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CAPÍTULO III – A TEORIA DOS BLOCOS SEMÂNTICOS

3.7 A relação expressivos/evocadores: os termos de um enunciado

Tendo observado a dupla função do enunciado (expressar aspectos e evocar encadeamentos), Carel procura demonstrar como o semanticista realiza estas duas operações. Para isso, a linguista se vale de todos os termos presentes (ou elipsados) de sua unidade de análise, o enunciado em questão: artigos, substantivos, verbos, adjetivos, advérbios, pronomes, conectivos, numerais, nomes próprios etc. Deste acervo de palavras que compõem o enunciado, Carel propõe que o semanticista saiba discerni-las entre duas regras semânticas: uma que enquadra as palavras na família dos termos expressivos e outra que enquadra outras palavras na família dos termos evocadores, assim:

Os termos de um enunciado podem assim ter duas regras: participar da determinação do aspecto expresso pelo enunciado – eles serão então ditos expressivos ([...] onde temos distinguido entre eles os termos constitutivos e os operadores); ou participar da determinação do encadeamento evocado – eles serão então ditos evocadores. [...] Eu distinguirei dois tipos de termos evocadores: os evocadores aspectivos e os evocadores seletores (CAREL, 2011a, p. 218, tradução nossa)91.

Conforme o trecho acima e de modo sucinto, podemos então assim visualizar as duas famílias de termos de um enunciado qualquer:

91

Do original : « Les termes d’un énoncé peuvent ainsi avoir deux rôles : participer à la détermination de l’aspect exprimé par l’énoncé – ils seront alors dits expressifs ([...]où ont été distingués parmi eux les termes constitutifs et les opérateurs) ; ou participer à la détermination de l’enchaînement évoqué – ils seront alors dits

116 1) EXPRESSIVOS: participam da determinação de aspectos exprimidos;

Constitui-se de termos constitutivos e operadores.

2) EVOCADORES: participam da determinação de encadeamentos evocados. Constitui-se de termos aspectivos e seletores.

Na esteira das elaborações teóricas anteriores – de modo amplo, aspectos são universais e encadeamentos são singulares –, de modo pormenorizado, os termos expressivos são da mesma forma determinados por certa universalidade e os termos evocadores determinados por certa singularidade, ambas especificas do enunciado em questão.

Exporemos agora uma sequência de enunciados estudados por Carel (2011a, tradução nossa) 92 apenas a título ilustrativo, para que se observe estas seis nomeações em algumas das palavras que compõem o enunciado:

92

Do original : Exemplo 1:

« Énoncé : Mon coeur voulut en oubliant punir ses mépris. Evoque : Hermione m’a méprisé donc mon coeur l’a oubliée

Exprime : ETRE MEPRISE DC PUNIR » (CAREL, 2011a, p. 224 ; 233). Exemplo 2:

« Énoncé : Pierre a été prudent.

Evoque : C’etait dangereux, donc Pierre a pris des précautions. Exprime : DANGER DC PRECAUTION » (CAREL, 2011a, p. 232). Exemplo 3:

« Énoncé : Le prudent alpiniste est redescendu avant la pluie.

Evoque : Il allait y avoir de la pluie et donc cet alpiniste est redescendu Exprime : PLUIE DC REDESCENDRE » (CAREL, 2011a, p. 233). Exemplo 4:

« Énoncé : Quelques kilomètres séparant le col et le vallon.

Evoque : Le col et le valon sont distincts donc ils ne sont pas dans le même lieu. Exprime : DISTINCTS DC NEG UNIS » (CAREL, 2011a, p. 233).

Exemplo 5:

« Énoncé: Tu m’as suivi avec courage dans ma retraite. Evoque: le lieu où je suis est retiré pourtant tu m’y as suivi. Exprime: PENIBLE PT FAIT » (CAREL, 2011a, p. 164-165).

