• Nenhum resultado encontrado

A TEMÁTICA DA DOMINAÇÃO E DO TEMPO PASSADO

No documento O poder do universo artístico de Paula Rego (páginas 106-111)

OF FINE ARTS EM LONDRES

Fig 41 Paula Rego Rainha, 1961 Colagem, Fig 42 Paula Rego Troféu, 1960 Óleo s/papel,

1.6. A TEMÁTICA DA DOMINAÇÃO E DO TEMPO PASSADO

Além da obra já citada Os Mártires, outros trabalhos se relacionam com o período em questão da vida de Paula Rego. A insistência em temas como a dominação e o tempo passado está direcionada à esfera da dominação familiar e da dominação decorrente das relações sociais.

O tema da dominação se desdobra em variantes de extrema perspicácia: se a artista está a tratar das relações de dominação, ainda que se identifique com as histórias e os dilemas que envolvem os personagens, simultaneamente traz à luz a idiossincrasia deles e dos conflitos que se originam a partir do ponto de vista em que se analisa a trama social na qual estão enredados – os dominados e os dominantes, pois tanto uns quanto os outros podem ser bons ou maus, ‚amados ou odiados, um paradoxo que provoca um conflito na artista‛ (Willing in: Rosengarten, 2004b: 18).

Uma singularidade que perpassa toda a trajetória das narrativas visuais de Paula Rego se inscreve no âmbito do juízo, ou seja, a artista não pretende, por meio de suas obras, persuadir o público quanto à correção de uma forma específica de interpretar os dramas humanos que disseca. Pelo contrário, o que se encontra em questão é a possibilidade de seu público questionar suas próprias interpretações a respeito da condição humana, uma vez que esses dramas nos atingem de forma explícita ou implícita. Por implicação, também se sugere que o público questione as interpretações realizadas por outras pessoas.

Ainda nesse âmbito, encontra-se o tema do tempo passado, que não é de modo algum uma forma de exaltação nostálgica do passado. Na verdade, o tema consiste em trazer à discussão o modo como as pessoas lidam com as vicissitudes da vida presente, munidas de dispositivos emocionais oriundos do passado. A representação visual do tema se dá através da justaposição de histórias e contextos diversos, reforçando a idéia do tempo passado relacionado com o presente pelo viés da freqüência com que o mecanismo se repete.

Como corolário, os personagens das histórias da artista se deparam com as conseqüências do uso dessas pr{ticas que podem se alternar entre ‚a derrota ou a desilusão, ou a defesa obstinada de uma posição indefensável. [Isso p]ode, em alternativa, ser uma forma de descobrir a impotência dos monstros de ontem‛ (Willing in: Rosengarten, 2004b: 18).

1.6.1. O TEMA DA DOMINAÇÃO SEGUNDO PIERRE

BOURDIEU

O estudo do tema da relação entre os sexos compreende uma grande diversidade de abordagens e metodologias oriundas das várias áreas do saber que se debruçam sobre o assunto. Para o desenvolvimento desse tema nesta pesquisa, nós nos alinhamos à teoria desenvolvida pelo sociólogo Pierre Bourdieu por duas razões: a primeira consiste em abordar os aspectos que circunscrevem o tema da dominação masculina no âmbito sociológico e histórico e a segunda reside na elucidação da permanência e perpetuação de práticas sócio-históricas edificadas segundo a lógica de uma sociedade androcêntrica, que mantém o status-quo dominante, sob a égide dos ‚mecanismos históricos que são responsáveis pela des-historicização e pela eternização das estruturas de divisão sexual e dos princípios de divisão correspondentes‛ (Bourdieu, 2005: 05).

Em seu livro La domination masculine, 1988, Bourdieu reúne seus amplos estudos dedicados ao tema da dominação masculina. Nele, o autor disseca o processo sócio- histórico que legitima e difunde a prática da dominação no âmbito institucional da família, da Igreja, do Estado e da escola, instituições que se encontram estruturalmente interligadas.

