• Nenhum resultado encontrado

Há um uso geral e um uso específico da palavra místico em John Wesley. No discurso mais geral, “místico” é usado no sentido de “misterioso”, por exemplo, na classificação de au- tores religiosos: “...outros [...] não são superficiais demais, mas místicos demais. Eles encon- tram em tudo significados escondidos, os quais Deus nunca ensinou...”455. O uso específico se refere à espiritualidade cujos representantes atraíram John Wesley na sua juventude e a partir de 1724. Wesley leu os textos de diversos místicos britânicos (William Law; Henry Scougal), franceses (Fénelon), espanhóis (Juan d`Avilla; Miguel de Molinos, G. Lopes) e alemães (Ja- kob Boehme, Oetinger). Mas seu contato mais íntimo com o tema foi certamente estabelecido mediante o inglês William Law que introduziu a Wesley a Theologia Germanica. Inicialmen- te, Law cativou os irmãos Wesley pelos seus ensinos pastorais. John R. Tyson menciona a ên- fase no cotidiano da teologia de William Law: “A vida cristã é uma vida de devoção [...] um jeito de viver que “traz um senso de religião nas atividades comuns do dia-a-dia” [...] sinôni- mo de perfeição cristã. Essa perfeição é de forma íntima conectada com os deveres da vida

454 Jan ROHLS. Der Prozess der Zivilisation und der Geist des Protestantismus. EKD-Texte. Die Manieren und

der Protestantismus. Anäherungen an ein weithin vergessenes Thema. 2004, p. 78. 63-170, disponível em: <

www.ekd.de/EKD-Texte/2059.html >. Acesso em: 20 ago. 2004. Veja na página principal o documento n. 79. 455 CLJW, vol. 1, 1749: Introdução, §7: “…some […] are not too superficial, but too mystical. They find hidden meanings in everything, which God never taught…”

cotidiana...”,456 fundamentada por uma “cristologia da imitatio” que orientava a uma renúncia do mundo e uma resignação no sentido de uma busca da sintonia com a vontade de Deus.457 Nascido em 1686, Law tornou-se, com 28 anos, não-jurado458. Sua fé levou-o a um conflito com o governo.459 O impedimento de uma carreira anglicana, seja ela sacerdotal ou acadêmi- ca, entretanto, não significava para ele, retirar-se do mundo. Law manteve uma práxis de vis i- tação aos necessitados. A renúncia, então, tinha primeiro a ver com o prestígio e posição soci- al, fato que contribuiu certamente para sua reputação pública entre uma nova geração de reli- giosos. Entre 1726 e 1737, Law escreve tratados sobre a vida cristã, especialmente, Um trata-

do prático sobre a perfeição cristã (1726) e Um chamado sério para uma vida devota e santa

(1729). Entre 1737 e 1740 William Law descobre Jacob Boehme, o místico alemão cuja in- fluência se torna mais profunda a partir de 1749. Em 1761 Law morre.

Os escritos de Law de 1726 e 1729 marcaram profundamente a soteriologia de Wes- ley. O tema da perfeição cristã e sua práxis das “obras de piedade” inclusive de “autodiscipli- na, oração particular, jejum, uso econômico do tempo e das riquezas, da propriedade e da di- versão”460, Wesley jamais abandonaria durante a sua vida, e finalmente, resumiria que a dou- trina da perfeição cristã seria a doutrina mais marcante do metodismo. Law tinha inspirado a práxis de Wesley, porém, no dia-a-dia da Geórgia, Wesley conclui que a proposta de Law não teria trazido resultados. Re-orientado pelos seus contatos com os Moravianos, e rejeitando a crescente tendência mística de Law, Wesley escreveu nos dias 14 e 20 de maio de 1738, ou seja, 4 dias antes de Aldersgate, duas cartas cobrando de Law a falta de orientação em relação à justificação pela fé.461 De fato, Law usou um conceito de justificação pela fé, só que de fo r- ma significativamente diferente de Wesley. Wesley compreendeu a justificação pela fé como perdão, Law, mais como um “sendo feito justo”, tema reservado em Wesley à santificação. Segundo Harper, Law estava “…em sintonia com Jacob Boehme e os platonistas de Cambrid-

456 John R. TYSON. John Wesley and William Law: a reappraisal. Wesleyan Theological Journal, vol. 17, n. 2, outono 1982, p. 58.

