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Estratégias da indústria farmacêutica frente à mundialização do capital

CAPÍTULO 2 – O COMPLEXO INDUSTRAL DA SAÚDE E O MERCADO DE

2.3. Estratégias da indústria farmacêutica frente à mundialização do capital

O termo “mercado” designa a propriedade privada dos meios de produção; a posse de ativos patrimoniais que comandam a apropriação sobre uma grande escala de riquezas criadas por outros. A partir da lógica capitalista, a economia é orientada para os objetivos únicos de rentabilidade e de competitividade. Quando o medicamento é concebido como mercadoria, passa a possuir um “valor de uso” ao lado de seu “valor de troca”, portanto, transforma-se em instrumento de acumulação de poder e capital, que acompanha a consolidação do capitalismo. Logo, torna-se importante tratar das estratégias da indústria farmacêutica no contexto de mundialização do capital, uma fase marcada por uma nova forma de acumulação capitalista, baseada no regime de acumulação predominantemente financeira, resposta à crise de superprodução dos anos 1970 (CEHSNAIS, 2001).

As políticas neoliberais e a reestruturação produtiva observadas nessa época impulsionaram a reformulação das estratégias e dos contextos regulatórios da indústria farmacêutica. Entretanto, desde antes do fenômeno da mundialização do capital, as indústrias

10 Refere-se à mundialização do capital ao invés de globalização da economia, pois não se trata de um processo

de integração global, mas de um fenômeno da desregulamentação e liberalização dos movimentos capitais em busca de mercados rentáveis, o que aprofunda as desigualdades e a heterogeneidade das economias (CHESNAIS, 2001).

farmacêuticas apostam nas possibilidades de geração de novos produtos e na imitação de inovações, em maior ou menor grau de diferenciação tecnológica, a depender das novas propriedades e características que uma diferente formulação possa originar a partir de um mesmo fármaco (QUEIROZ, VELÁSQUEZ GONZÁLEZ, 2001).

Em relação à produção de medicamentos genéricos11 ou similares12, as restrições advêm da possibilidade de proteção patentária. Mesmo que se conheçam os princípios ativos e excipientes das formulações, o resultado/desempenho do fármaco pode ser alterado por fatores tecnológicos não explicitados. O processo de obtenção de registro de medicamentos genéricos e similares envolve menores investimentos em P&D, ao invés de estudos clínicos são exigidos ensaios menos complexos: testes de bioequivalência13 e biodisponibilidade14 para os genéricos; testes de biodisponibilidade relativa15 e de equivalência farmacêutica16 para medicamentos similares. Tais testes substituem os ensaios pré-clínicos e clínicos necessários e exigidos para que um novo medicamento (ou inovador) tenha sua produção e comercialização autorizada pelas autoridades sanitárias de um país (QUEIROZ, VELÁSQUEZ GONZÁLEZ, 2001).

11 “Medicamento Genérico - medicamento similar a um produto de referência ou inovador, que se pretende ser

com este intercambiável, geralmente produzido após a expiração ou renúncia da proteção patentária ou de outros direitos de exclusividade, comprovada a sua eficácia, segurança e qualidade, e designado pela DCB ou, na sua ausência, pela DCI”.” Denominação Comum Brasileira (DCB) - denominação do fármaco ou princípio farmacologicamente ativo aprovada pelo órgão federal responsável pela vigilância sanitária;” “Denominação Comum Internacional (DCI) - denominação do fármaco ou princípio farmacologicamente ativo recomendada pela Organização Mundial de Saúde;” LEI Nº 9.787, DE 10 DE FEVEREIRO DE 1999.

12 Medicamento similar - aquele que contém o mesmo ou os mesmos princípios ativos, apresenta mesma

concentração, forma farmacêutica, via de administração, posologia e indicação terapêutica, e que é equivalente ao medicamento registrado no órgão federal responsável pela vigilância sanitária, podendo diferir somente em características relativas ao tamanho e forma do produto, prazo de validade, embalagem, rotulagem, excipientes e veículo, devendo sempre ser identificado por nome comercial ou marca. Apesar de ser obrigatórios testes de biodisponibilidade relativa em comparação ao medicamento de referência, ele não é intercambiável, ou seja, legalmente o dispensador do medicamento de referência não pode substituí-lo pelo medicamento similar.

13 Bioequivalência - consiste na demonstração de equivalência farmacêutica entre produtos apresentados sob a

mesma forma farmacêutica, contendo idêntica composição qualitativa e quantitativa de princípio(s) ativo(s), e que tenham comparável biodisponibilidade, quando estudados sob um mesmo desenho experimental; LEI Nº 9.787, DE 10 DE FEVEREIRO DE 1999.

14 Biodisponibilidade - indica a velocidade e a extensão de absorção de um princípio ativo em uma forma de

dosagem, a partir de sua curva concentração/tempo na circulação sistêmica ou sua excreção na urina. LEI Nº 9.787, DE 10 DE FEVEREIRO DE 1999.

15 Biodisponibilidade relativa - quociente da quantidade e velocidade de princípio ativo que chega à circulação

sistêmica a partir da administração extravascular de um preparado e a quantidade e velocidade de princípio ativo que chega à circulação sistêmica a partir da administração extravascular de um produto de referência que contenha o mesmo princípio ativo. Resolução da Diretoria Colegiada da ANVISA no 17, de 02 de março de 2007.

