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CAPÍTULO II – A TEORIA DA ARGUMENTAÇÃO NA LÍNGUA

2.3 A relação frase/enunciado: significação/sentido

Se por um lado o objeto de análise da ANL (até à época da TBS) é a argumentação, e o critério básico da ANL (até a atualidade da TBS) foi a sempre relação “sentido – argumentação”, por outro lado, tal relação só é flagrada, observada e analisada pelo/no

enunciado. Deste modo, Ducrot estabeleceu o enunciado como sua unidade de análise.

Fortemente agenciado por Saussure (privilegiando um estudo na língua), enfatizou que não compreende o enunciado enquanto processos de ordem psicológica nem como mecanismos cognitivos (DUCROT, 1980, p. 33-34), mas prevê o enunciado como produto linguístico produzido pela enunciação. É um acontecimento histórico do surgimento da enunciação, totalmente linguístico, que desconsidera, inclusive, o sujeito fisiológico falante:

Eu dou de fato a este conceito uma função puramente semântica. [...] Há momentos em que eles não existem ainda e momentos em que eles não existem mais: o que eu preciso é que contemos entre os fatos históricos o surgimento de enunciados em diferentes pontos do tempo e do espaço40 (DUCROT, 1980, p. 34, tradução nossa).

40 Do original: « Je donne em effet à ce concept une fonction purement sémantique. [...] Il y a des moments où ils

n’existent pas encore et des moments où ils n’existent plus : ce dont j’ai besoin, c’est que l’on compte parmi les faits historiques le surgissement d’énoncés en différents points du temps et de l’espace » (DUCROT, 1980, p. 34).

52 Ademais, estudar o enunciado por determinâncias saussureanas levou Ducrot a assumir algumas noções básicas do linguista, como a noção de relação, valor, e as dicotomias língua/fala, e significante/significação, já que para ele, “[...] o objeto teórico ‘língua’ não pode ser construído sem fazer-se alusão à atividade da fala” (DUCROT, 1987, p. 64).

A dicotomia saussureana língua/fala levou Ducrot a desenvolver o par frase/enunciado, respectivamente. E a noção de signo (composto pelo par indissociável significante/significado), que investiga seu valor, levou Ducrot a conceber o par: significado/sentido. Operar dados da língua para que se chegue ao sentido, segundo a ANL, é apreender a seguinte correspondência metodológica:

Quadro 2 - Primeira elaboração das dimensões “língua/fala”

Língua Fala

Frase Enunciado

Significação Sentido

O quadro não significa isolamento porque os pares trabalham na cumplicidade. Melhor pormenorizado, assim define Ducrot: “A frase é a entidade gramatical abstrata, e o enunciado é uma realização particular da frase. O sentido é o valor semântico do enunciado, a

significação, o valor semântico da frase” (DUCROT, 1987, p. 31). Não se trata apenas de uma

divisão para dar coerência a Saussure. É uma distinção metodológica. A frase, neste contexto, tem uma função específica:

[...] Nós concebemos as significações das frases como instruções para decodificar seus enunciados explorando as indicações fornecidas pela situação de discurso. Como cremos, de fato, para um ‘sentido literal’ da frase, que seria uma porção do sentido do enunciado. (DUCROT, 1980, p. 32-33, tradução nossa).41

O estudo da enunciação, para a ANL, é impossível se não se considera os aspectos que estão na língua, e se não estão na língua, se chega a eles pela língua. O valor do enunciado está na língua. Não se pode dizer que Ducrot é puramente um estruturalista ingênuo, porque sua

41

Do original : « [...] on conçoit les significations de phrases comme instructions pour décoder leurs énoncés en explotiant les indications fournies par la situation de discours. Tant qu’on croit, en effet, à un « sens littéral » de la phrase, qui serait une portion du sens de l’énoncé ». (DUCROT, 1980, p. 32-33).

53 atenção dada à língua não desmerece ou exclui as dinâmicas da enunciação. Sua observação da língua, de certa forma, abarca o enunciado, com todos os seus mistérios e desafios que a pragmática já revelou há décadas, e a ANL tem caro interesse. Estudar a língua sem desmerecer a enunciação significa que seria pobre ou no mínimo insuficiente abandonar os aspectos instrucionais marcados na frase para estudar somente o sentido só pela enunciação por si só, como propõe Auroux (1998, p. 19), quando afirma que a língua em si não existe.

Mesmo se certas minúcias do sentido são reveladas pela situação, como bem procurou trabalhar a pragmática, Ducrot concorda que só se chega a tais aspectos por instruções da frase, que será posta em funcionamento, de modo a revelar uma situação específica:

[...] Mas, se nós representamos a significação como um conjunto de direcionamentos sobre o modo pelo qual a situação deve ser apreendida, então é todo o sentido do enunciado que se encontra influenciado pela estrutura semântica da frase – em todo caso, há um grande número de aspectos semânticos ligados a uma situação e cuja integração ao sentido é imposta pela significação atribuída à frase.