A rigor, o autor analisa as instituições e os atores de reprodução, bem como os lugares de elaboração e de difusão dos elementos que sedimentam as práticas e as estratégias de uma sociedade erguida sob uma visão androcêntrica, segundo a qual ela se reconstrói historicamente dissimulada sob o véu do ‚naturalmente‛ disposto pela natureza, servindo, assim, do campo biológico, que, aparentemente, fundamentaria as

divisões sexuais estabelecidas. O autor desmistifica também a idéia da existência inata de uma essência feminina.

A relevância da teoria desenvolvida por Bourdieu reside basicamente no modo como o autor desmonta os mecanismos históricos que promovem a ‚des-historicização‛ e a conservação das estruturas de oposição sexual que têm por objetivo naturalizar um processo que, na verdade, é construído e mantido sócio-historicamente, ou seja, um mecanismo de ação que se propõe a transmutar a história em natureza e o contingente cultural num processo natural.

O autor também nos ensina que o princípio da perpetuação da relação de dominação masculina não se inscreve somente na unidade doméstica – embora este seja o espaço mais visível para o exercício de tal prática –, mas ele se inscreve também em conformidade com ‚inst}ncias como a Escola ou o Estado, lugares de elaboração e imposição de princípios de dominação que se exercem dentro do universo mais privado‛ (2005: 11). Desse modo, podemos notar como o exercício da dominação se serve da fonte e do suporte do aparelhamento do Estado e de suas instâncias jurídicas.

O espaço doméstico e privado foi historicamente destinado às mulheres. Entretanto, duas considerações a esse respeito já merecem de saída a nossa atenção: o adjetivo doméstico é derivado do verbo domesticar, que significa amansar, domar, dominar, etc.; portanto, por analogia, observa-se o duplo sentido em denominar o espaço social destinado às mulheres a partir do verbo domesticar – às mulheres dominadas/amansadas/domesticadas reserva-se o espaço social da casa, que, em contrapartida, também está dominado/amansado/domesticado e é, por isso, restrito e privado ao convívio familiar. Contudo, historicamente o espaço doméstico foi gerido e mantido pelo patriarca, que se ocupava da manutenção financeira, meio que lhe imputava o poder para determinar as regras de funcionamento da família e da casa.

A outra consideração se destina a observar a oposição existente entre o universo público, masculino, e o universo privado, feminino. Aos homens destinavam-se os cômodos de leitura, lazer e descanso – bibliotecas, salas de visitas e estar, dormitórios e varandas, já em relação às mulheres, os espaços domésticos que lhe foram sendo atribuídos historicamente encontram-se vinculados à cozinha, à lavanderia, ao dormitório

dos filhos e ao próprio dormitório, ou seja, aos espaços de menos visibilidade e interação social.

Escritoras como Charlotte Brontë (1816-1854) e Virginia Woolf (1882-1941), dentre outras, escreveram a respeito do espaço doméstico destinado às mulheres. Sabemos que Brontë escreveu seus conhecidos livros numa pequena mesa num canto da sala da família, à noite, quando já havia cumprido suas tarefas diárias. O livro Jane Eyre, do qual trataremos de forma mais detalhada adiante, em virtude da série de obras que Paula Rego desenvolveu a partir da leitura desse romance, recebeu, em sua primeira edição de 1847, a assinatura de Currer Bell, um pseudônimo masculino. Somente depois, foi revelada a verdadeira identidade da autora, pois esse era um recurso que muitas mulheres escritoras dessa época utilizavam como a única forma de ter seus livros publicados. Woolf, por sua vez, escreveu um livro muito difundido intitulado Um quarto que seja seu, no qual descreve o drama que a mulher da época vitoriana enfrentava na tentativa de ocupar um espaço social distinto daquele que a sociedade lhe imputava.