117 • Exemplo 1:

evocador seletor

Meu coração queria esquecer de punir seus desprezos.

evocador aspectivo expressivos constitutivos

(SER DESPREZADO DC PUNIR)

Evoca (encadeamento): Hermione me desprezou, portanto meu coração a esqueceu. Exprime (aspecto): SER DESPREZADO DC PUNIR

• Exemplo 2:

Pedro foi prudente.

Evocador seletor expressivo constitutivo (PERIGO DC PRECAUÇÃO)

Evoca (encadeamento): Era perigoso, portanto Pedro tomou precauções. Exprime (aspecto): PERIGO DC PRECAUÇÃO

• Exemplo 3:

evocador seletor evocador seletor

O prudente alpinista recuou antes da chuva.

expressivo constitutivo evocador aspectivo (PERIGO DC PRECAUÇÃO) (CHUVA DC RECUAR)

Evoca (encadeamento): Iria chover ali, portanto o alpinista recuou. Exprime (aspecto) : PERIGO DC PRECAUÇÃO

• Exemple 4:

expressivo operador evocador seletor

Alguns quilômetros separam o desfiladeiro e o vale.

evocador aspectivo expressivo constitutivo

(DISTINTO DC NEG-MESMO LUGAR) (DISTINTOS DC NEG-UNIDOS)

Evoca (encadeamento): O desfiladeiro e o vale são distintos, portanto eles não estão

no mesmo lugar.

118 • Exemple 5:

(PENOSO PT FAZER)

evocador seletor expressivo constitutivo

Você me seguiu com coragem no meu retiro.

evocador aspectivo evocador aspectivo

(RETIRADO PT IR ATÉ LÁ)

Evoca (encadeamento): O lugar em que estou é retirado, no entanto você me seguiu

por ele.

Exprime (aspecto) : PENOSO PT FAZER

Pela rápida micro-análise ilustrativa acima, distante de pretensões maiores, pudemos observar no mínimo que, para a fase atual da TBS, os termos que se entrelaçam compondo qualquer enunciado inscrevem-se em duas famílias semânticas: os termos expressivos e os evocadores. O primeiro grupo exprime universalidades semânticas por meio de “aspectos”; e o segundo grupo evoca a concretização desses aspectos ao parafrasear a singularidade do projeto de sentido do enunciado em “portanto” ou “no entanto”. As duas famílias expandem seus termos em constitutivos e operadores (no grupo dos expressivos) e aspectivos e seletores (no grupo dos evocadores). Após os exemplos dados, podemos defini-los melhor.

Os termos expressivos constitutivos são expressões da língua providas de um sentido pleno, descritos por aspectos (CAREL, 2011a, p. 99), como por exemplo, a palavra muro, cujo aspecto é “RAZÃO DE COMUNICAR PT SEPARAÇÃO” (CAREL, 2011a, p. 96, tradução nossa)93. Os constitutivos são aqueles que participam diretamente do aspecto central do enunciado. São os termos que têm lugar privilegiado no entrelaçamento no sentido de que são indispensáveis para que se expresse o aspecto total principal do enunciado. Podem ser nomes (prudente, coragem, perigo etc) verbos (punir, chover etc) dentre outros.

Carel (2011a, p. 164) também nomeia tais palavras de “termos plenos”, dizendo que eles intervêm materialmente e semanticamente no enunciado (CAREL, 2011a, p. 109). Também Ducrot apresentou os termos constitutivos pelo nome “palavras plenas”. Os constitutivos, ou termos plenos, são aqueles que carregam em si um aspecto que participará do sentido central do enunciado/discurso. Para Ducrot (CAREL; DUCROT, 2005, p. 166,

93

119 tradução nossa)94, elas teriam como definição um critério técnico: “Em nossa perspectiva serão ‘palavras plenas’ todas aquelas palavras às quais podemos atribuir-lhes uma AI e uma AE” (definiremos AI e AE a seu tempo). Os termos constitutivos têm por função nos fazer entender que toda palavra tem por vocação aparecer em um enunciado, como explica Carel (2011a, p. 100, tradução nossa)95 a respeito da palavra “prudente”: “a palavra prudente tem por vocação aparecer em um enunciado, e é o sentido do enunciado no qual ela intervém que representa o sentido da palavra prudente”.

