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4. Teologia ad pauperum

4.4 Em busca de uma espiritualidade acessível aos pobres

Theodore Runyon designou esta e outras propostas de Wesley como parte da sua “or- topatia”.762 Charles Wesley, conforme citado no início do capítulo com uma análise bastante favorável à espiritualidade dos pobres, criou, provavelmente, o termo mais profundo sobre o tipo de relação que deve ser procurado com eles. A tarefa do movimento metodista não era somente de se tornar solidário com os pobres mediante o reconhecimento dos seus problemas a tentativa de ajudá-los, mas de “se tornar amigos dos pobres”. Isso incluiu, também segundo Meeks e Runyon, uma convivência bastante próxima no cotidiano : “A ação de Wesley em fa- vor dos pobres, no entanto, não era simplesmente de serviço ao pobre, mas, ainda mais impor- tante, de vida com o pobre. [...] Ele realmente compartilhava a vida dos pobres de maneira significativa, a ponto de contrair doenças de suas camas.”763 Aqui, novamente, a vocação so- teriológica estabelece relações e constrói uma convivência com a possibilidade de “andar co- mo Cristo andou” para todos/as os/as envolvidos/as. Trata-se de uma ortopatia de convivên- cia. Fechamos esse sub-capítulo com uma descrição do grupo de Oxford por Wesley no ser- mão De tempos anteriores, de 1781. O seu objetivo geral era rejeitar tanto a idealização como a diabolização do passado. Nele, Wesley refere-se aos líderes iniciais do Clube Santo como “pessoas pobres”, que apesar dessa condição desfavorável teriam tido um tremendo impacto na história:

Duas ou três pessoas pobres [poor people] encontraram-se com o propósito de se ajudar mutuamente para ser cristãos de verdade. Eles aumentaram a centenas, milhares, miríades, ainda procurando seu único ponto: uma relig i- ão verdadeira, o amor para com Deus e para com o próximo governando o seu temperamento, suas palavras e suas ações.” 764

MEEKS, Douglas (ed.), Nashville, TN: Kingswood Books, 1995, p. 51.

762 18 anos antes dele usou um outro autor o conceito “teopático”; veja William M. THOMPSON, Jesus, Lord

and Saviour: a theopatic christology and soteriology. New York: Paulist Press, 1980.

763 Douglas MEEKS. On reading Wesley with the poor. The portion of the poor: Good News to the poor in the Wesleyan tradition, MEEKS, Douglas (ed.), Nashville, TN: Kingswood Books, 1995, p. 10; apud Theodore RUNYON. A nova criação: a teologia de John Wesley hoje. São Bernardo do Campo, SP: Editeo, 2002, p. 232. 764 WJW, vol. 3, 27 jun.1787, p. 452-453 – sermão 102, §22 [Of former times]: “Two or three poor people met together in order to help each other to be real Christians. They increased to hundreds, to thousands, to myriads, still pursuing their one point, real religion, the love of God and man ruling all their tempers, and words, and ac- tions.”

Essa autodesignação deixa mais uma vez transparecer o ideal mais medieval da rela- ção entre pobreza e autoridade espiritual, sem cair, porém, numa proposta acética no sentido de retirar-se da vida.765

Fora do país, por exemplo, entre os pietistas de Halle, numa publicação de 1793 Wes- ley é considerado especialmente como “eficaz entre os pobres”.766 Essa preocupação com os pobres é uma ênfase também manifestada já nas primeiras pregações publicadas por Wesley. Nelas, ele afirma como seu grupo alvo os pobres, as pessoas sem formação escolar, jovens e pecadores:

Para quem, então, não deveríamos pregar? Quem deve ser exclu ído? Os po- bres? Jamais, eles têm um direito peculiar de que o evangelho seja procla- mado para eles. Os sem educação? Não. Deus revelou essas coisas para os não educados e ignorantes desde o início. Os jovens? De jeito nenhum. […] “Não os impeçam”. Os pecadores? Eles são os últimos a serem excluídos.767

No sermão 31, ele vai ainda além e destaca a força dos sem-voz, cuja espiritualidade transforma os pecadores em pessoas capazes de enfrentar, em nome e pela força do evangelho de Cristo, as técnicas aterrorizantes dos poderosos:

