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1.2.1.1.1.1 A RELAÇÃO ENTRE O MODERNISMO E O SALAZARISMO

Antes de examinarmos a relação entre o modernismo em Portugal e o regime, consideramos adequado elaborar um breve recorte acerca do contexto histórico, dos aspectos formais e temáticos que deram início ao modernismo artístico.

Como ponto de partida, sublinhamos que o estudo sobre o modernismo é um terreno de intensa controvérsia decorrente da ausência de consenso a propósito de seu significado, origem, período, validade e dos fatos que o circunscrevem a um determinado período histórico. Além disso, deve-se levar em conta a diversidade dos contextos de origem dos que se debruçam sobre a análise do modernismo. Logo, podemos compreender as variações teóricas existentes que permeiam o conceito desse movimento artístico.

Essa pequena digressão pretende atuar como um recurso metodológico para delinear o enfoque dado ao modernismo nesta pesquisa, que se justifica por três razões subseqüentes: a primeira consiste em salientar uma posição conceitual a respeito da constituição do modernismo; a segunda incide na elucidação dos meandros do adiamento e das oscilações do advento do modernismo em Portugal para, por conseguinte, evidenciar os agentes da delicada relação entre o salazarismo e o modernismo; a terceira visa a fundamentar o contexto histórico e artístico em que Paula Rego nasceu e se desenvolveu e que perpassa o seu universo temático, iconográfico e, de certa maneira, formal.

A partir da década de 1840, em muitos países da Europa central e ocidental, eclodem sucessivas revoluções oriundas do repúdio aos governos autocráticos, que, em vão, tentavam contornar a delicada conjuntura econômica e social que assolava a Europa, instalando um clima de instabilidade e profunda agitação política. Os ataques às práticas e excessos do capitalismo estavam na base dos conflitos que atingiam, sobretudo, a classe média, os artesãos e os trabalhadores rurais. A possibilidade de representação política dos excluídos era uma reivindicação constante e a luta pela alteração dos quadros políticos era um desejo comum dos que permaneciam fora das diretrizes políticas dominantes.

Já nas últimas décadas do século XIX, a visão compartilhada por muitos de um mundo em conflito entrelaçado às profundas transformações decorrentes de uma modernidade ambivalente advém de ‚algum tipo de reflexão sobre elas: a reivindicação de uma posição – uma autoconsciência crítica – perante a modernidade‛ (Harrison, 2001: 27). Paralelamente, o modernismo artístico nasceu do gesto revolucionário de alguns criadores que tinham em mente subverter os padrões estilísticos e as temáticas da tradição por entenderem não ser mais adequado ilustrar, representar o pensamento e o modo de vida da modernidade por meio dos cânones da tradição. O que isso significa? Significa que havia um sério questionamento quanto à validade das instâncias de representação sociocultural. Se nos ativermos ao significado de representação enquanto modo de expressão social, ativo, presente, compreenderemos que não estamos a tratar da representação como um mero reflexo do real, mas, sobretudo como um modo de construção do real.

Podemos notar que o modernismo foi se configurando em meados do século XIX a partir de uma crise da construção da representação da realidade, ao questionar o modo anacrônico de representação ‚indevidamente formado | imagem do passado, assim como de uma conseqüente perda de identificação com a tendência dominante da cultura‛ (ibidem: 17). Estamos nos referindo a uma espécie de desajustamento entre as artes visuais e as imagens que permeavam a cultura da modernidade.

No âmbito dessas questões, surgem diversas dúvidas: qual o sentido de se continuar pintando as pessoas vestidas com togas da Antigüidade, por que tratar de temas alheios ao mundo do presente, do cotidiano, por que pintar paisagens épicas se as paisagens urbanas estavam à espera de serem vistas, por que se voltar para um passado concretizado e imutável se o presente é a promessa do amanhã, por que se preocupar em registrar os objetos fielmente como parecem na realidade se existe a fotografia para fazê- lo? Essas eram algumas das questões formais e temáticas que permeavam o modernismo.

Na verdade, o que parecia estar em causa era o declínio de uma visão da história enquanto paradigma para representar a cultura ocidental. E o ilusionismo, considerado como o instrumento ideal para construir a representação, gradualmente deixava de ser a forma mais adequada para isso, em virtude do desenvolvimento das técnicas utilizadas

para se criar a sensação de ilusão, que, entre outras coisas, ocultavam o processo de feitura da pintura.

Já no modernismo, inversamente, uma tela era uma tela, ou seja, uma superfície plana em que os meios técnicos da feitura da obra deveriam estar patentes; a verossimilhança criada a partir da ilusão deixava de ser valorizada, dando lugar a novos valores que consistiam justamente na visibilidade da materialidade da pintura para se obter uma autoconsciência crítica. As pinceladas visíveis, a sobreposição aparente entre as camadas de tintas, a opacidade dos pigmentos e a desrealização da perspectiva pretendiam criar um modo mais livre de representação a fim de desenvolver um espírito crítico quanto à modernidade pela via da arte.

