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Quem pode negar que muitos deles [dos romanistas] teriam sido ver- dadeiros religiosos não somente de forma, com Thomas a Kempis, Gregory Lopez e o Marquês de Renty, mas que muitos deles, até em nossos dias, são no seu interior cristãos de verdade? E isso apesar do monte de opiniões erradas que eles mantenham, comunicadas pela tradição dos seus pais.481

John Wesley Quem sabe, ele vai boiar de fato uns anos no fogo do purgatório, mas certamente ele irá, finalmente, para o céu.482

John Wesley

Wesley discutiu a soteriologia católica por diversas razões. Primeiro, ele tinha consci- ência que ela fez parte da própria tradição anglicana, especialmente, mediante a sua ênfase na santificação. Segundo, a missão metodista encontrou especialmente na Irlanda um catolicismo forte pelo qual ele – como outros protestantes também – sofreu violentos ataques. Terceiro, houve um aspecto público quando um pretendente do trono criou uma aliança política com base na sua catolicidade. O aproveitamento de posições católicas soteriológicas não se distin- gue do aproveitamento de posições anglo-católicas com seus fortes acentos sacramentais e li- túrgicos e sua ênfase nos aspectos concretos da encarnação. A relativa ausência de autores an- glo-católicos como católicos – com algumas excepções – na Biblioteca Cristã, observada por Martin Schmidt483, repete-se, porém, em outras partes das obras de Wesley. Apesar disso, Wesley cita católicos como Gaston Jean-Baptiste de Renty, Tomás Kempis e Gregory Lopez como exemplos de uma fé vivenciada ou praticada. As publicações de Wesley, em relação ao catolicismo em geral, dependem, então, em grande parte, de circunstâncias locais e, especial- mente, do momento político da Inglaterra.484 Em momentos de ameaças de guerra com nações

clearness of the head.”

481 WJW, vol. 2, 1775, p. 374-375 – sermão 55, §1 [On the Trinity].

482 Anedota sobre John Wesley em relação ao seu sobrinho Samuel Wesley, filho de Charles Wesley e sua supos- ta conversão para o catolicismo. S. n. Obituary – Mr Samuel Wesley. GMSU, nov. 1837, p. 545: “He may, in- deed, role a few years in purging fire, but he will surely go to Heaven at last.”

483 Martin SCHMIDT. John Wesley, vol II, 326.

católicas, Wesley publicou tratados contra doutrinas católicas e questionou a lealdade nacio- nal de católicos ingleses. Entretanto, isso não era uma novidade, aqui Wesley seguia um dos promotores da tolerância inglesa, o próprio John Locke!485 Esses posicionamentos resultaram na acusação de Wesley de ter, no mínimo contribuído, para os distúrbios anticatólicos sobre a liderança de Lord George Gordon de 1780, em nome da Associação Protestante.486 Depois dos distúrbios, Wesley tinha até visitado Gordon em dezembro 1780 na prisão,487 mas na sua autodefesa aparece novamente o argumento da falta de lealdade nacional:

Eu não tenho nada a ver com perseguição. Eu não persigo nenhum ser hu- mano por causa dos seus princípios religiosos. […] nada pode ser mais ób- vio do que os membros daquela igreja não conseguirem oferecer razoável segurança da sua lealdade ou do seu comportamento pacífico a qualquer governo. Por causa disso, eles não deveriam ser tolerados por nenhum go- verno, seja ele protestante, muçulmano ou pagão.488

Num outro momento, também altamente violento, porém não de ameaça nacional, Wesley se viu diante de distúrbios que demoraram dez dias, ameaçando a presença metodista na Irlanda em maio de 1749. Em julho Wesley respondeu a estes distúrbios com a Carta a um

Católico Romano. Uma reação católica a essa carta não é conhecida. Ela representa certamen-

te o máximo de aproximação para definir um terreno em comum. Veja, por exemplo, uma a- firmação de fé em relação à Maria, mãe de Jesus: “Eu creio que Jesus de Nazaré se tornou ser humano sendo nascido da abençoada virgem Maria, quem, tanto depois como antes de dar luz, continua uma virgem pura e imaculada.”489 A visão é reafirmada em 1757, nas Notas explana- tórias sobre o Novo Testamento, no comentário de Mt 1,25.490 Isso, porém, não justifica qua l-

mais diferenciada seria muito importante. Veja como um excelente exemplo HEMPTON, David. Methodism and

politics in British society: 1750-1850. Stanford, Calif.: Stanford University Press, 1984, p. 30-43.

