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ATOS DÚBIOS E GESTOS IMPUROS

No documento O poder do universo artístico de Paula Rego (páginas 189-193)

Fig 108 Paula Rego Na Praia, 1985 Acrílico s/ Fig 109 Paula Rego Meninas com óculos escuros

2.6. LAÇOS DE FAMÍLIA – REFORMULAÇÕES VISUAIS NAS PINTURAS DA SÉRIE MENINA E O CÃO DE PAULA REGO

2.6.2. ATOS DÚBIOS E GESTOS IMPUROS

Estas pinturas dão continuidade ao tema das meninas com o cão. Vale ressaltar que as meninas são as protagonistas da série, enquanto que o cão funciona como um adereço ou um animal de estimação, mas também pode assumir diversos papéis, inclusive o de amante.

O espaço cênico foi cuidadosamente elaborado a partir de poucos, mas significativos objetos em cena. A solidez visual das figuras, a notável variação de escala entre as formas, como, por exemplo, as meninas sendo representadas muito maiores que os adereços, a evidência dos efeitos de luz e sombra, os jogos de perspectiva e o clima de tensão emocional nos reportam à atmosfera da pintura metafísica, especialmente às obras de Giorgio de Chirico (1888-1978).

As pinturas a partir de então, depois de estarem concluídas, passaram a ser coladas sobre uma superfície lisa e plana, o que lhes garantiu um melhor acabamento.

Fig. 118 - Paula Rego. Abracadabra, 1986.

Acrílico s/papel s/tela, 157 x 150 cm.

A figura feminina colocada no campo direito não parece estar convencida dos truques de mágica que a outra menina (no campo esquerdo) está a empregar. Contudo, a palavra mágica também é utilizada para fazer alguma coisa se transformar em outra. Na pintura Abracadabra (fig. 118), podemos observar como o jogo cênico de luz e sombra atua na obra, contribuindo para criar uma atmosfera de mistério à cena. Na obra, duas meninas estão a brincar com o cão. O título da obra é bastante sugestivo, pois abracadabra é uma palavra mágica utilizada nos jogos infantis com a finalidade de fazer mágicas. Mais especificamente, para fazer algum objeto aparecer ou desaparecer. Claro que o objeto da brincadeira é o cão.

Talvez seja essa a questão que as duas meninas estão a tramar. Se observarmos com atenção a postura do cão, logo nos daremos conta que essa não é uma pose natural para um cão se sentar. Isso nos incita a uma pergunta: será que o cão vai ser transformado em amante ou será que o amante já foi transformado em cão?

Fig. 119- Paula Rego. Armadilha, 1987. Fig. 120 - Paula Rego. Duas Meninas e um Cão,

Acrílico s/papel s/tela, 150 x 150 cm. 1987. Acrílico s/papel s/tela, 150 x 150 cm.

Fig. 121 - Paula Rego. A Presa, 1986. Fig. 122 - Paula Rego. Dormindo, 1986. Acrílico Acrílico s/papel s/tela, 150 x 150 cm. s/papel s/tela, 150 x 150 cm.

Na obra Armadilha (fig. 119), podemos observar a figura da menina, no campo esquerdo da tela, a tentar dominar o cão. Entretanto, essa não é uma cena de dominação agressiva, pelo contrário, ela quer dominá-lo utilizando-se da sedução. O gesto dos seus lábios, indicando-nos que está a tentar beijocar o cão, nos confirma a idéia de que pretende seduzi-lo.

Se nos reportarmos aos estereótipos imagéticos ocidentais que representam a sedução feminina, logo emerge à superfície, a idéia de mulher-objeto. Em outras palavras, o estereótipo da mulher sedutora desde sempre esteve intimamente ligado ao corpo idealizado, exposto de forma incisiva e, é claro, com todos os avatares do sexo. Já no caso dessa obra, Paula Rego subverte esse paradigma, ao representar a sedução feminina com características totalmente diversas. Em primeiro lugar, a artista rompe o conceito da mulher-objeto e, por conseguinte, da promessa futura que acompanha esse objeto: a satisfação do desejo sexual masculino. Isso ocorre porque a artista inverte literalmente as regras que sustentam esse modelo. Assim, a figura feminina na obra, entre outras coisas, é representada com uma volumosa saia de cor marrom que mais se assemelha a um bombom, tanto na cor como na forma. Em segundo lugar, a transmutação de objeto sexual para uma outra categoria de objeto está intimamente relacionada com a idéia de desejo, pois seria como perguntar a uma criança (cão) se ela seria capaz de resistir a um delicioso chocolate.