Desse modo, surge também um novo papel para o público, que deixa de ser mero contemplador das obras para ocupar uma nova posição, uma presença imaginária na construção das obras a partir do processo visível da feitura, incitando o envolvimento do público com o que e como a obra se mostra e enfatizando ‚um sentimento ao mesmo tempo de proximidade e de autoconsciência da parte do espectador‛ (Harrison, 2001: 26).

Os valores ambivalentes da modernidade calcavam-se no modo de viver uma época até então jamais imaginada, a atitude radical consistia em voltar-se para o futuro, em deixar para trás as ruínas do passado, o tempo parecia querer correr mais depressa, e, logo, o cotidiano se transformava no espelho de um mundo repleto de novidades e aventuras. O caos das metrópoles era o retrato mais conciso da vida moderna com seus automóveis, as novas tecnologias e comércio. A promessa do consumo representava o fim das privações humanas, os desejos seriam satisfeitos e a cada novo dia surgiriam novos desejos por satisfazer.

Não obstante, o que se viu foram tempos de projetos não concluídos, de desejos não satisfeitos totalmente, de sentimentos desoladores de solidão, de mazelas humanas escancaradas nas pinturas de um Édouard Manet (1832-1883), de um Gustave Courbet (1819-1877), nas ácidas caricaturas de um Honoré Daumier (1808-1879) e nos escritos de um Charles-Pierre Baudelaire (1821-1867) e de um Émile Zola (1840-1902).

De certo, eles saudaram a modernidade, porém, não ingenuamente, pois aqueles foram tempos de sobressaltos que requeriam um senso crítico para se reconhecer as

ambigüidades de sua natureza transitória. Ao mesmo tempo em que a modernidade trazia consigo progresso e avanços tecnológicos, ela também implicava a marginalização social dos muitos que não tinham acesso aos seus benefícios.

Fig. 11 - Honoré Daumier. Le peintre: la mise Fig. 12 - Gustave Courbet. Os quebradores de pedra,

au tombeau ou L'Artiste, 1849. Óleo s/ tela, 1849. Óleo s/ tela, 159 x 259 cm.

113 x 87 cm.

Em 1845, Baudelaire escreveria um ensaio significativamente intitulado O pintor da vida moderna acerca do pintor francês Constantin Guys (1805-1892). Nele, o autor descreve o que considera a atitude ideal do artista moderno a partir da descrição de uma identidade moderna, que abrange a pintura, a moda e os usos e costumes de uma época. Nas palavras de Baudelaire repetidas em inúmeras citações:

[a] modernidade é o transitório, o efêmero, o contingente, é a metade da arte, sendo a outra metade o eterno e o imutável. (...) Se à vestimenta da época, que se impõe necessariamente, substituirmos uma outra, cometemos um contra-senso só desculpável no caso de uma mascarada ditada pela moda. Assim, as deusas, as ninfas e as sultanas do século XVIII são retratos moralmente verossímeis (Baudelaire, 2004: 26).

Contudo, um dado relevante emerge quando se tenta convencionar que as pinturas modernas necessariamente devam retratar temas modernos ou contemporâneos, pois essa é uma afirmação falaciosa quando tenta restringir o modernismo a esse fator. O que se torna significativo observar, porém, é a relação existente entre o tema e a técnica, ou o meio de representação de uma obra, visto ser a partir da interação entre ambos que se fundou uma nova orientação estética.

Um artista poderia perfeitamente pintar um tema histórico a partir de uma visão modernista, como por exemplo, o pertinente caso de Manet na ocasião em que pintou a Olympya(fig.14), numa clara alusão à Vênus de Urbino (fig. 13), pintada anteriormente por Ticiano (c.1490-1576).

Fig. 13 - Ticiano. Vênus de Urbino, 1538. Óleo s/ tela, 120 x 165cm.

Fig. 14 - Édouard Manet. Olympya, 1863. Óleo s/ tela, 130,5 x 190 cm.

Em sua versão, Manet diluiu a perspectiva do fundo, desvencilhando-a do ilusionismo. O pintor insere a figura de um gato negro no lugar da figura do cão de Ticiano e provavelmente o elemento mais notável do quadro seja a figura da prostituta retratada como um ser andrógino, configurando um verdadeiro escândalo para a época. A

pele da modelo foi pintada com uma paleta reduzida de cores mais lisas, enquanto a figura da criada negra a segurar um grande buquê de flores substitui as duas figuras femininas de Ticiano dispostas no último plano do quadro, onde se ocupavam em buscar roupas numa arca, contrapondo-se à nudez da Vênus.