(DUCROT, 1980, p. 33, tradução nossa).42

E mesmo que posturas pejorativas quanto à inclusão da frase em pesquisas semânticas critiquem a observação do sentido por vias de frase, acusando tal procedimento de limitar o sentido de alguma forma, Ducrot justifica que é justamente o contrário: o funcionamento da estrutura desvela infinitos sentidos. Não que ele fosse filiado à concepção gerativista de Noam Chomsky, cuja finitude de regras permite elaborar infinitude de frases, mas assume (e chega a trabalhar com) uma similitude metodológica com o par chomskyano estrutura superficial/estrutura profunda – respectivamente frase/enunciado (DUCROT, 1968, p. 119; DUCROT, 1987, p. 60), onde a enunciação de uma mesma frase produzirá distintos e infinitos sentidos:

[...]o que não implica, aliás, eu o disse, que a significação determine para o enunciado, em uma situação dada, um só sentido: pois a linguística não pode determinar quais elementos, entre a multidão de componentes situacionais, o interprete reterá como pertinentes, e quais ele negligenciará: há mil maneiras

42 Do original : « [...] Mais, si l’on se représente la signification comme um ensemble de directives sur la façon

dont la situation doit être prise en compte, alors c’est tout le sens de l’énoncé qui se trouve influencé par la structure sémantique de la phrase – en tout cas, il y a un grand nombre d’aspects sémantiques liés à la situation et dont l’intégration dans le sens est imposée par la signification attribuée à la phrase » (DUCROT, 1980, p. 33).

54 possíveis de obedecer às instruções veiculadas pela frase. (DUCROT, 1980, p. 33, tradução nossa)43.

Frase e enunciação não são metodologicamente antonímicos. O nível da frase jamais estanca os sentidos, como criticam pejorativamente alguns excessivos, ao contrário, o potencializa, enquanto metodologia de rigor analítico. Soerguer a “bandeira” da frase (estrutura engessada, mas prenhe de significações), significa possibilitar potencialidade de profundidade investigativa para o enunciado. Ponderar a imobilidade frástica no caos do movimento enunciativo é poder fotografar (DUCROT, 1987, p. 42) este caos por elementos da própria frase. Praticar semântica de modo enunciativo é considerar que a opacidade da situação não se desvencilha da formalidade da estrutura, pelo contrário, manifesta sua pluralidade infinita de sentidos expostos pela singularidade evidente da frase. Qualquer tipo de enunciação – mesmo as bizarras – é agenciada pela frase, mesmo as paradoxais do tipo “Não tenho palavras pra

explicar isso”, em que o sentido é algo como o “locutor assumir a [falta de palavras para

explicar X]” dado pelo significado que é o “locutor organizar certas palavras que explicam a [falta de palavras para explicar X]”. Logo, percebe-se um paradoxo que o semanticista terá que aprofundar: o “isso” frástico já é uma explicação para a não-explicação enunciada. É a frase que dará instruções para a descrição enunciativa dessa falta-que-não-é-falta.

Após a concepção do par frase/enunciado para operar o sentido, Ducrot ainda propõe uma metodologia para trabalhar neste limite, ou como prefere Carel (2011a), para entrelaçar significação e sentido: trata-se de uma máquina da associação observação-explicação (DUCROT, 1987, p. 53-54). Segundo ele, trata-se de um procedimento de análise que transcorrem dois passos:

1 – Está no âmbito da frase, a análise no nível da “observação”, também chamada externa, lugar da significação (ausência de situação). É o nome que leva o olhar analítico pela literalidade. Ou como chama, a introspecção artificial; e

2 – No âmbito do enunciado. A análise no nível da “explicação”, que também chama interna, lugar do sentido (significação mais situação). É o nome que leva o olhar analítico para certo emprego da estrutura no enunciado. O resultado da equação do que chama “componente retórico + componente linguístico” (é sempre bom enfatizar que o autor, ao falar em retórica,

43Do original : « [...] (ce qui n’inplique d’ailleurs pas, je l’ai dit, que la signification détermine pour énoncé,

dans une situation donné, un seul sens : car la linguistique ne peut pas déterminer quels éléments, parmi la multitude des composants situationnels, l’interprétant retiendra comme pertinents, et lesquels il négligera : il y a mille façons possibles d’obéir aux instructions véhiculées par la phrase) » (DUCROT, 1980, p. 33).

55 faz questão de situar seu afastamento da retórica clássica da persuasão, cf. Ducrot (2009)).