485 David HEMPTON. Methodism and politics in British society: 1750-1850. Stanford, Cf.: Stanford University Press, 1984, p. 30.

486 Pelo grau de violência e pelo grande número de participantes os Gordon riots foram classificados como o pior destúrbio europeu do século XVIII antes da revolução francesa em 1789. Veja RULE, John. Albion’s people: English society 1714-1815. A social and economic history of England. London / New York: Longman, 1992, p. 221-223.

487 Richard P. HEITZENRATER, John Wesley e o povo chamado metodista. São Bernardo do Campo & Rio de Janeiro: Editeo & Bennett, 1998, p. 274.

488 LJW, vol. 6, Londres, 12 jan. 1780, p. 371 – carta para o tipógrafo do public advertiser: “With persecution I have nothing to do. I persecute no man for his religious principles. […] nothing can be more plain, than that the members of that Church can give no reasonable security to any Government of their allegiance or peaceable be- haviour. Therefore they ought not to be tolerated by any Government, Protestant, Mahometan, or Pagan.” A carta foi também publicada no Arminian Magazine em 1782. Veja AMJW, vol. 5, april 1782, p. 197-199 - A dis- avowal of persecuting papists.

489 John WESLEY. Letter to a Roman Catholic, Dublin, 1749, §7: “I believe that Jesus from Nazareth [...] was made man […] being […] born of the blessed Virgin Mary, who, as well after as before she brought him forth, continued a pure and unspotted virgin.”

quer tipo de adoração (Mt 1.47) e não ausenta Maria, segundo um comentário de Wesley so- bre Lc 1.47491, da necessidade da salvação. Em termos soteriológicos, segundo Wesley, Maria é a “virgem imaculada” e uma pecadora redimida.492 Fora do ambiente da política internacio- nal e eclesiástica, Wesley introduziu, aos metodistas, personalidades católicas como parâme- tros de santidade. Veja o exemplo do momento tão especial do funeral de John Fletcher em 1785, cinco anos depois dos distúrbios anticatólicos de Gordon em Londres:

Eu somente gostaria de observar que durante muitos anos eu procurei de- sesperadamente [no mínimo] um habitante da Grã-bretanha que agüentasse qualquer grau de comparação com Gregory Lopez ou Monsiniore de Renty. Mas deixe julgar qualquer pessoa imparcial se o senhor John Fletcher foi in- ferior a eles.493

Como já vimos na introdução, esses dois nomes – e com eles Tomás Kempis – apare- cem também na introdução da pregação Sobre a Trindade (1780). O texto conclui:

E mesmo assim, o que representam todas as opiniões absurdas de todos os romanistas do mundo, comparadas com aquela na qual o Deus de amor, o sábio, justo, misericordioso, Pai dos espíritos de toda a carne, teria fixado, desde a eternidade, um decreto absoluto, imutável e irresistível que uma parte da humanidade será salva, seja lá o que faça, e o restante será conde- nada, faça o que pode fazer.494

Assim, Marquês de Renty é designado como um dos “pais em Cristo”.495 No seu di- cionário,Wesley fala somente também dos “erros do papismo” e não da idolatria.496 No caso do catolicismo, trata-se, então, não de uma releitura e um aproveitamento doutrinário, mas a relação oscila entre a proposta de uma convivência irênica até a rejeição feroz do catolicismo como corpo eclesiástico com pretensões políticas. Parece-nos que a radicalização do dis curso

hence, that he knew her afterward”.

491 NTJW, 1754, p. 143 – Lc 1.47: “And she rejoiced in hope of salvation through faith in him, which is a bless- ing common to all true believers, more than in being his mother after the flesh, which was an honour peculiar to her. And certainly she had the same reason to rejoice in God her Saviour hat we have: because he had regarded the low estate of his handmaid, in like manner as he regarded our low estate; and vouchsafed to come and save her and us, when we were reduced to the lowest estate of sin and misery.”

492 Assim também John DESCHNER. Wesley's Christology: an interpretation. Grand Rapids, Michigan: Francis Asbury Press, 1988, p. 30.