Oh! Como podem seres humanos incultos e ignorantes sustentar sua causa na presença de tais oponentes? Estes não são os únicos com quem são obr i- gados a contender, mesmo em condições de aparente inferioridade; porque há tantos seres humanos poderosos, tão nobres e influentes quanto sábios, no caminho que leva à destruição [em vez de “perdição”] – e eles têm meios mais fáceis de refutar do que o raciocínio e o argumento. Usualmente ape- lam, não para o entendimento, mas para o terror que sabem inspirar a quem quer que lhes oponha, método raramente falho, mesmo quando o argumento nada aproveita, nivelando as capacidades de todos seres humanos; porque todos podem temer, quer possam raciocinar, quer não. E todos os que não têm uma firme confiança em Deus, uma confiança segura em seu poder e em seu amor, nada podem fazer senão temer desgostar aos que têm o poder do mundo em suas mãos. Que maravilha há, pois, em que o exemplo dos

765 Antecipamos aqui que para Wesley a guerra era predominante causada por interesses em lucro. AMJW, vol. 5, jan. 1782, p. 40 - The cause and cure of war. “O love of money! Root of evil! […] Love God. Love your neighbours . Love your enemies.”

766 August Hermann NIEMEYER (Königlich preus. Consistorialrath und Professor der Theologie). Leben

Johann Wesleys: Stifter der Methodisten nebst einer Geschichte des Methodismus von J. Hampson. Vol. II, Aus

dem Englischen. Halle: In der Buchhandlung des Waisenhauses, 1793, p. 3-4. “Man hat die Anmerkung gemacht, daß Whitefield viel Anhänger unter den Reichen fand. Wesley richtete mehr unter den Armen aus. Ihm selbst ist das nicht entgangen. “Der Herr gibt uns, schreibt er, die Armen, wohin wir uns wenden mögen. Sie sind unsere Accidenzien. Eine so herzliche, liebevolle, schmutzige Gesellschaft wie du sie nie gesehen haben. (Er meint die Köhler in der Nachbarschaft von Newcastle.) Aber nach und nach sollen sie weiß werden wie Schnee.” 767 WJW, vol. 1, 1738, p. 128 – sermão 1, §III.7 [Salvation by faith]: “To whom, then, are we not to preach it? Whom shall we except? The poor? Nay; they have a peculiar right to have the gospel preached unto them. The unlearned? No. God hath revealed these things unto unlearned and ignorant men from the beginning. The young? By no means. […] `forbid them not.´ The sinners? Least of all.”

tais seja lei para quantos não conheçam a Deus? 768

Esta preocupação é transformada em 1781, no primeiro sermão publicado no Arminian

Magazine, em uma alerta de não se tornar rico! Em O perigo de riquezas Wesley comenta

1Tm 6.9:

O Apóstolo não fala aqui de ganhar riquezas injustamente, mas de algo bem diferente: Suas palavras devem ser tomadas em seu sentido pleno e óbvio, sem restrição ou qualificação qualquer. Paulo não diz: “Eles que serão ri- cos, através de meios pecaminosos” [...] mas simplesmente, “eles que serão ricos”. Esses, admitindo-se em suposição, que os meios que eles usam se- jam sempre tão inocentes, “caiam na tentação e armadilha, e em muitos de- sejos todos e prejudiciais, que arrastaram homens para a destruição e perdi- ção”.769

Margaret Jones alega com toda razão que “sua posição indica a importância do tema no pensamento de Wesley naquele tempo.”770 Para nós é interessante notar como este assunto ganha no fim da vida de Wesley, uma nova dimensão soteriológica: a posse de riquezas pre- judica independentemente da forma como elas foram adquiridas. A ironia áspera – “admitin- do-se em suposição, que os meios que eles usam sejam sempre tão inocentes” – deixa, porém dúvida da possibilidade de um enriquecimento honesto: trabalho honesto não somente não en- riquece a grande maioria do povo, no século XVIII, mas muitas fortunas são construídas às custas dos pobres. Wesley é radical: quem tem mais do que comida, um lugar para morar e roupa para se vestir deve se considerar rico.771