Ao pretender investigar o sentido por vias do estruturalismo da ANL, podemos pensar (inicialmente) no seguinte resumo metodológico da máquina da associação observação- explicação de Ducrot (1987, p. 53-54):

• Frase: nível da OBSERVAÇÃO /externa / significação – ausência de situação / literal / introspecção artificial, corresponde à estrutural superficial de Chomsky;

Enunciado: nível da EXPLICAÇÃO / interna / sentido – emprego no enunciado / componente retórico + componente linguístico, corresponde à estrutura profunda de Chomsky.

Para ilustrar a máquina, retomaremos o exemplo de Ducrot (1968, p. 118-119, tradução nossa). Consideremos os enunciados:

a) Eu te prometo vir. b) Eu te permito vir.

Deles, Ducrot vai traçar uma análise pelos dois procedimentos: um de observação, superficial, no nível da frase, e outro de explicação, profundo, no nível do enunciado, considerando a situação.

Observando a frase isenta de situação, por uma visada só estruturalista-frástica teremos uma análise onde “O ambiente Eu te ... vir comporta, nos dois casos, exatamente os mesmos sons e os mesmos morfemas (um pronome sujeito, um pronome complemento de objeto indireto, e um infinitivo)” (DUCROT, 1968, p. 118, tradução nossa)44.

Como é de se notar, Ducrot faz a seguinte conclusão de uma análise apenas pelo nível

observacional exterior superficial frástico estrutural não situacional: “À vista dos enunciados

a e b, o ‘estruturalismo’ será então induzido a localizar os verbos prometer e permitir no mesmo paradigma” (DUCROT, 1968, p. 118, tradução nossa)45.

Mas na mesma análise, Ducrot ainda profere sua crítica ao estruturalismo não situacional, promovendo uma segunda leitura no nível explicativo interior profundo

44

Do original : « L’environnement Je te ...de venir comporte, dans les deux cas, exactement les mêmes sons et les mêmes morphèmes (un pronom sujet, un pronom complément d’objet indirect et un infinitf précédé de de) » (DUCROT, 1968, p. 118).

45 Do original : « Au vu des énoncés a et b, le « structuraliste » sera donc induit à placer les verbes promettre et permettre dans le même paradigme » (DUCROT, 1968, p. 118).

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situacional enunciativo: “Existe, no entanto, entre a et b, uma diferença essencial. Em a trata-

se da minha vinda e em b, da de meu interlocutor (DUCROT, 1968, p. 118-119, tradução nossa). Marcada tal diferença, pondera teoricamente que “Somente a ‘religião do corpus’ interdita ao estruturalismo de se interessar por esta diferença, que não há nenhuma marca visível no texto. (DUCROT, 1968, p. 118-119, tradução nossa)46.”

Deste modo, percebe-se que Ducrot, na sua primeira obra publicada, ao contrário do que muitos pensam, não defendia o estruturalismo saussureano, mas o criticava, se não operado pelo nível do enunciado, de modo a acrescentar ao nível superficial (frase), um nível profundo (enunciado). Na continuidade, resolvendo o problema da análise por um nível de enunciado, profundo interior e situacional, Ducrot sugere tanto para a quanto para b duas estruturas:

Quadro 3 - A estrutura profunda

a) Eu te prometo vir. b) Eu te permito vir.

a1) Eu te prometo. b1) Eu te permito.

a2) Eu virei. b2) Você virá.

Deste modo, “a é então obtido por uma transformação que encaixa a estrutura de a2 naquela de a1, e b por uma transformação U, que encaixa b2 em b1” (DUCROT, 1968, p. 119, tradução nossa)47

A pertinência do uso da máquina frase/enunciado é propiciar o desvelamento do sentido pelo procedimento do qual frases, de um nível observacional superficial, são retiradas, por transformação (T e U), de um enunciado, por um nível explicacional profundo.

É fácil perceber então que, para a ANL, o estruturalismo “não se conforma com seu lugar”, e reclama desde os anos sessenta, questões de uso caras à pragmática, donde Ducrot não tardará em “beber” teoricamente, além da constante atenção e consideração para a

46 Do original : « Il y a cependant, entre a et b, une différence essentielle. Dans a il s’agit de ma venue et dans b,

de celle de mon interlocuteur [...] Seulement la « religion du corpus » interdit au structuraliste de s’intéreser à cette différence, qui n’a aucune marque visible dans le texte ». (DUCROT, 1968, p. 118-119).

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Do original : « a est donc obtenu par une transformation T qui emboîte la structure de a2 dans celle de a1, et b par une transformation U, qui emboîte b2 dans b1. » (DUCROT, 1968, p. 119).

E st ru tu ra pr of unda

57 situação e contexto, que se dará sobremaneira contemporaneamente no desenrolar da TBS (sobretudo em Carel (2011a).

E não é difícil de averiguar, diante de tamanha exigência semântica, que o estruturalismo professado pela ANL não fica atrás de questões caras aos interesses brasileiros, como os discursivos de toda ordem e os pragmáticos, dentre outros. Isso será assunto de outros capítulos.