493 WJW, vol. 3, 1785, p. 627 – sermão 114, §12 [On the death of John Fletcher]: “I would only observe, that for many years I despaired of finding any inhabitant of Great Britain, that could stand in any degree of comparison with Gregory Lopez or Monsieur de Renty. But let any impartial person judge, if Mr. Fletcher was at all inferior to them.” LJW, vol. 4, 9 abr. 1765, p. 293 – carta para John Newton: “Is not a Papist a child of God? Is Thomas à Kempis, Mr. De Renty, Gregory Lopez gone to hell: Believe it who can.”

494 WJW, vol. 2, 1780, p. 376 – sermão 55, §1 [On the Trinity]: “And yet what are all the absurd opinions of all the Romanists in the world, compared to that one, that the God of love, the wise, just, merciful Father of the spir- its of all flesh, has, from all eternity, fixed an absolute, unchangeable, irresistible decree, that part of mankind shall be saved, do what they will; and the rest damned, do what they can!”

495 WJW, vol. 2, 1780, p. 385 – sermão 55. §17 [On the Trinity].

em Wesley, tanto de sua forma anticatólica como anticalvinista, tem também a ver com a dis- puta do espaço público. Por isso, mantém-se o discurso anticalvinista, e o discurso anticatóli- co acontece, mais esporadicamente, interrompido por fases de diálogo.

Distinto dessa questão, encontra-se a convicção de Wesley, já mencionada em relação aos místicos, de que não são as idéias mas as ações, não a doutrina soteriológica, mas a práxis soteriológica, que refletem mais genuinamente o caráter de uma pessoa e de um corpo eclesi- ástico. A soteriologia social desenvolve-se, em primeiro lugar, na práxis. E tanto o discurso anticatólico como o pro-católico quer garantir, na práxis, o espaço para o desenvolvimento dessa soteriologia social. Runyon lembra, que, além disso, o “sacramentalismo medieval e anglicano”497 e a “predestinação calvinista” que representaram doutrinas que pretenderam o- perar a graça independentemente da consciência humana498, dependeram, profundamente, da estabilidade da igreja como instituição.499 O funcionamento dessa mediação clássica medieval da graça divina, segundo a própria experiência de Wesley, não era mais garantida. “A consci- ência humana teria, agora, que participar nas afirmações da verdade e ser convencida por elas, quer isso ocorresse pela razão humana, como no caso do racionalismo e do deísmo, ou pela experiência, como no caso de Locke e Wesley. ”500 A observação de Runyon serve, por outro lado, como explicação parcial de como o funcionamento de uma soteriologia basicamente sa- cramental está vinculado com a manutenção ou procura da supremacia religiosa territorial. Soteriologias sacramentais, então, correm o risco de promover, de forma exagerada e inflexí- vel, a estabilidade da instituição mediadora, pela busca da garantia do seu espaço na socieda- de, e, até quando for possível, no próprio universo. Como, então, o forte acento sacramental em Wesley relaciona-se com estas observações? Wesley, sempre que possível, tomou a Ceia

497 Veja a reação de William Law contra a desconstrução deísta da teologia sacramental. Ele se dirige ao clero jovem, ou seja, uma geração com uma formação universitária deísta. William LAW. A Demonstration of the

Gross and Fundamental Errors of a late book, called `A Plain Account of the Nature and End of the Sacrament

of the Lord's Supper. London, 1737. Robert D. CORNWALL. The church and salvation: an early eighteenth cen- tury high church Anglican perspective. Anglican and Episcopal History, vol. 62, n. 2. Austin, Texas: Historical Society of the Anglican Church, jun. 1993, p. 177-178. 181, supõe que menos o grupo numericamente menor dos deístas representa menor ameaça do que o grupo de anglicanos teologicamente ortodoxos da low church, como Gilbert Burnet. Segundo Burnet, não é a igreja institucional, mas a fé e o arrependimento que garantem a salva- ção. Wesley combinou a práxis sacramental da high church com a teologia sacramental da low church.

498 Theodore RUNYON. A nova criação: a teologia de John Wesley hoje. São Bernardo do Campo, SP: Editeo, 2002, p. 189-190.