457 John R. TYSON. John Wesley and William Law: a reappraisal. Wesleyan Theological Journal, vol. 17, n. 2, outono 1982, p. 58-59.

458 Os não-jurados eram e permaneceram anglicanos, mas rejeitaram em 1688 o juramento em favor de Guilher- me de Orange.

459 Há certos paralelos entre Law e a luta de Dietrich Bonhoeffer contra a “graça barata”. Ambos entraram em choque com seus governos, cuidaram da formação teológica de forma alternativa e tinham um acesso aos amb i- entes de classes socias baixas.

460 John R. TYSON. John Wesley and William Law: a reappraisal. Wesleyan Theological Journal, vol. 17, n. 2, outono 1982, p. 72.

ge”.462 A tensão entre Law e Wesle y tem mais um lado interessante. Enquanto em Law a san- tificação assimila a justificação, em outros ramos do cristianismo a justificação assimila a san- tificação.463

Outras críticas da mística por Wesley referem-se à sua rejeição do uso da razão464 e dos sacramentos465. Depois 15 de anos de silêncio, cartas de 1756 e 1760 reafirmaram os de- sentendimentos. Um fato, porém, Tyson ignora plenamente. Wesley editou entre 1740 e 1748, cinco obras de Law e, em 1768, uma pequena edição completa das obras de Law.466 Entre 1740 e 1791, Wesley soma um total de 54 edições dessas seis obras, porém nunca editou uma obra da fase de 1749 em diante.

Em relação a Jacob Boehme, Wesley oferece, ainda no Arminian Magazine do ano 1781, uma detalhada desconstrução de um texto,467 sendo que, na sua História eclesiástica, ele critica abertamente Boehme, “um carpinteiro de Goerlitz”, como “a cabeça [de uma] tribo de visionários...”468. Em 1782, ele distingue claramente entre a aprovação de Law e a rejeição de Boehme.469 Apesar disso, conselhos de Boehme, relacionados a dietas vegetarianas, entra- ram no Primitive physick.470 Chegamos à conclusão que Law (e seu misticismo ético) e John Wesley tinham em comum a ênfase nas obras da piedade, no tema geral da perfeição cristã e

462 Kenneth HARPER. [William] Law and [John] Wesley. Church Quarterly Review, 163, Nashville, TN: The United Methodist Board of Higher Education, jan.-mar. 1962, p. 61-71.

463 Parece ser a grande tentação do protestantismo e era o grande desafio de Bonhoeffer. 464 John WESLEY. An earnest appeal to men of reason and religion, §30.

465 Segundo The private Journal and Literary Remains of John Byrom. Chetham Society, 1854, vol. 2, pt. 1, p. 181-182.Apud George E. CLARKSON. John Wesley and William Law's mysticism. Religion in Life, 42, inverno 1973, p. 542. A rejeição do a é certamente vinculado com sua crescente apresciação da mística alemã. Mas, ain- da em 1737 Law defenderia o uso do sacramento contra os deístas. William LAW. A Demonstration of the Gross

and Fundamental Errors of a late book, called `A Plain Account of the Nature and End of the Sacrament of the Lord's Supper, &c. London, 1737.

466 John WESLEY (ed.).The nature and design of Christianity. (edição em parte) John Wesley. William Law. S.l., 1740; (32 edições na Inglaterra e na Irlanda); John WESLEY (ed.). A practical treatise on Christian perfec-

tion. (edição parcial) William Law, 1743; John WESLEY (ed.). The pilgrim's progress from this world to that which is to come. William Law, 1743 (11 edições na Inglaterra); John WESLEY (ed.). A serious call to a holy life, (edição parcial). William Law, Newcastle upon Tyne: Printed by John Gooding, 1744 (8 edições na In-

glaterra); John WESLEY (ed.). A serious answer to Dr. Trapp's four sermons on the sin, folly, and danger of Be-

ing righteous overmuch. William Law (edição parcial), 1748 (3 edições na Inglaterra e Irlanda); John WESLEY

(ed.). An Extract of the Rev. (William) Law's Works, 1768.

