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2.3 LINGUAGEM E VIVÊNCIAS NO TRABALHO

2.3.2 A relação com o outro

Considerando o enunciado como unidade de análise das relações discursivas, será

abordado o plano da exotopia e responsividade que funciona em uma dinâmica conjunta e que

perpassa a relação com o outro na construção de sentidos e nas relações dialógicas.

A discussão que envolve a exotopia como categoria do pensamento bakhtiniano está

presente principalmente no texto "O autor e o herói" (1987). A exotopia refere-se ao papel do

autor em relação ao herói/personagem, mas também pode servir de referência nas outras

relações que os sujeitos vivenciam.

O conceito de exotopia em Bakhtin remete ao excedente de visão pelo lugar que é

ocupado na relação:

Esse excedente da minha visão, do meu conhecimento, da minha posse – excedente sempre presente em face de qualquer outro indivíduo – é condicionado pela singularidade e pela insubstituibilidade do meu lugar no mundo: porque nesse momento e nesse lugar, em que sou o único a estar situado em dado conjunto de circunstâncias, todos os outros estão fora de mim (BAKHTIN, 2011, p.21).

É pelo outro que a visibilidade de cada um se torna mais clara, pelo seu discurso que

existe a possibilidade de compreender o lugar temporal e espacial que eu ocupo no mundo.

Assim, por meio do outro, de sua linguagem o sujeito pode visualizar aspectos que antes não

eram vistos e que, possivelmente, não seriam percebidos fora da relação com o outro.

A exotopia é uma relação de tensão entre pelo menos dois lugares, que são: “o do

sujeito que vive e olha de onde vive, e daquele que, estando de fora da experiência do primeiro,

tenta mostrar o que vê do olhar do outro” (AMORIM, 2014, p.101). Representa o fato de uma

consciência estar fora da outra, de uma consciência ver a outra como um todo acabado, um

acabamento daquilo que por natureza é inacabado, o que ela não pode fazer consigo mesma

(TEZZA, 2007, p.239; AMORIM, 2014, p.102).

Assim em uma conversa:

[...] o ouvinte, ao perceber e compreender o significado (linguístico) do discurso, ocupa simultaneamente em relação a ele uma ativa posição responsiva: concorda ou discorda dele (total ou parcialmente), completa-o, aplica-o prepara-se para usá-lo, etc.; essa posição responsiva do ouvinte se forma ao longo de todo processo de audição e compreensão desde o seu início, às vezes literalmente a partir da primeira palavra do falante (BAKHTIN, 2011, p.271).

Amorim (2014, p.98) trata da importância do conceito de exotopia especialmente para

o trabalho de pesquisa em Ciências Humanas. Uma vez que as Ciências Humanas são

compreendidas por Bakhtin como ciências do texto, já que o que há de essencialmente humano

no homem é o fato de ser um sujeito falante, um produtor de textos. Assim, na pesquisa onde

pesquisador e pesquisado são produtores de texto existe dialógica. Em decorrência disto, “o

texto do pesquisador não deve emudecer o texto do pesquisado, deve restituir as condições de

enunciação e de circulação que lhe conferem as múltiplas possibilidades de sentido”

(AMORIM, 2014, p.98).

A autora ressalta ainda que “o pesquisador deve fazer intervir a sua posição exterior:

sua problemática, suas teorias, seus valores, seu contexto sócio-historico, para revelar do sujeito

algo que ele mesmo não pode ver” (AMORIM, 2014, p. 100). Ou seja, ao mesmo tempo em

que o pesquisador não pode calar o pesquisado, ele também não pode se calar, e nesse

movimento é que se constrói a relação dialógica.

Dentre os inúmeros desafios existentes na relação dialógica é preciso destacar a

disponibilidade para mudança que precisa existir entre o sujeito e o outro. Pois na exotopia

existe a possibilidade de muitos acordos e desacordos, encontros e desencontros que de uma

forma ou de outra acarretam em mudanças de ambos os lados. É como Bakhtin expõe:

o sujeito da compreensão não pode excluir a possibilidade de mudança e até de renúncia aos seus pontos de vista e posições já prontos. No ato de compreensão desenvolve-se uma luta cujo resultado é a mudança mútua e o enriquecimento (BAKHTIN, 2011, p.378).

A partir de uma atitude responsiva ativa os sentidos no diálogo vão se construindo, se

transformando. Na autoconfrontação as reflexões que surgem no decorrer da relação dialógica

contribuem para o movimento em cada sujeito, abrem espaço para novas construções, novas

visões, contradições, apesar das infinitas determinações históricas, sociais, culturais, políticas,

econômicas de cada um. Segundo Fiorin (2016, p. 8), “isso quer dizer que a compreensão

passiva de significação é apenas parte do processo global de compreensão. O todo é a

compreensão responsiva ativa, que se expressa num ato real de resposta. ”

Nesse sentido, Bakhtin (2011, p. 296-297, grifos do autor) afirma que:

Todo enunciado concreto é um elo na cadeia da comunicação discursiva de um determinado campo. Os próprios limites do enunciado são determinados pela alternância dos sujeitos do discurso. Os enunciados não são indiferentes entre si nem se bastam cada uma a si mesmo; uns conhecem os outros e refletem mutuamente. Esses reflexos mútuos lhes determinam o caráter. Cada enunciado é pleno de ecos e ressonâncias de outros enunciados com os quais está ligado pela identidade da esfera da comunicação discursiva. Cada enunciado deve ser visto antes de tudo como uma resposta aos enunciados precedentes de um determinado campo (aqui concebemos a

palavra “resposta” no sentido mais amplo): ela os rejeita, confirma, completa, baseia- se neles, subentende-os como conhecidos, de certo modo os leva em conta. Porque o enunciado ocupa uma posição definida em uma dada esfera da comunicação, em uma dada questão, em um dado assunto, etc. É impossível alguém definir sua posição sem correlacioná-la com outras posições. Por isso cada enunciado é pleno de variadas atitudes responsivas a outros enunciados de dada esfera da comunicação discursiva.

Bakhtin ao enfatizar o aspecto ativo do sujeito e o caráter relacional de sua construção

como sujeito, bem como na construção “negociada” do sentido, se recusa tanto a perceber o

sujeito como contrário à sua inserção social, como sobreposto ao social, como um sujeito

submetido ao ambiente sócio-histórico, quanto a perceber o sujeito como fonte do sentido como

um sujeito assujeitado. [...] “Só me torno eu entre outros eus. Mas o sujeito, ainda que se defina

a partir do outro, ao mesmo tempo o define, é o “outro” do outro: eis o não acabamento

constitutivo do Ser, tão rico de ressonâncias filosóficas, discursivas e outras” (SOBRAL, 2013,

p.22, grifos do autor).

Após serem abordados aspectos da linguagem nas vivências e no trabalho, aspectos da

construção de sentidos e a relação com o outro como essenciais para compreensão da construção

de sentidos da sobrecarga no trabalho. Na sequência será exposto o quadro metodológico

empregado na pesquisa, conforme os preceitos tratados na fundamentação teórica.