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CAPÍTULO 1 EMBASAMENTO TEÓRICO

1.1 A formação de professores de línguas

1.1.3 A relação teoria e prática

Um dos desafios na formação de professores de línguas na área da LA é ainda a relação teoria e prática nos cursos de formação (GIMENEZ, 2005; JOHNSON, 2006; MATEUS, 2013). De acordo com a teoria sociocultural, o futuro professor ingressa nos cursos de formação com uma gama de conceitos cotidianos definidos, embora ainda não articulados, sobre o que é ser professor de línguas e como ensiná-las. Um dos papéis dos programas de formação de professores é, então, expor o aluno a conceitos científicos que representem teorias recentes das diversas disciplinas do curso e que embasem o seu desenvolvimento (JOHNSON; ARSHAVSKAYA, 2011).

Contudo, sabe-se que uma das grandes dificuldades dos professores em formação é justamente perceber que esses conceitos não estão em lados opostos, mas são facetas do mesmo conceito e, por isso, aquilo que já sabiam ou vivenciam na prática e aquilo que é apresentado e discutido pelos professores formadores nas salas de aula dos cursos de formação se integram e compõe o mesmo domínio. Quando questionado, por exemplo, sobre o valor da teoria na sua prática, não é raro ouvir o professor em formação inicial ou mesmo em serviço afirmar que ela não corresponde ou não se adequa a sua realidade de ensino.

Por essa razão, diferentes autores abordam a já antiga dicotomia teoria-prática no intuito de discutir ideias para ajudar o futuro professor a entender como a teoria

influencia sua prática e vice-versa. Como já mencionado nesta seção, essa dicotomia está tradicionalmente presente nos programas de formação de professores que separam o conhecimento da língua e o conhecimento pedagógico, o que acaba colocando-os em posições hierárquicas diferentes e dando a falsa ideia de que podem ser ensinados isoladamente. Ou seja, primeiro o professor aprende o conteúdo, entendido como universal e generalizável, para depois aplicá-lo em sua sala como se a realidade social pudesse ser encaixada em categorias pré-estabelecidas. Como consequência, essa organização é seguida nas práticas discursivas de sala de aula, que se caracterizam pela transmissão de conhecimento descontextualizado (MAGALHÃES, 1998, 2002).

Para Gimenez e Cristovão (2004), as paredes no curso de Letras foram construídas justamente pela separação entre as disciplinas de conteúdo e pedagógica, o que dificulta a interdisciplinaridade, e pela divisão entre teoria e prática, deixando esta última como responsabilidade das práticas de ensino. Como já mencionado, esse foi o modelo adotado por muitas universidades – conhecido como 3+1: três anos de conteúdo específico e um ano de prática no Departamento de Educação.

Johnson e Arshavskaya (2011) afirmam, mais recentemente, que distinções entre o conhecimento da língua, o conhecimento pedagógico geral dos processos de sala de aula e o conhecimento de conteúdo pedagógico que professores utilizam foram feitas com o objetivo de articular a complexidade de conhecimentos relacionados ao ensino, mas apenas serviram, segundo as autoras, para fragmentar ainda mais os tipos de conhecimentos exigidos do professor.

Outra solução apresentada para essa dicotomia na década de 90, de acordo com Burns e Richards (2009), foi a distinção entre treinamento do professor e desenvolvimento do professor, sendo o primeiro relacionado a habilidades e competências e o segundo relacionado ao desenvolvimento do professor a longo prazo e ao domínio do conteúdo da disciplina de LA, oferecida pelas universidades. Cabe ressaltar que o segundo era mais valorizado do que o primeiro, mantendo-se, assim, a hierarquização e a supremacia do trabalho da academia e a dicotomia teoria-prática.

Por essa razão, Smagorinsky, Cook e Johnson (2003) apontam que mesmo as diversas metáforas utilizadas para referir-se a possibilidade de relação entre teoria e prática como, por exemplo, ponte, conexão, casamento e integração reforçam a ideia da teoria como influenciadora ou guia da prática e posicionam teoria e prática como domínios separados, nos quais a teoria é a mais autoritária e a prática é a mais

pragmática. Para os autores, ainda está muito presente na academia a visão de que a teoria melhora a prática e a prática tem pouco efeito sobre a teoria. Concordo com a posição desses autores e acredito que as metáforas comumente usadas para se referir a essa relação são inadequadas, uma vez que teoria e prática, a meu ver, se constituem mutuamente e devem ser entendidas como partes de um todo.