Os termos expressivos operadores integram o conjunto de palavras que Ducrot chamou outrora de “palavras instrumentais” (DUCROT, 2002, p. 11), e posteriormente nomeou “palavras ferramentas” (CAREL; DUCROT, 2005, p. 166, tradução nossa)96, assim: “chamaremos palavras ‘ferramentas’ àquelas a que não queremos ou que não podemos associar um conjunto específico de aspectos e de discursos”. Especificamente, são palavras cuja função é aplicar-se à outra para produzir certo sentido ao afetar esta outra palavra, como explica Ducrot: “Definiremos como ‘operador’ uma palavra Y que, aplicada a uma palavra X, produz um sintagma XY [...] o operador não faz senão combinar, reorganizar de uma maneira distinta os constituintes semânticos de X” (CAREL; DUCROT, 2005, p. 166-167, tradução nossa)97. Ducrot (2002, p. 11; CAREL; DUCROT, 2005, p. 166) ainda elenca nessa classe de palavras ferramentas, além dos operadores, os conectores (portanto, no entanto etc), os articuladores (mas etc), os operadores modificadores (pouco, um pouco, muito, demais, fácil (no que tange a “problema fácil” etc), internalizadores (outros usos de “demais”, quase todos os usos de “em vão”). Semanticamente falando, não poderíamos jamais dizer que um operador é dispensável na constituição do sentido (denominá-lo de adjunto adnominal, por exemplo). Ora, é fácil perceber o impacto da diferença de sentidos entre “João é prudente” (que valida certa positividade a João, qual seja) e “João é pouco prudente” (que valida certa

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Do original : “En nuestra perspectiva séran ‘palabras plenas’ todas aquellas palabras a las cuales podemos atribuirles una AI y una AE” (CAREL; DUCROT, 2005, p. 166).

95

Do original: « le mot prudent a pour vocation d’apparaître dans un énoncé et c’est le sens des énoncés où il interviendra que représente le sens du mot prudente » (CAREL, 2011a, p. 100).

96 Do original : “llamaremos palabras ‘herramientas’ a aquellas a las que no queremos o no podemos asociar un

conjuntoespecífico de aspectos y de discursos” (CAREL; DUCROT, 2005, p. 166).

97

Do original : “Definiremos como ‘operador’ una palabra Y que, aplicada a una palabra X, produce u sintagma XY […] el operador no hace sino combinar, reorganizar de una manera distinta los constituyentes semánticos de X” (CAREL; DUCROT, 2005, p. 166).

120 negatividade a João, qual seja). O operador “pouco” tem ali um caráter fundamental para o sentido total do enunciado.

Já no que tange aos termos evocadores aspectivos, Carel (2011a, p. 165, tradução nossa)98 vai explicar que eles “podem, por exemplo, ser ‘mostrados’ pelo locutor como justificando a mobilização do aspecto principal”. No que tange ao enunciado-exemplo 5 acima, por exemplo, “[...] os termos aspectivos ‘seguir’ e ‘retiro’ justificam a mobilização de PENOSO PT FAZER”. Em termos gramaticais, poderíamos pensar os aspectivos enquanto relações de exemplos ou de sinônimos dos expressivos (um outro aspecto fiel ao aspecto principal). Podemos perceber isso nos três últimos exemplos tirados de Carel: no enunciado- exemplo 3 Carel (2011, p. 233) vai dizer que os termos aspectivos “recuou antes da chuva” que expressam “CHUVA DC RECUAR” são fiéis e mobilizam o aspecto central do enunciado 3: PERIGO DC PRECAUÇÃO; no enunciado-exemplo 4 o aspectivo “quilômetros” que expressa “DISTINTO DC NEG-MESMO LUGAR” é fiel e mobiliza o aspecto central do enunciado 4: “DISTINTOS DC NEG-UNIDOS”; e no enunciado-exemplo 5, Carel (2011a, p. 165) mostrar como nos anteriores que os aspectivos “seguiu” e “retiro” que expressam “RETIRADO PT IR ATÉ LÁ” são fiéis e mobilizam o aspecto central do enunciado 5: “PENOSO PT FAZER”. Assim, os termos aspectivos são aqueles que apresentam um outro aspecto que mobiliza o aspecto principal do enunciado.