Sem sombra de dúvidas, os dois quadros, ao se voltarem para a beleza feminina tematizada pela nudez, tornam-se extremamente sensuais. Entretanto, o que se observa na Olympya de Manet é a intenção de subverter a sensualidade mais pudica e requintada de Ticiano por uma sensualidade mais carnal, mais direta e mais atrevida.

Encerramos o nosso recorte histórico, sublinhando que as inovações formais e temáticas que caracterizaram o advento do modernismo não foram questões puramente estéticas. Simultaneamente a elas, ou melhor, num primeiro momento, o fermento do modernismo artístico se formou em decorrência dos modos de construção da representação de uma sociedade que vivia um novo período histórico: a modernidade. Associando-se a isso também havia o anseio de liberdade dos artistas em expressar suas incertezas ou esperanças, ilusões e desilusões, enfim, tentar expressar de forma consciente o momento que a humanidade atravessava.

O especialista e crítico de arte Alexandre Melo, em seu livro Artes plásticas em Portugal: dos anos 70 aos nossos dias, informa-nos a respeito da fragilidade de se escrever uma história local da arte sem se levar em conta o processo de influências culturais e artísticas entre as comunidades que permearam grande parte da história da arte Ocidental, sobretudo no século XX. As práticas artísticas que influenciam certas comunidades e as comunidades que são influenciadas por determinados eventos forjaram o que atualmente denominamos de trocas culturais – cross-culturais. Nas próprias palavras do autor:

[s]ó são possíveis histórias locais da arte de comunidades ou que estejam isoladas do exterior ou que tenham capacidade de influenciar esse mesmo exterior. No primeiro caso porque, inevitavelmente, todos os fatores determinantes das práticas artísticas são endógenos e mantêm entre si relações articulatórias e causais cabalmente elucidativas. No segundo caso, porque os resultados artísticos das determinações endógenas se transformam em fatores determinantes a nível global, devido ao poder de afirmação e irradiação externa inerente a situações de domínio em termos de relações internacionais (1998: 15).

Dando continuidade à sua exposição, Melo cita o caso da história da arte em Portugal, justificando que ‚só pode ter história própria quem não conhece a história dos outros ou tem poder suficiente para a influenciar‛ (ibidem: 15), pois é bastante conhecido o fluxo de artistas portugueses que se deslocaram para outras partes do mundo, sobretudo para Paris nas primeiras décadas do século XX, então tida como o centro produtor de novas tendências artísticas no Ocidente. Sendo assim, podemos concordar que de fato, muitos artistas absorveram diversas influências oriundas do exterior e, portanto, estavam ao corrente das tendências em voga. Ao mesmo tempo, Portugal não fundou novas correntes ou movimentos artísticos capazes de ‚marcar cadência cultural internacional‛ (ibidem: 15).

De qualquer modo, podemos observar que, no decorrer do século XX, Portugal obteve uma significativa produção de obras capazes e suficientes para erigir uma história da arte expressiva, permeada por um conjunto heterogêneo de influências internacionais que foi decodificando de forma particular, caso a caso, de acordo com as possibilidades históricas daquele período.

Assim como Salazar, outros ditadores europeus tais como Mussolini, Hitler e Franco também se utilizaram largamente da arte como apêndice fundamental na edificação e auto-institucionalização de suas ideologias políticas.

Basicamente, eles convergiram na estética megalomaníaca das representações colossais, na valorização do monumentalismo arquitetônico e na temática da exaltação do Estado. Contudo, divergiram no que se refere à aceitação da estética modernista, respectivamente, com ‚a recusa inflexível, no caso alemão, a utilização inicial, depois decrescente, no caso italiano, a integração muito prudente, no caso espanhol‛ (Portela, 1987: 49). No caso português, num primeiro momento, a recusa da estética modernista foi peremptória, mas, devido à longevidade da ditadura salazarista, o modernismo gradualmente acabou por se estabelecer.

Algumas observações tornam-se significativas para compreendermos o processo que marcou a construção e o desenvolvimento do modernismo em Portugal. A primeira consiste em observar que, nem toda a arte produzida no país durante o período histórico que abrange o modernismo pode ser considerada como arte moderna; a segunda justifica

a primeira, pois, foi um período marcado por diversas intervenções do regime, leia-se do SPN/SNI, que propunham as diretivas de uma arte moderna portuguesa que ‚se serve de alguns apports do modernismo, mas que se quer legível, didática, cenográfica, empolgante (...) e começa a encontrar, de uma forma avulsa, emblemática, um portuguesismo‛ (Portela, 1987: 56).