Por outro lado, cabe ressaltar que essa visão também é muito contestada por adeptos, por exemplo, da pesquisa do professor (practioner research) e da pesquisa reflexiva (apresentada na subseção anterior) que se posicionam a favor do professor como pesquisador reflexivo, capaz de contribuir para o seu próprio contexto e para sua prática como professor, assim como para pesquisas sobre os diversos fatores presentes nas salas de aula de LE. A abordagem reflexiva possibilita, assim, a articulação teoria e prática (GIMENEZ, 2005) e é por meio das oportunidades de reflexão coletiva que se pode relacionar as duas, “aperfeiçoando nossa capacidade de adaptar nossa atuação a diferentes contextos de ensino, valorizando os conhecimentos de todos e criando condições para que todos possam aprender” (SCHLATTER, 2013, p. 199).

Mateus (2009, p. 317), por exemplo, afirma que não se pode pensar sala de aula e pesquisa como dois mundos diferentes ora orientados pela prática ora pela teoria, mas como atividades que tem a mesma natureza. A lacuna entre teoria e prática, segundo a autora, diminui à medida que se aborda as demandas da sala de aula a partir “do esforço real de pessoas reais envolvidas nas transformações de contextos também reais”, o que leva a uma ressignificação dos papéis sociais de professores e formadores de professores. Da mesma forma, Johnson (2006) afirma que o professor deve ser reconhecido como produtor de conhecimento e ter os seus modos de produção integrados às bases de conhecimento sobre formação de professores.

De acordo com Magalhães (1996, 1998, 2002), essa dissociação entre conhecimento teórico e prática não oferece, inclusive, experiências que possibilitem o processo de reflexão por meio do qual o professor possa relacionar discussão teórica à sua prática em sala de aula. A ênfase apenas na teoria dificulta a compreensão das experiências que efetivamente são criadas em sala de aula e, por outro lado, o foco apenas na prática não fornece ferramentas para que o professor entenda e reflita sobre sua ação e/ou durante sua ação.

Nesse sentido, Tarone e Allwright (2005) discordam de duas afirmações: a primeira, que o futuro professor precisa apenas de um conjunto de conhecimentos da

língua e metodológico oferecidos nos cursos de formação para tornar-se um professor eficiente; e, a segunda, que ele só adquirirá habilidade para ensinar línguas no contexto de sala de aula. Para os autores, o professor em formação não percebe a relevância do conteúdo acadêmico para o processo de aprender a ensinar e, mesmo que esse conteúdo seja relevante a longo prazo, ele pode não ser útil para o contexto de ensino do aluno, tornando-se, assim, conteúdo descontextualizado.

Da mesma forma, o professor em formação que só aprende fazendo, isto é, em salas de aula e sob a orientação de um supervisor, pode não perceber o impacto que o conteúdo acadêmico pode causar no ensino de línguas. Desse modo, os autores salientam a importância do futuro professor conseguir analisar as estruturas das línguas e os processos de aprendizagem para ser capaz de tomar decisões conscientes e condizentes com as necessidades dos alunos e, ainda, com os diferentes contextos em que poderá atuar.

Percebe-se, assim, que, ao discordar das duas afirmações mencionadas, os autores parecem ressaltar a importância não apenas dos diferentes tipos de conhecimento que fazem parte do processo de formação do professor de línguas, mas também a importância de caminharem juntos, já que se completam mutuamente. Nesse sentido, concordo com a afirmação de Smagorinsky, Cook e Johnson (2003) de que não se contempla como uma pessoa aprende ao dar foco para a teoria e a prática, e especialmente para sua separação, visto que, para os autores, o desenvolvimento de uma abordagem de ensino está em relação dialética com o desenvolvimento de uma concepção de ensino.