Os termos evocadores seletores, diferentemente dos aspectivos, não mobilizam aspectos por si mesmos. Por si mesmos, “Os seletores, ao contrário, não participam da determinação de nenhum elemento do sentido, nem por conexão, nem graças a sua própria significação. Eles não dizem nada, eles são vazios” (CAREL, 2011a, p. 165, tradução nossa)99. Quando se diz que os seletores não têm sentido por si só, significa dizer que os outros termos só têm sentidos associados aos seletores. Por exemplo, Carel (2011a, p. 100, tradução nossa)100 vai explicar que o expressivo pleno ‘prudente’ não tem sentido (mesmo que possa ter significado) sem um seletor a ele relacionado: “O aspecto PERIGO DC NEG- FAZER não constitui uma entidade independente que, significada pelo termo prudente, estaria

98Do original : « Ils peuvent par exemple être <montrés> par le locuteur comme justifiant la mobilisation de

l’aspect principal [...] les termes aspectifs retraite et suivre justifient la mobilisation de PENIBLE PT FAIT » (CAREL, 2011a, p. 165).

99

Do original : « Les sélecteurs par contre ne participent à la détermination d’aucun élément de sens, ni par connexion, ni grâce à leur propre signification.Ils ne disent rien, ils sont vides (CAREL, 2011a, p. 165).

100 Do original : « L’aspect DANGER DC NEG FAIRE ne constitue pas une entité indépendante qui, signifiée

par le terme prudente, se trouverait ensuite se combiner à ce que signifie le mot Pierre de manière à produire le sens de l’énoncé Pierre est prudent » (CAREL, 2011a, p. 100).

121 a seguir combinada àquilo que significa a palavra Pedro de maneira a produzir o sentido do enunciado Pedro é prudente”. A razão de ser dos seletores é produzir o efeito de sentido de que “os termos não são isoladamente significados” (2011a, p. 100, tradução nossa)101. No caso do uso de “prudente” (ou outro expressivo) alguém deve ser selecionado a ser (ou não) prudente. Esta função é do seletor. No caso do exemplo 1 o seletor é uma coisa (coração), no caso do exemplo 2 e 3 os seletores são pessoas (Pedro e o alpinista), e no exemplo 4 o seletor é um lugar (desfiladeiro e o vale), e no exemplo 5 é o interlocutor (você). Aliados aos aspectos centrais, assim os seletores concretizam o sentido:

Exemplo 1 – {meu coração + [SER DESPREZADO DC PUNIR]} Exemplo 2 – {Pedro + [PERIGO DC PRECAUÇÃO]}

Exemplo 3 – {o alpinista + [PERIGO DC PRECAUÇÃO]}

Exemplo 4 – {o desfiladeiro e o vale + [DISTINTOS DC NEG-UNIDOS]} Exemplo 5 – {você me + [PENOSO PT FAZER]}

Por fim, resta-nos dizer que ao estabelecer uma classificação semântica do léxico neste molde quádruplo, Carel e Ducrot decidem que o tratamento do sentido está atrelado incondicionalmente à I) sua relação com outras palavras, e II) sua inserção em uma unidade de sentido maior, o enunciado, micro-analiticamente falando, e o discurso, macro- analiticamente falando (refletiremos sobre o discurso adiante, em outro capítulo).