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O MURO DOS PROLES – A PINTURA GRAFFITI DE PAULA REGO

No documento O poder do universo artístico de Paula Rego (páginas 165-170)

OF FINE ARTS EM LONDRES

Fig 86 Paula Rego Faust, 1983 Acrílico s/ Fig 87 Paula Rego The Girl of the Golden

2.4.2. O MURO DOS PROLES – A PINTURA GRAFFITI DE PAULA REGO

Todo um conjunto de estratégias visuais e narrativas desenvolvidas nas pinturas da série Óperas atinge a sua apoteose na obra O Muro dos Proles, 1984.

O Camden Arts Centre, em Londres, encomendou uma obra à artista para fazer parte da exposição intitulada 1984 – an exhibition. O ano da exposição comemorativa coincidia com o título do livro mais popular de ficção política do século XX, 1984 de George Orwell (1903-1950).

O livro foi publicado pela primeira vez em 1949 e, desde então, não deixou mais de ser editado, devido à sua atualidade temática. Nele, o autor aponta para toda a ordem de atrocidades e crimes de que os regimes totalitaristas se servem para se manter no poder.

De forma satírica, Orwell cria um fictício país, chamado Oceânia, no qual o dirigente maior é o Grande Irmão, que tudo vê e tudo ouve através de inúmeros telecrãs e microfones espalhados por toda a parte, a fim de vigiar e controlar a todos, como ilustra um dos principais slogans do Partido: ‚O Grande Irmão est{ a ver-te‛ (2004: 08).

O personagem principal do livro é Winston Smith, um rebelde que trabalha no Partido Interno e que mantém uma relação afetiva em segredo com Júlia, uma moça mais jovem e liberada sexualmente que paradoxalmente trabalha na Liga Anti-sexo do Partido. Os dois decidem aderir aos dissidentes da suposta organização chamada Fraternidade. Entretanto, são apanhados traiçoeiramente por O’Brien, que julgavam ser um membro da organização. Os dois são presos e brutalmente espancados e torturados tanto física como emocionalmente.

O golpe final deflagrado pelos torturadores a Winston incide no seu pavor inconsciente de ratos. Desse modo, prendem o seu rosto numa gaiola de metal para que os ratos famintos o comam. Aterrorizado, ele implora que transfiram o castigo para Júlia, também presa e que aquela altura, seguramente, já o havia traído também.

Finalmente, após alguns meses, Winston é finalmente libertado. Contudo, é o Grande Irmão que vence a batalha, pois ele sai da prisão ‚curado‛ dos seus insistentes devaneios em desmascarar as fraudes, falsificações e toda a ordem de injustiças

perpetradas pelo Partido. No fim, Winston chega a adorar o Grande Irmão, mas não sem pensar, antes de ser preso, que ‚*s+e alguma esperança havia, tinha que residir nos proles‛ (Orwell, 2004: 75,76).

Tendo como ponto de partida a ficção de Orwell, Paula Rego dá vida à sua própria versão da história. Para tanto, a artista criou um extraordinário mural repleto de peripécias que dialoga com o mundo reimaginado dos proles intitulado O Muro dos Proles.

Fig. 90 - Paula Rego. O Muro dos Proles, 1984. Acrílico s/papel, 244 x 1220 cm.

O mural (fig. 90) foi composto por dez painéis pintados com tinta acrílica sobre papel, totalizando as dimensões de 244 cm de altura por 1220 cm de largura.

A grande dimensão da obra possibilitou a artista criar diversos enredos simultâneos, formando narrativas visuais relativamente ordenadas e dispostas em seqüência como se faz habitualmente nas histórias em quadrinhos. A imagética das figuras nos remete aos personagens de Walt Disney e às ilustrações dos contos infantis.

A composição amontoada de figuras humanas e de animais pode estabelecer um diálogo visual com a obra de Hieronymus Bosch (c.1450-1516), O Jardim das Delícias: Inferno, de 1503-04 (fig. 91). Contudo, o universo moral da artista é muito diverso do universo moral cristão de Bosch, pois, como observa Pinto de Almeida, para Paula Rego, ‚o seu paraíso terrestre não é um mundo de absolutos morais mas sim de pequenos pecados muito humanos‛ (1988: s/p), entre os quais, avingança, a conspiração, a traição, o ciúme e o segredo são pequenas faltas que se pratica desde muito pequeno, primeiramente na esfera doméstica.