467 AMJW, vol. 4, 1781, p. 268-274 - John WESLEY, Thoughts upon Jacob Behmen. 468 EHJW, vol. 4, 1781, p. 90-91.

469 AMJW, vol. 5, april 1782, p. 207 - John WESLEY. A specimen of the divinity e philosophy, of the highly il- luminated Jacob Behmen: “Mr. Law’s writings are entirely out of the question, we are only concerned with those of Jacob Behmen.”

470 George Chyene, um amigo pessoal de William Law, fez a intermediação. Veja Arouna P. OUÉDRAOGO. The social genesis of vegeterianism to 1859. Food, power and community: Essays in the history of food and drink. DARE, Robert (ed.). Adelaide, AUS: Wakefield Press, 1999, p. 157-158. Não sabemos, porém, se Wesley sabia da origem dos conselhos. Ele se refere somente ao próprio Chyene. Se for seria mais um exemplo da capa- cidade de distinguir entre diversos aspectos de uma mesma pessoa.

em busca de Deus face-a-face. A última transforma-se, porém, a partir de 1729, para Wesley, numa busca face-a-face mediante a comunhão humana471. Tuttle interpreta isso como final da fase mística de Wesley, baseando-se na introdução do hinário de 1739, o qual relaciona com o evento o homem sério, acontecimento de 1729.472 conclusão de Tuttle, porém, parece-nos precipitada. Em Wesley, continua a ênfase na procura de Deus, mas os meios é que mudam sucessivamente. Por isso não concordamos com McConnell, pois entendemos que ele trans- forma Wesley num místico.473 A idéia do acesso direto a Deus, mediante a experiência místi- ca, teve um efeito colateral: levou William Law a uma contradição com a teologia anglicana, esvaziando, tendencialmente, outros meios da graça, como por exemplo, os sacramentos. Wesley, já em 1736, criticou essa tendência dos místicos numa carta para o seu pai.474 Nesse ano, porém, não pode se referir a William Law que, ainda em 1737, publicou uma crítica se- melhante, ainda que seu alvo fosse um antisacramentalismo deísta.475 A segunda observação de Runyon, sobre a negligência mística em relação ao amor ao próximo, também não atinge William Law nessa época. Assim, percebe-se uma crescente crítica aberta dos místicos por Wesley, a partir de 1736, mas ainda não um confronto direto com William Law. Diferente- mente, Wesley ainda tentou implantar a espiritualidade do misticismo ético da proveniência de William Law na Geórgia.

Apesar disso, Wesley critica, em 1781, o autor do texto fundante da História eclesiás-

tica concisa, por sua tendência antimística sem diferenciação e prefere omitir essas passagens,

porém indica a consciente mudança na introdução da coletânea.476 E, no fim da sua vida, Wesley trata descrições de experiências religiosas parecidas com experiências místicas de

471 Helmut RENDERS. Papel social e subjetivação no metodismo nascente. Caminhando, ano IX, n. 13. São Bernardo do Campo: Faculdade de Teologia, Universidade Metodista de São Paulo, 1° semestre 2004, p. 212- 225.

472 Robert G. TUTTLE, Jr. Mysticism in the Wesleyan Tradition. Grand Raids, Michigan: Francis Asbury Press of Zondervan Publishing House, 1989, p. 74. Charles WESLEY e John WESLEY (eds.). Hymns and Sacred Po-

ems. S.l., 1739, p. 321-322.

473 De forma exagerada afirma Francis John McCONNELL. John Wesley. Nashville, TN: Abingdon Press, 1938, 149-150: “We do not scruple to call Wesley himself one of the noblest of mystics […] It is a search to get in ac- tual union with God, […] through […] the periods of the `dark night of the soul´ and final illumination.” Mc- Connell, entretanto, não capta o aspecto comunitário. Veja também a observação que a tendência mística de Wesley era forte antes de 1738 e depois de 1765 em David HEMPTON. Methodism and politics in British soci-

ety: 1750-1850. Stanford, Calif.: Stanford University Press, 1984, p. 31.

