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A relação entre medicamento com saúde na sociedade capitalista

CAPÍTULO 3 O ACESSO AO MEDICAMENTO COMO COMPONENTE DO

3.1. A relação entre medicamento com saúde na sociedade capitalista

A saúde, na sociedade de consumo, é tratada como um estado a ser recuperado, o indivíduo naturalmente possui a necessidade de saúde, a ser restabelecida por produtos, tais como os medicamentos. Associado a uma bagagem de signos (saúde, poder da prática médica, moda, status, estilo de vida), o medicamento comercializa e concretiza a saúde. Devido a sua carga simbólica e comercial, é indicado e usado abusivamente, resultando na medicalização social (CALDEIRA, 2006; GIOVANNI, 1978; LEFÈVRE, 1998).

A medicalização social é um fenômeno associado a transformações socioculturais, políticas e científicas relacionadas à incorporação de normas de conduta de origem biomédica na cultura geral e à redefinição de experiências humanas como problemas médicos. Sendo assim, determinam as formas legitimadas, oficializadas e profissionalizadas de cuidado e tratamento da saúde em um contexto de modernidade, lideradas pela biomedicina (TESSER,

BARROS, 2008), pela perspectiva positivista e pela lógica capitalista. Tal fenômeno é consequente do nascimento da medicina moderna (biomédica), que valoriza o saber médico como saber científico e acompanha o desenvolvimento do capitalismo, compreendendo estratégia biopolítica de controle social pelo controle do corpo (FOUCAULT, 1985).

Para estabelecer tal controle, difunde-se o medicamento de uma nova forma. A função simbólica do medicamento pressupõe que a doença seja algo orgânico, que pode ser enfrentado por um produto, um medicamento, visto como único modo válido de se obter um estado de saúde. Esse processo de simbolização usa meios de comunicação para propagar a idéia de que a dor e a doença não são padrões normais, cuja solução está no uso dos medicamentos (LEFÈVRE, 1983). Ademais, a dor em um meio medicalizado perturba e desnorteia quem a sente, o adoecimento é visto como fato clínico objetivo, portanto pode ser submetido a tratamento padronizado, controlado. Logo, o conhecimento cultural, tradicional, popular sobre esses processos transformam-se em virtudes obsoletas, pouco profissionais e muitas vezes indesejadas (TESSER, 2006).

Pode se afirmar que o medicamento é considerado como um símbolo de saúde, associado ao tratamento de uma doença e à recuperação da saúde. Segundo a teoria marxista, a ideologia do consumo crescente de mercadorias induz ao aumento do consumo desse produto de saúde. Como estratégia, propaga-se o medicamento de forma fetichista, como meio legítimo de viabilizar ou concretizar um sonho, um forte desejo, uma necessidade imperiosa, a própria vida, a saúde, numa pequena porção de matéria embalável (GIOVANNI, 1978; LEFÈVRE, 1998).

Na lógica do capital, a necessidade de ampliar o mercado farmacêutico desencadeia outro processo além da medicalização da vida social: a “mercantilização da doença”. Este fenômeno é definido como um processo de ampliação dos limites da doença de forma que se transformam pessoas saudáveis em doentes para facilitar a venda de tratamentos. Ou seja, alteram-se os padrões de saúde/saudável e doença/doente para ganhar mercado consumidor (CUNHA, 2008).

Nas formações sociais capitalistas, as mercadorias de saúde são estabelecidas como solução de um antagonismo entre um estado mau (carência ou necessidade de saúde) e um estado bom (saúde ou ausência de doença). A consequência desse pensamento é o surgimento do fluxo: Estado de Necessidade de Saúde → Produto de Saúde → Estado de Satisfação de Saúde (LEFÈVRE, 1991). Os agravos e ameaças que afetam o estado de saúde e geram essa necessidade, também podem ser criados pela sociedade, aliado a outros determinantes, como

por exemplo, biológicos. Numa perspectiva marxista, a organização socioeconômica responde pela “produção de saúde”, consumida por mercadorias, maquiadas pelo símbolo de proteção, assistência e cuidado. A partir do momento que as mercadorias resolvem o problema rapidamente e com eficácia, a causalidade social pode ser alienada e desconsiderada. No mercado de trabalho a falta de saúde representa a incapacidade de cumprir tarefas, afeta a força produtiva da sociedade; o que numa sociedade concorrencial de papéis é questão de sobrevivência o rápido restabelecimento do ator social (LEFÈVRE, 1991, p. 74).

