240-246) só encontramos “paradoxismo”. E como

definição do mesmo, temos o termo “oxímoro”, dado como sinônimo de “paradoxismo”. Vamos nos afastar de definições como as deste referido dicionário francês: “Deve-se disntinguir o oxímoro, que tende a dizer que A é não-A, do paradoxo, que diz que A não é A, e da antítese, que diz que A não é não-A” (MOUNIN, 1974, p. 246, tradução nossa) 29. Se na tipologia Retórica estes modelos são estanques, nós, por nosso turno, não separaremos oxímoro de paradoxo para nossa definição técnica: o oxímoro, para nós, é um tipo de paradoxo semântico, pois vimos que paradoxo é todo tipo de conteúdo que “mescla” significações/sentidos opostos, não importa o lugar sintático, função morfológica ou valor gramatical qualquer, já que o paradoxo é observado argumentativamente, e não informacionalmente. Se para a Retórica há três tipos clássicos, para nós, eles se subsumem todos no paradoxo. Enquanto os retóricos não consideram as figuras retóricas acima enquanto paradoxos, nós sim. Não nos filiamos a essas marcações demasiado frásticas, porque elas fogem de um propósito mais inclusivo, interdependente, não segmentado. Por exemplo, retomemos o Diccionario de uso del Español :

Paradoja. (Do gr. <parádoxa>, comp. Com <pára> e <doxa>, opinião; v. <PARA-, -DOXIA>) […] Expressão em que há uma *incompatibilidade aparente, que termina em um pensamento mais profundo do que o que enuncia; como em ‘aquele que não tem nada, tem tudo!’ [...] Coexistência

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Do original: « Il faut distinguer l’oxymoron qui tend à dire que A est non-A, du paradoxe qui dit que A n’est pas A et de l’anthitèse qui dit que A n’est pas non-A. » (MOUNIN, 1974, p. 240-246).

43 ilógica de coisas: ‘É um paradoxo que o mais pobre é o que mais gasta’ (MOLINER, 1989, p. 634, tradução nossa)30.

Se analisarmos pela Retórica, Moliner apresenta duas definições-exemplo de paradoja que são figuras de linguagem: uma do tipo oxímoro (“...nada...tudo”), e outra do tipo sinonímico (“...pobre...o que mais gasta”).

Por nosso turno, um dos vários modos de observar argumentativamente esses exemplos é pela mobilização do mas31: observando o dito oxímoro por um paradoxo do tipo “Não tem nada, mas tem tudo”, e o dito sinonímico por um paradoxo do tipo “Não tem o que gastar, mas gasta”.

Apresentados os estudos da Retórica e nossa postura em relação a eles, afastando-nos de toda explicação persuasiva ou estrutural da Retórica, vamos entender que o semantismo da frase se estabelece pelas palavras que a organiza, sincrônica e diacronicamente. Veremos adiante que nosso signo é a frase, a frase significa em si, não só as palavras, distantes da metodologia Retórica, que para afirmar que não há paradoxo na antanaclase e no oxímoro, está se valendo apenas das palavras, não da frase. Como explica Wołowska (2008, p. 33, tradução nossa)32, devemos: “[...] ler um sintagma ou um enunciado paradoxal (p.ex. a

torrente imóvel) como um só significante”. Por exemplo, na frase: “Nascer é apenas começar

a morrer” a leitura em um só segmento “surpreenderá e escandalisará o leitor, impondo-lhe

delimitar este enunciado como uma certa totalidade” (WOŁOWSKA, 2008, p. 33, tradução nossa)33.

Há ainda uma segunda linha tipológica que nos interessa, justamente porque extrapola as disposições estruturais do paradoxo e exige o funcionamento da língua para acontecer. Por exemplo, ainda conforme a Retórica, temos a:

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Do original : “Paradoja. (Del gr. <parádoxa>, comp. Con <pára> y <doxa>, opinión; v. <PARA-, -DOXIA>) […] Expresión en que hay une *incompatibilidad aparente, que está resuelta en un pensamiento más profundo del que la enuncia; como en ‘el que no tiene nada, lo tiene todo!’ […] Coexistencia ilógica de cosas: ‘Es una paradoja que el más pobre es el que más gasta’” (MOLINER, 1989, p. 634).

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Chamamos a atenção para o fato de que, neste trabalho, propomos o estudo do mas em consonância com os trabalhos atuais de Carel (2011a), que apreende em concessão [A mas B], e não em oposição [A] mas [B], como veremos.

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Do original : « [...] lire un syntagme ou un énoncé paradoxal (p. Ex. Le torrent immobile) comme un seul signifiant. [...] Naître, c’est seulement commencer à mourir » (WOŁOWSKA, 2008, p. 33).

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Do original : « Le rappochement des présupposés contradictoires dans un seul segment surprendra et scandalisera le lecteur, en le poussant à délimiter cet énoncé comme une certaine totalité » (WOŁOWSKA, 2008, p. 33).

44 E) PARADIÁSTOLE (relação de ironia): Também tomado por empréstimo das figuras retóricas, trata-se de mais de uma significação dada entre as duas palavras do que a utilização ou não de mesmas palavras (antanaclase) ou palavras contrárias (oxímoro). Seria uma paradiástole, o enunciado abaixo (WOŁOWSKA, 2008, p. 30, tradução nossa)34:

Ele é amável como uma porta de prisão.

Como é difícil estabelecer relação léxico-estrutural entre o adjetivo amável e o substantivo

prisão, que se contrapõem, mas não no âmbito da oposição (que seria respectivamente odiável

e liberdade), vamos entender que se trata de um funcionamento paradoxal enunciativo.

Também é interessante dizer que, como a antanaclase e o oxímoro, a Retórica não considera a paradiástole um paradoxo, mas uma figura de linguagem. Nós, certamente, porque observamos argumentativamente ali sentidos opostos interdependentes. A paradiástole é um paradoxo enunciativo, já que a ironia é um fenômeno enunciativo.

Findamos aqui este panorama inicial dos estudos clássicos do paradoxo, lógico e retórico, localizando-os respectivamente em duas linhas de pesquisa: a Lógica na linha de estudos que estudam o paradoxo separando seus elementos, e a Retórica na linha de estudos que observam interdependentemente os seus elementos. Embora assumamos a linha interdependente paradoxal, afastamo-nos tanto da Lógica quanto da Retórica por filiarmo-nos a uma teoria de base argumentativa, espistemologicamente distinta de ambas, e que passaremos a expor agora. Isto é, o estatuto desta diferença separação/interdependência argumentativa será desenvolvido nos próximos capítulos.

Doravante, nosso propósito será expandir o panorama de: observar o paradoxo tal como propomos (o paradoxo semântico, que prevê interdependência de conteúdos opostos), acessá-lo onde escolhemos (em definições de dicionários), apreendê-lo como pretendemos (analisável argumentativamente, pela Teoria dos Blocos Semânticos), segundo os objetivos que traçamos. E mesmo que falemos apenas a palavra “paradoxo” (porque assim ela é mencionada em dicionários e outros estudos), se o tratarmos enquanto interdependência de opostos, estamos falando de “paradoxo semântico” (nossa hipótese).

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