474 WJW, vol. 25, Savannah, 23 nov. 1736, p. 487-489 – carta para Samuel Wesley.

475 William LAW. A Demonstration of the Gross and Fundamental Errors of a late book, called `A Plain Ac-

count of the Nature and End of the Sacrament of the Lord's Supper, &c.´. London, 1737. Veja tambem C. D. A.

LEIGHTON, William Law, Bemenism, and counter enlightment. Harvard Theological Review, vol. 91, n. 3, 1998, p. 301-320 que interpreta o anti-deísmo de Law como seu tema transversal.

forma tolerante.477 Já em 1767, seis anos depois da morte de Law, encontra-se uma reivindi- cação significativa no diário: “Um místico que nega a justificação pela fé (por exemplo, se- nhor Law) pode ser salvo. Mas se for assim, o que acontece com o articulus stantis vel caden-

tis ecclesiae [o artigo que sustenta ou faz cair a Igreja – e a reivindicação de Lutero para essa

doutrina?].”478

Aqui Wesley usa Law contra Lutero. Mais tarde, num sermão do ano 1790, Wesley ainda elogia Law e a sua obra Um chamado sério.479 Esse comentário e a carta de 1790 con- vergem com um texto publicado postumamente: “Eu acredito que Deus contempla mais as vi- das e os temperamentos dos seres humanos do que as suas idéias, e creio que ele respeita mais a bondade do coração do que uma cabeça esclarecida.”480 Aqui, a soteriologia é fortemente re- lacionada com a vida, tema presente também nos textos pastorais de William Law. Parece que a relação entre John Wesley e William Law é lida, da melhor forma, a partir da vida mesmo, e que Wesley releu a sua reação em relação a William Law diante da sua experiência de vida que se abriu, cada vez mais, também às exceções da regra. Em termos soteriológicos, Wesley herda de William Law uma compreensão da centralidade do conceito “perfeição cristã”, po- rém, interpretado como exercício da vida cristã no cotidiano. Às obras de Law que destacam isso, Wesley faz leitura básica nas suas sociedades. O lado místico de Law dessa fase, e do misticismo romano, indicam uma outra contribuição, a importância do encontro face-a-face com Deus, da presença contínua de Deus no coração do ser humano. O acento reaparecerá, de forma transformada, na ênfase do testemunho do Espírito Santo na vida do crente, na esperan- ça de uma relação íntima com Deus, expressa no caminhar como os discípulos, seguindo Je- sus, deixando tudo atrás. Visando já o terceiro capítulo: hoje, na compreensão popular da igre- ja, a “mística” é sinônimo de “espiritualidade”. A linguagem religiosa popular, tanto dentro como fora da igreja, não é racional, mas a mística se expressa numa linguagem religiosa, re- introduzindo a dimensão da santidade nas igrejas. A proximidade dessa piedade com a místi-

477 LJW, vol. 8, Londres, 13 fev. 1790, p. 201 – carta para sra. Cock: “ MY DEAR SISTER, […] I love to hear the particulars of your experience, and I had a letter a few days ago from one of our sisters in Scotland whose experience agrees much with yours; only she goes further. She speaks of being ‘taken up into heaven, surrounded with the blessed Trinity, and let into God the Father.’”

478 WJW, vol. 22, 1 dez. 1767, p. 114 – diário: “That a mystic who denies justification by faith (Mr. Law, for in- stance) may be saved. But if so, what becomes of articulus stantis vel cadentis ecclesiae?”

479 WJW, vol. 4, 1790, p. 121 – sermão 125, §1 [On a single eye]: “The same truth, that strong and elegant writer, Mr. Law, earnestly presses in his `Serious Call to a Devout Life,´ – a treatise which will hardly be ex- celled, if it be equaled, in the English tongue, either for beauty of expression, or for justness and depth of thought.”

480 WJW, vol. 4, 1790, p. 175 – sermão 130, §15 [On living without God]: “I believe the merciful God regards the lives and tempers of men more than their ideas. I believe he respects the goodness of the heart rather than the

ca, tanto protestante como romana, poderia indicar um dos possíveis caminhos para um diálo- go soteriológico brasileiro contemporâneo com os grupos que enfatizam o uma espiritualidade ético-entusiasta.