Magalhães (1996, p. 11) também argumenta no sentido da relação entre conhecimento teórico e prático ao afirmar que é raro a interação em sala de aula diferir do IRA (iniciação – reposta – avaliação) não porque o professor não tem o “domínio” do conhecimento teórico, mas por não haver essa relação dialética entre teoria e prática, como explica a autora:

[...] Isto é, na transformação de uma prática que, muitas vezes o próprio professor sabe que necessita ser inovada, mas que, apesar de ter o conhecimento formal, teórico de novas maneiras de organizar a sala de aula, encontra dificuldade em implementá-las, mesmo porque as mudanças envolvem a transformação de modos de participação sedimentados não só por professores, mas também por pais e alunos, donos de escolas, coordenadores e diretores.

Nesse ponto, é possível traçar um paralelo com algumas pesquisas relacionadas à formação de professores para o uso de TIC, as quais apontam essa dicotomia em detrimento à relação dialética apontada por Smagorinsky, Cook e Johnson (2003). Na pesquisa de Souza, Silva e Saito (2009), por exemplo, os futuros professores investigados relatam os benefícios da discussão teórica sobre o uso dos recursos do computador realizada em uma disciplina voltada ao uso do computador no ensino de línguas, mas destacam a necessidade da relação entre teoria e prática, visto que se sentiram inseguros para realmente trabalhar com esse recurso.

No estudo realizado por Peters (2006), do mesmo modo, notou-se que apenas um curso isolado não foi suficiente para que os professores em formação entendessem tecnologia como um componente integrado ao programa. Por essa razão, o autor sugere a integração da abordagem e uso da tecnologia ao longo do curso de formação. Da mesma forma, Kessler (2006) afirma que, em geral, professores não dão continuidade ao uso de tecnologia em sala de aula após o término de cursos de treinamento, sugerindo um impacto pequeno desses cursos no modo como pensam.

Para Vieira (2012), os professores devem assumir uma posição crítica em relação ao uso e exploração de tecnologias em salas de aula de LE e para isso é necessário, de acordo com a autora, que os programas de formação possibilitem momentos de prática e reflexão sobre ela para que sejam formados professores reflexivos e para que o conhecimento cotidiano do profissional seja reconhecido e valorizado.

Mais recentemente, então, a dicotomia teoria-prática tem sido repensada ao se considerar a aprendizagem do professor não como um treinamento de habilidades a serem postas em prática em qualquer contexto, mas como uma forma de socialização do pensamento profissional e das práticas de uma comunidade de prática (BURN; RICHARDS, 2009). De uma perspectiva sociocultural, é crucial entender o conhecimento para o ensino holístico (por meio da interdependência entre o que é ensinado e como é ensinado) para o desenvolvimento do processo de aprender a ensinar, já que a cognição tem que ser considerada na prática social por ser originada e moldada pela natureza dessa prática (SMAGORINSKY; COOK; JOHNSON, 2003).

Segundo Mateus (2013, p. 108), a superação dessa dicotomia pode acontecer por meio da práxis que permitiria que os professores entendessem como teoria e prática se constituem mutuamente e como esse processo de transformação constitui o trabalho do

professor. Para a autora, o desafio está “tanto em produzir contextos dialógicos que permitam emergir a reorganização das experiências vividas, quanto em criar espaços públicos que tornem visíveis os modos pelos quais os professores vão ressignificando essas experiências”.

Aprender a ensinar é, então, um processo inerentemente social. Para Smagorinsky, Cook e Johnson (2003), a noção de prática social e aprendizagem é essencial para resolver a dicotomia teoria-prática, uma vez que a prática contribui para aprendizagem e, como consequência, para o desenvolvimento de conceitos.

Portanto, a responsabilidade dos programas de formação de professores é, de acordo com a perspectiva sociocultural, apresentar conceitos científicos, mas de modo que se relacionem ao conhecimento cotidiano e às atividades do professor, abandonando, assim, a dicotomia teoria-prática. Segundo Johnson e Arshavskaya (2011), é o processo transformativo de compreensão das experiências cotidianas por meio dos conceitos teóricos, e vice-versa, que mudará como os professores entendem e realizam seu trabalho.