Fig. 91 - Hieronymus Bosch. Lateral esquerdo do tríptico O Jardim das Delícias Terrenas: Paraíso, e lateral direito: Inferno, c. 1504. Óleo s/madeira, 2,20 x 97 cm cada um.

Fig. 92 - Paula Rego. Pormenor de O Muro dos Fig. 93 - Paula Rego. Pormenor de O Muro dos

Proles, 1984. Proles, 1984.

Contudo, precisamente nessa década, as manifestações estéticas do graffiti passaram a assumir definitivamente a categoria de obras de arte, reconhecendo-se nessas

Além disso, o tratamento visual destinado ao desenho das figuras também nos remete à iconografia urbana dos graffitis. Diante disso, podemos pensar na arte do graffiti como uma manifestação artística genuinamente urbana e praticada por artistas que ainda ocupavam uma posição periférica no circuito galeria- museu-mercado. Portanto, por analogia, a idéia de graffiti nos reporta à arte dos proles, ou seja, arte feita por artistas fora do circuito oficial da arte.

obras seu significativo valor cultural, artístico e social, e artistas como Jean-Michel Basquiat (1960-1988) puderam felizmente ter suas obras reconhecidas.

No detalhe de O Muro dos Proles (fig. 92), no campo direito inferior, podemos observar a figura de um urso em pose de súplica preso por algemas. Ele é o personagem central de 1984, Winston Smith, no momento em que é preso e torturado. Logo acima dessa cena, também podemos observar uma figura feminina dançando com um microfone, aludindo aos microfones sempre ligados para captar alguma conversa subversiva. Contudo, como podemos observar, o microfone encontra-se desligado, pois a tomada não está conectada e, assim, a onipresença do Grande Irmão torna-se ineficaz.

Em outro detalhe de O Muro dos Proles (fig. 93), no campo inferior direito, vemos uma figura feminina, com um vestindo muito bonito, com uma liga na perna à mostra e a imagem da boca toda borrada de batom. Isso nos remete à personagem Júlia, quando, em certa altura da ficção, exibe a sua vaidade a Winston, vaidade essa que precisava ser mantida em segredo, pois o Partido não permitia às mulheres nenhum tipo de maquiagem ou qualquer sinal de beleza que pudesse despertar os instintos sexuais.

Fig. 94 - Paula Rego. Pormenor de O Muro dos Fig. 95 - Paula Rego. Pormenor de O Muro dos

Proles, 1984. Proles, 1984.

Basicamente, a paleta de cores que compõem o mural encontra-se reduzida às cores preta, vermelha, azul e branca. O suporte, que é o papel de cor bege, fica à mostra em determinados espaços do quadro, funcionando como um fundo sem profundidade.

Trabalhando com o mesmo método da série das Óperas, a artista desenhou espontaneamente na tela as figuras em diversas proporções, diferentes acontecimentos que povoam as eloqüentes narrativas visuais. Aqui também fica patente a simultaneidade de narrativas que se podem formar, a partir do entrecruzamento de diversos campos visuais do mural.

Fig. 96 - Paula Rego. Pormenor de O muro dos

Proles, 1984.

junto de instintos humanos. Acontece que esses instintos não se encontram isolados na nossa idiossincrasia, eles se sobrepõem mutuamente. Portanto, subjacente à idéia do desejo sexual, podemos notar a presença de um outro desejo interagindo com o desejo sexual: o desejo de dominar.

E é precisamente nesse contexto que essa obra de Paula Rego nos convida a refletir a respeito da ambigüidade do desejo sexual, que ao mesmo tempo em que proporciona prazer, também traz dentro de si o desejo da dominação. Sexo e poder sempre estiveram de mãos dadas e essa união pode ser vista como uma forma de controlar o prazer do outro. Afinal, não seria essa uma forma de refletir sobre a obra de Orwell e sobre as ideologias políticas que almejam a liberdade, mas que sempre são tentadas a se transformar em totalitarismos?

O elenco de figuras, tanto de animais como de meninas, que povoam o espaço pictórico do mural, quanto das

diversas encenações que estão a

representar, confere à obra uma

atmosfera de forte sexualidade. Se concordarmos com a idéia de que o desejo sexual é algo inerente à natureza humana, logo poderemos aceitar que tal condição confere certo tipo de poder. Ou seja, o desejo sexual faz parte de um con-

2.5.

ELOQÜÊNCIAS VISUAIS DAS VIVIAN GIRLS, AS HEROÍNAS

No documento O poder do universo artístico de Paula Rego (páginas 165-170)