Retrocedendo ao ano de 1915, após algumas oscilações estéticas ‚oitocentistas ainda, ou com desculpas de humorismo capaz de mostrar algumas inovações formais‛ (França, 2004: 09-18), dá-se início a um período de desenvolvimento do modernismo no país por ocasião da publicação da revista Orpheu dirigida por Fernando Pessoa (1888- 1930) e Mário de Sá-Carneiro (1890-1916).

A relevância da publicação de Orpheu reside na mudança radical de orientação estética assumida por ambos, com claras referências futuristas. Para a segunda edição da revista em junho de 1915, Pessoa e Sá-Carneiro contaram com a participação de Santa Rita Pintor (1889-1918) e Almada Negreiros (1893-1970), que incluíram poemas e reproduções de composições visuais.

Basicamente, Orpheu representava uma provocação à sociedade culta portuguesa da qual se esperava que reagisse positivamente às inovações propostas pelo modernismo. Pretendia-se também elevar o país à condição de moderno, igualando-o aos demais modernos europeus. O escândalo e o sucesso de Orpheu marcaram um grande esforço de inovação do campo da arte e da literatura, pois o público não ficou indiferente.

Fig. 15 - Frontispício do n°1 Fig. 16 - Frontispício do n°2

de Orpheu, (Jan., Fev., Mar.) 1915. de Orpheu, (Abr., Mai., Jun.) 1915.

Contudo, na década de 1920, os modernistas ainda ocupavam uma posição periférica no cenário artístico. Os órgãos oficiais de difusão artística mantinham vínculos e organizavam exposições de artistas que não se alinhavam esteticamente com os modernistas (Henriques da Silva, in: Pereira, 1999: 377), originando protestos e críticas dos ‚novos‛ artistas em função da ausência de representação de nomes ‚verdadeiramente modernistas‛, como Almada Negreiros, Amadeo de Sousa Cardoso (1887-1918), Santa Rita Pintor e outros.

Desse modo, os modernistas periféricos buscaram outros meios que não os oficiais para divulgar suas obras – exposições em circuitos alternativos, revistas e magazines foram os meios mais viáveis naquela altura –, por conseguinte, o alto nível da qualidade dessas publicações deu origem a um movimento editorial inédito em Portugal consoante com os anseios de uma burguesia urbana desejosa ‚por romper as fronteiras provincianas do País, através das imagens que inventavam um cosmopolitismo elegante e superficial,‛ (ibidem: 378) permeados por referências européias e norte-americanas, respectivamente com seus avatares de modernidade.

Após a década de 1930 e durante todo o período que Salazar esteve na direção do país, as instruções oficiais do regime respeitantes às artes e à cultura foram organizadas sob o véu da aparência de uma modernidade concebida pelo regime.

As diretrizes de uma nação que ‚aparentemente‛ pretendia ser moderna culturalmente foram em parte ideadas por António Ferro com vista a difundir os critérios de modernidade desenhados pelo regime. Acusações por parte do meio crítico e artístico pesaram sobre os ombros de Ferro em virtude da manipulação do SPN/SNI em estabelecer critérios artificiais de práticas artísticas modernistas, de organizar exposições e de fomentar uma política cultural e artística conservadora, retrógrada, elitista e prescritiva.

Mesmo Salazar tendo sido um convicto antimodernista, principalmente no tocante a sua dimensão social calcada no modus vivendi cosmopolita e internacional no qual o mundo é concebido em permanente estado de mudança, o fato é que Portugal desenvolveu um modernismo local mesmo sob as duras intervenções censoras do regime.

O século XX, dentre outros fatores, destaca-se por ter sido atravessado por um intenso fluxo cultural, a par e em compasso com a tendência da globalização econômica, seguindo a lógica do modelo. A globalização cultural não suprime as diferenças, paradoxalmente, é um processo de mão dupla, ou seja, ‚de reprodução, reestruturação e sobredeterminação dessas mesmas diferenças‛ (Melo, 1998: 138). E ainda, concomitantemente, faz emergir a ‚revelação/anulação de diferenças, diferenciação/ homogeneização e democratização/ hegemonização cultural‛ (ibidem: 138).

Para concluirmos esse tópico, assinalamos que, mesmo com as dificuldades e os interditos que perpassaram o desenvolvimento do modernismo em Portugal, talvez o acontecimento mais contundente que marca esse percurso se traduza no panorama nacional e internacional da arte, no qual brilhantes artistas souberam construir, durante esse período de pouca liberdade e escassas oportunidades, obras de grande importância que influenciaram e seguem influenciando diversos artistas em diferentes gerações.

1.3. A FORMAÇÃO ARTÍSTICA DE PAULA REGO NA SLADE SCHOOL