Além disso, uma vez seduzido, uma vez apanhado. Nossas suspeitas parecem se confirmar ao observarmos a pintura Duas Meninas e um Cão (fig. 120). Nela, duas meninas estão a vestir/desvestir um cão com roupas de humanos. Essa parece ser a conseqüência mais comum nesses casos. O sedutor toma posse de seu objeto de conquista e, assim, vislumbra fazer uso do seu ‚bem‛ ao seu bel prazer. Nesse caso, as meninas estão a travestir o cão porque não aceitam a sua identidade de cão. A tentativa da descaracterização da identidade do outro não seria uma prática bastante comum nas relações possessivas?

Admitindo que o cão se tornasse um joguete nas mãos das meninas, ele não esboça qualquer espécie de reação, parece aceitar passivamente essa situação. Se bem que um gesto indicando surpresa se encontra levemente esboçado na forma como está a olhar a

cena. Contudo, no fundo da tela podemos notar que existe uma outra figura de um cão e uma outra figura de menina. A configuração visual das duas figuras é bastante diversa da cena do primeiro plano. A figura do cão ao fundo é aterradora, os seus olhos rebatem a cor do céu. Podemos notar que ele não é um cão domesticado e dócil, ao contrário, a sua figura mais se assemelha a uma fantasmagoria. A figura da menina à sua frente também é muito diversa das outras figuras do quadro. Os dois parecem travar um embate visual. Eles terminam sendo as duas únicas testemunhas da cena que está a se desenrolar com o cão e as duas meninas.

A ambigüidade dos três objetos dispostos no chão – flor, martelo, vaso de barro estabelecem o ponto chave do quadro. A partir da relação simbólica desses três elementos – a flor sobejamente conhecida como o símbolo do amor, o martelo (proveniente das Vivian Girls a Partir a Louça da China) como uma ferramenta para se bater num objeto e a fragilidade do vaso de barro – Paula Rego representa a ambigüidade dos relacionamentos afetivos. Ou seja, o limiar da fronteira que separa a amabilidade da agressão, pois o martelo pode ser usado a qualquer momento para partir o vaso de barro, representando a fragilidade dessa demarcação.

Fig. 123 - Paula Rego. A Pequena Assassina, Fig. 124 - Paula Rego. Olhando para trás, 1987. 1987. Acrílico s/papel s/tela, 150 x 150 cm. Acrílico s/papel s/tela, 150 x 150 cm.

Selecionamos essas duas pinturas para finalizar nosso argumento por nos parecer que elas podem dialogar de forma interessante.

Na pintura A Pequena Assassina (fig. 123), uma cena de intenso suspense permeia toda a obra. A figura de uma menina com um olhar bastante firme olha para alguma coisa que nós não sabemos ao certo o que seja. Porém, ela trás um laço muito esticado entre as mãos, esse gesto foi representado de maneira objetiva pela artista para indicar as intenções da menina. Ela pretende matar alguém. Como sabemos, a violência é um tema central nas obras da artista, porém, em nenhum momento a violência é explicitada de forma simplista, ou seja, de forma pífia. Por isso, pressupomos que a violência a ser perpetrada pela menina será impingida ao cão. Sendo assim, parece desnecessária a sua presença na cena, cabendo a nós mesmos imaginarmos o desfecho da narrativa.

O diálogo entre A Pequena Assassina e Olhando para trás (fig. 124) pode servir para concluir a história. Em Olhando para trás, três figuras de meninas compõem a cena. A figura à esquerda possui uma expressão suspeita no sentido ambíguo do termo, a sua expressão corporal torna-se auto-erótica, sobretudo porque um cão de brinquedo está escondido debaixo da cama onde estão as meninas. Essas duas obras se relacionam diretamente em virtude do título – Olhando para trás, possivelmente indicando que o cão (homem e amante) não pode mais satisfazer os desejos das meninas, uma vez que certamente ele já está morto. Por isso a cena de auto-erotismo está a se desenrolar. Contudo, o outro cão (brinquedo) pode continuar a satisfazer o desejo de diversão das meninas e ser o que sempre terá sido para elas: um joguete.

No documento O poder do universo artístico de Paula Rego (páginas 189-193)