Alienação da causalidade social como fator de risco à saúde desenvolve-se com a disseminação do mecanicismo cartesiano na prática médica. O advento da microbiologia e a determinação biológica da doença reforçam o abandono do aspecto social na contextualização da doença. Segundo Laporte e colaboradores (1989), é dessa forma que se estabelece a moderna prática médica, no qual o mito da doença como coisa orgânica é paradigmático. Nesse contexto, o medicamento representa o símbolo de poder do médico frente ao paciente, pois dentre várias doenças possíveis, o médico seleciona a verdadeira e, dentre as diferentes opções, escolhe a mais adequada (LAPORTE et al, 1989).

É importante salientar que o estado de saúde do indivíduo, resulta da confluência entre fatores econômicos, biológicos e genéticos. Ou seja, da mesma forma que os determinantes de saúde não se encerram em determinantes biológicos, também não se relacionam exclusivamente aos sociais e ao modo de produção capitalista (CALDEIRA, 2006).

A Organização Mundial da Saúde (OMS), em 1948, definiu Saúde como um estado do mais completo bem-estar físico, mental e social, não se encerrando apenas na ausência de enfermidade. Tal definição amplia o conceito de saúde justamente para incorporar a idéia da existência de outros fatores além dos biológicos que interferem no processo saúde-doença. Por outro lado, esse conceito é usado de maneira deturpada por um sistema de produção que ignora determinantes sociais de saúde, pois se concentra na idéia da necessidade de completo bem-estar de físico e mental para criar um produto para uma nova doença e, assim, estabelecer um novo mercado de consumo.

Considerando esse conceito ampliado de saúde e a necessidade de ampliar mercado, são criadas novas necessidades de saúde; estados naturais passam a ser considerados anormais (como exemplo: disfunção erétil, menopausa na terceira idade); ou estilos de vida são vendidos em fórmulas (tais como os medicamentos para emagrecimento e o uso de vitaminas). A partir disso, são vendidos na forma de frascos os produtos que alcançam o bem- estar em saúde.

Na teoria marxista, o processo de consumo não é derivado das necessidades, aspirações, desejos individuais ou sociais, mas como resultado objetivo das exigências econômicas para realização do valor, da mais-valia, do lucro. Para ilustrar, consideremos as doenças negligenciadas. A Campanha de Acesso a Medicamentos Essenciais, da organização não- governamental Médicos Sem Fronteira (MSF) documentou a necessidade de desenvolvimento de medicamentos para doenças de países em desenvolvimento ou pobres. Na ausência de novos tratamentos, os médicos são obrigados usar medicamentos antigos que são cada vez mais ineficazes. Os poucos medicamentos novos produzidos para doenças negligenciadas tendem a ser inacessíveis e mal adaptados aos que precisam deles. Apesar da necessidade real de novos medicamentos, como não se trata de um mercado rentável, não existe interesse em se desenvolver novas tecnologias de saúde para tais tratamentos (MSF, 2006).

Doenças tropicais, como a malária resistente à cloroquina, a leishmaniose visceral (mal de Calazar), a filariose linfática, a tripanossomíase africana humana, a doença de Chagas e a esquistossomose continuam a provocar morbidade e mortalidade significativas. Juntamente com a tuberculose, estas doenças ameaçadoras da vida têm sido chamadas coletivamente de doenças negligenciadas. Segundo os MSF, estas doenças são negligenciadas pelos que financiam a pesquisa e o desenvolvimento de novos medicamentos, porque os pacientes acometidos por elas não representam um mercado significativo ou porque afetam populações que não podem arcar com os custos do tratamento. Dos 1.393 novos medicamentos registrados entre 1975-1999, somente 1% era destinado a tratar doenças tropicais e tuberculose, apesar dessas doenças constituírem mais de 10% da carga global de doenças (MSF, 2006).

Conclui-se, portanto, que o medicamento carregado de contradições, pois atende às necessidades do capitalismo e às necessidades sociais de saúde. Dado ao fato do medicamento ser entendido como uma mercadoria e como um determinante de saúde, torna-se um grande desafio para o Estado garantir o acesso de acordo com os princípios e diretrizes do SUS.