16 Equivalência farmacêutica - indica que os medicamentos similares que contêm o mesmo fármaco que o

medicamento de referência, isto é, mesmo sal ou éster da mesma molécula terapeuticamente ativa, na mesma quantidade e forma farmacêutica, podendo ou não conter excipientes idênticos. Resolução da Diretoria Colegiada da ANVISA no 17, de 02 de março de 2007

A busca de inovação na área de medicamentos tem sido marcante na evolução da indústria farmacêutica ao longo do século XX e se fundamenta no paradigma do desenvolvimento científico pela síntese química e pela farmacologia. Grandes multinacionais cresceram a partir de estratégias empresariais, arranjos institucionais em seus países de origem, fundados nos seguintes aspectos empresariais e institucionais (LIMA, 2006):

1) Estratégias Empresariais: elevados gastos em P&D de novas moléculas, obtendo contínuo sucesso inovativo em várias classes terapêuticas; elevados gastos com

marketing e fixação de marcas e; produção próxima aos grandes centros consumidores.

2) Arranjos institucionais: proteção para as inovações através de legislação patentária; margens de lucro elevadas, socialmente “justificadas” pelos benefícios das inovações à saúde da população; e baixa pressão regulatória.

Com a mundialização do capital, as novas condições nos mercados mundiais a partir dos anos 90 exigiram a reformulação das estratégias empresariais e dos contextos regulatórios. Os gastos com P&D necessários para obter um novo medicamento cresceram de uma média de US$ 2 milhões entre 1956 e 1962, para US$ 20 milhões, entre 1966 e 1972, e para US$ 100 milhões no ano de 1985. Este crescimento acelerado dos custos exigiu modificações nas estratégias empresariais das líderes mundiais, a principal delas sendo a busca de maior poder de mercado pela aquisição ou fusão com rivais (LIMA, 2006).

Com a crise de superprodução da década de 1970 não se mantém o ritmo de acumulação de lucros por taxas elevadas, decorrente do intenso dinamismo inovativo e da valorização financeira que impulsiona a acumulação de capital. Em face ao elevado ritmo de acumulação de capital (período que antecede a crise), a expectativa de crescimento acelerado do mercado permanece; entretanto o ritmo de crescimento desejado pelas grandes empresas supera o ritmo de crescimento do mercado real (LIMA, 2006).

Este parece ser o caso da indústria farmacêutica mundial, uma vez que o dinamismo inovativo das décadas de ‘50 a ‘70 propiciou lucros elevados, acumulados até os anos ‘80, mas não encontraram um mercado crescendo no ritmo esperado para absorver as novas capacidades produtivas nos anos ’90, como se especulou diante do advento da chamada “nova economia”. Ao longo dos anos ’80 e ’90, processos de aquisição e fusão de grandes laboratórios ocorreram em paralelo ao fechamento de várias pequenas e médias empresas que fracassaram na tentativa de enfrentar as líderes estabelecendo uma estratégia competitiva inovativa. Os anos ’90 também foram caracterizados por uma redução da diversificação, com uma tendência na direção da especialização em algumas classes terapêuticas e integração da cadeia produtiva, com verticalização e formação de monopólios bilaterais (LIMA, 2006, p.10).

O processo de mudanças na indústria vem intensificando a concentração de capital e criando barreiras diversas para empresas menores de países periféricos. Essa concentração

influência o marco regulatório, que passa a alterar o padrão de exigências, nem sempre factível para empresas com menos capacitação técnico financeira. Além das estratégias empresariais, destacam-se nesse período os seguintes arranjos institucionais (LIMA, 2006). 1) Organizações de defesa dos direitos do consumidor tornam-se crescentemente

questionadoras dos elevados preços praticados e de sua justificativa pelos propagandeados benefícios das inovações;

2) Formação de grandes empresas atacadistas com elevado poder de barganha na aquisição de medicamentos para revenda a governos, hospitais, redes de farmácias e outros agentes do setor de saúde;

3) Caducidade das patentes viabiliza a entrada de um crescente número de produtores de genéricos;

4) Órgãos públicos passam a regular as atividades de P&D, com sofisticadas exigências sanitárias (usadas inclusive como forma de proteger mercados internos);

5) Organismos internacionais como a Organização Mundial do Comércio, passam a ser fóruns de pressão de países menos desenvolvidos.

Segundo Triebnigg (2008), atual presidente da Novartis, desde a década de 1990, está em curso uma forte transformação da indústria farmacêutica internacional. Observa-se o processo de descentralização para outros países das atividades comerciais, industriais e de P&D. Além disso, aponta a tendência de concentrar determinadas atividades em alguns

países-chave, que se especializam em produtos ou em etapas da cadeia farmacêutica. Ainda

segundo o mesmo autor, a busca de maior competitividade via investimentos na qualidade, eficiência e especialização também colabora para a internacionalização da indústria farmacêutica que procura mercados regulados.

O processo de mundialização se intensifica nos anos 2000 e tem como uma de suas principais consequências, a contínua hipertrofia do setor financeiro. Este setor seria formado por um conjunto de transações e instituições especializadas, num circuito de autovalorização sem contrapartida ao nível da produção, originando o "capital fictício". No entanto, os capitais que os operadores financeiros põem para valorizar são originários do setor produtivo. A financeirização conformaria um novo ambiente competitivo que traz impactos significativos para as empresas. De acordo com Chesnais, com mundialização foi a notável concentração de capital sob a hegemonia dos países centrais. Além disso, o capital assume formas distintas da grande empresa multinacional integrada verticalmente e departamentalizada, dominante desde o final do século XIX. As grandes empresas produtivas, inclusive as farmacêuticas, além de

contarem com uma forte área financeira se concentram nos aspectos mais estratégicos da produção, dentre eles a inovação tecnológica, e atuam de modo crescentemente descentralizado (e terceirização) na montagem de produtos e nas vendas (ANDREAZZI, KORNIS, 2008).