499 A posição dos teólogos anglicanos da high church enfatizou a mediação institucional, o sacramento e o minis- tério sacerdotal. Robert D. CORNWALL. The church and salvation: an early eighteenth century high church Anglican perspective. Anglican and Episcopal History, vol. 62, n. 2. Austin, Texas: Historical Society of the Anglican Church, jun. 1993, p. 180-181. Não se esquece que o puritanismo inglês criou seu ambiente absoluta- mente dominado em Nova Inglaterra e tentou o mesmo na revolução de Cro mwell 50 anos depois.

500 Theodore RUNYON. A nova criação: a teologia de John Wesley hoje. São Bernardo do Campo, SP: Editeo, 2002, p. 190.

diariamente e também defendeu, o batismo de criança. Vemos aqui um acento antiintimista. Os sacramentos do batismo e da Santa Ceia, como meios de graça, comunicam a salvação ex-

tra nos e complementam a experiência intra nos. Em outra direção, Wesley defende que o ba-

tismo está vinculado com a presença do Espírito Santo, porém, sem significar o novo nasci- mento.

Além disso, o acento na universalidade como universalidade da graça representa tam- bém um elemento revolucionário que escapa com freqüência na história da igreja da opressão institucional e que se torna o motor de uma ecclesia semper reformanda. Este elemento desa- fia conceitos como “ordem da criação” e contribui para a compreensão de que cada ser huma- no pode ser alcançado por Deus de forma perceptível e transformadora, sem distinção de ida- de, gênero, classe social ou etnia, tendo uma clara noção da presença de Deus na sua própria vida. Quanto à teologia católica como teologia medieval, precisamos, então, distinguir o ideal da inserção dos seres humanos num cosmo, em harmonia com a práxis dos efeitos problemá- ticos de conceito como “ordem de criação” ou a da “monarquia divina” para o desenvolvi- mento de uma soteriologia social. Wesley tinha noção disso e criticou a doutrina da dupla predestinação pelo seu caráter fechado, este “...sonho estóico de uma necessidade fatal, [...] erro pagão...” e “...teologia turca [...] que todas as coisas são feitas sem nenhuma possibilida- de de impedi-las”.501 De fato, temos aqui não somente uma rejeição da eleição em relação à eternidade, mas também em relação à presença pública. A doutrina da “ordem da criação”, funciona, socialmente, não muito diferentemente, da doutrina da predestinação. Assim, a re- jeição tanto de tentativa de instalar na Inglaterra um absolutismo monárquico com pretensões católicas como da ditadura puritana de tipo Cromwell, precisam ser lidas em conjunto.502 Em termos soteriológicos, vamos ver, mais adiante, como Wesley herda o pensamento medieval num ponto muito crucial para toda a sua soteriologia social, quando ele defende a co- responsabilidade da sociedade para o bem estar dos necessitados, não cedendo à leitura mo- derna que culpa o pobre por sua desgraça – leitura chamada por ele de “diabólica”. Encerra- mos este sub-capítulo com uma comparação do Concílio de Trento com o sínodo de Dort:

Eu peguei, por acaso, as obras de Episcopius, e abri a página com um rela- tório sobre o sínodo de Dort. [...] Mas que cenário revela-se aqui! Não me surpreende a forte maldição que logo depois caiu sobre a nossa igreja e na- ção. Que pena que o santo sínodo de Trento e [o sínodo] de Dort não se re-

501 No AMJW, vol. 1, jun. 1778, p. 252, Wesley refere-se à esta doutrina como “stoical dream of fatal necessity […] heathenness error” e “Turkish divinity […] that all things are done unavoidably”.

502 Lembramos aqui que foi dito em 1.3 desse capítulo que a idéia de uma “ordem da criação”, venha também da escola filosófica da Stoa e que esse pensamento, re-aparece com a renascença também no deísmo.

uniram ao mesmo tempo. Quase aliados como eles eram, não somente em relação à pureza da doutrina que cada um deles estabeleceu, mas também segundo o espírito no qual eles atuaram! Se é que o último não excedeu o anterior.503

Neste escrito de 1741, Wesley faz o paralelo entre dois momentos decisivos do desen- volvimento doutrinário católico e calvinista. O ductus é claro, Dort sem Trento se tornou uma maldição para a Inglaterra, mas quem sabe, Dort com Trento seria a complementaridade capaz de retomar o caminho da salvação de forma eficaz. Apesar disso, Wesley não pensava aqui na unificação de diferentes corpos eclesiásticos, mas não mútua completação de diferentes acen- tos na práxis.