As questões concernentes às relações sexuais estão inscritas historicamente na diferença ‚natural‛ dos corpos e na essência da sexualidade de cada gênero. Enquanto as mulheres são socialmente inculcadas a vincular a própria sexualidade a um espaço íntimo, carregado de afetividade, os homens, por sua vez, são encorajados desde muito jovens a desfrutar de sua sexualidade de forma livre e, ademais, vinculada à virilidade considerada como um esplendor físico. Já se torna evidente de per se a presença da dominação masculina na relação sexual:

(...) porque ela está construída através do princípio de divisão fundamental entre o masculino, ativo, e o feminino, passivo, e porque este princípio cria, organiza, expressa e dirige o desejo – o desejo masculino como desejo de posse, como dominação erotizada, ou mesmo, em última instância, como reconhecimento erotizado da dominação (Bourdieu, 2005: 31).

Desse modo, a sexualidade feminina foi gerida e mantida sob a tutela da aprovação e conformação aos ditames de uma sociedade androcêntrica, que sujeita as mulheres à passividade e a uma sexualidade invisível do ponto de vista social. Mesmo admitindo as diversas mudanças respeitantes à sexualidade feminina que vêm sendo

investigadas sistematicamente, sobretudo no âmbito da psicanálise, ainda assim, torna-se curioso notar que, durante o século XX, a sexualidade feminina foi analisada e concebida pela escola freudiana como uma sexualidade permeada por complexos de inferioridade, motivados por uma inveja inata das mulheres pelo falo, ou melhor, pela sensação de que possuem um falo atrofiado e, portanto, castrado, insistindo-se na idéia de uma suposta essência feminina que ratifica a constituição de uma sociedade falocêntrica e androcêntrica.

No âmbito das instituições ocidentais da escola e da Igreja, a dominação masculina é exercida e difundida segundo os mais diversos artifícios, a saber, a educação escolar voltada para o público feminino só foi possível muito tempo depois de ser uma prática comum para os homens. O acesso à educação foi uma conquista para as mulheres mesmo que a princípio tal decisão tenha sido motivada por fatores econômicos e políticos. O fato é que o conteúdo educacional/cultural destinado às mulheres era diametralmente oposto ao dos homens.

A esfera doméstica foi deslocada e agregada ao recinto escolar no qual eram ministradas até pouco tempo atrás aulas de bons modos, bordado, costura, culinária e mesmo noções de puericultura. O público feminino era inculcado a dedicar-se às profissões ditas como propriamente femininas – professoras, enfermeiras, secretárias, dentre outras –, segundo a lógica do artifício essencialmente social que Bourdieu detectou e denominou como ‚vocação‛. Contudo, em hipótese alguma, estamos a menosprezar a importância e a relevância de tais profissões, na verdade, o que está em causa é a relação de dominação simbólica subjacente ao temperamento feminino moldado e desejável socioculturalmente para o cumprimento de tarefas subordinadas ou subalternas que lhe são atribuídas por suas virtudes de submissão, de gentileza, de docilidade, de devotamento e de abnegação.

Quanto à Igreja, a dominação incide no âmbito do comportamento moral das mulheres, no qual a decência e a devoção são a máxima das virtudes femininas. Segundo Bourdieu, a Igreja recomenda ‚explicitamente uma moral familiarista, completamente dominada pelos valores patriarcais e principalmente pelo dogma da inata inferioridade das mulheres‛ (2005: 103).

Elegemos o pensamento do sociólogo Pierre Bourdieu, dentre uma gama de autores que se debruçam sobre o intricado tema da dominação, em função da elucidação do processo sócio-histórico dos meandros que perpassam de forma explícita e implícita um importante capítulo da condição das mulheres ocidentais em franca consonância com os aspectos que são continuamente abordados nas obras de Paula Rego, que, em contrapartida, os tece, na maior parte das vezes, sobre a contextura sócio-histórica de Portugal.

Por seu turno, a artista investiga e desconstrói os instrumentos de elaboração da dominação masculina e as suas convenções estabelecidas historicamente, buscando subvertê-los, de modo a dar visibilidade à estrutura de seu funcionamento. Para tanto, ela se apropria das estratégias visuais – dimensão simbólica – utilizadas pela dominação, segundo a pertinência de sua utilização, e as ridiculariza, subvertendo os conceitos que desafia.

No documento O poder do universo artístico de Paula Rego (páginas 106-111)