Ó, vocês Metodistas, ouçam a palavra do Senhor! Eu tenho uma mensagem de Deus a todos os homens; mas a vocês, acima de todos. Porque por mais de quarenta anos, eu tenho sido um servo de vocês e de seus pais. E não te- nho sido como um junco balançando ao vento: Eu não tenho mudado em

768 A tradução segue em grande parte a edição em português. WJW, vol. 1, 1750, p. 670 – sermão 31, §II.7 [Upon the Lord’s sermon on the mount, XI]: “O how can unlearned and ignorant men maintain their cause against such opponents! And yet these are not all with whom they must contend, however unequal to the task: For there are many mighty, and noble, and powerful men, as well as wise, in the road that leadeth to destruction; and these have a shorter way of confuting, than that of reason and argument. They usually apply, not to the un- derstanding, but to the fears, of any that oppose them; – a method that seldom fails of success, even where argu- ment profits nothing, as lying level to the capacities of all men; for all can fear, whether they can reason or no. And all who have not a firm trust in God, a sure reliance both on his power and love, cannot but fear to give any disgust to those who have the power of the world in their hands. What wonder, therefore, if the example of these is a law to all who know not God?”

769 WJW, vol. 3, 1781, p. 228-229 – sermão 87, §2 [The danger of riches]: “The Apostle does not here speak of gaining riches unjustly, but of quite another thing: his words are to be taken in their plain, obvious sense, without any restriction or qualification whatsoever.1 St. Paul does not say, `They that will be rich by evil means´, […] but simply, `they that will be rich´; these, allowing, supposing the means they use to be ever so innocent, `fall into temptation, and a snare, and into many foolish and hurtful desires, which drown men in destruction and per- dition´.”

770 Margaret JONES. Some Eighteenth Century Methodist Theology: The Arminian/Methodist Magazine. Ep-

worth Review, vol. 27, n. 1, jan. 2000, p. 9.

meu testemunho. Eu testifiquei a vocês a mesma coisa, desde o primeiro di- a, até agora. Mas "quem acreditou em nossa pregação?" Eu receio, não muitos ricos: Eu receio que exista necessidade de aplicar para alguns de vo- cês, aquelas palavras terríveis do Apóstolo: “Vão agora, vocês homens ri- cos! Chorem e lamentem as misérias que devem vir sobre vocês. Seu ouro e prata estão destruídos, e a ferrugem deles é testemunha contra vocês e deve- rão comer sua carne, como se fosse fogo”. Certamente irão, a menos que vocês poupem tudo que puderem, e dêem tudo que puderem. Mas quem de vocês considerou isto, desde que vocês ouviram a vontade do Senhor com respeito a isto? Quem está agora determinado a considerá-la e praticá-la? Pela graça de Deus, comecem hoje!772

Quanto à transversalidade do tema em Wesley, lembramos da proposta de criar um ti- po de comunhão de bens entre os pregadores. De fato o sermão de 1781 retoma firmemente uma proposta lançada já em 1760 através do sermão Sobre O uso de dinheiro de acrescer ao “Ganhe tudo que você puder” e o “poupe tudo que você puder” como terceira regra “Dê tudo que você puder.”773 Esse sermão 50 faz parte dos três últimos sermões dos Standard Sermons, nos quais se encontra a essência que distingue o metodismo nascente em seu meio. A razão porque Wesley retomou este assunto em 1781 tem que ver com a publicação do livro A rique-

za das nações de Adam Smith em 1776 e seu efeito em meio ao povo inglês e ao povo meto-

dista. Lembre-se como a aceitação do evangelho, especialmente entre os pobres, para os ir- mãos Wesley era um sinal da presença trans formadora de Deus mundo. Assim registra Char- les Wesley no seu diário em 1739: “Quão alegremente os pobres aceitam o evangelho: foi quase impossível, para nós, irmos embora”774 e em 1745 ele inclui num hino natalino os ver- sos “Os sábios adoram / E trazem os seus pertenc es, / Os ricos são permitidos a seguir os po- bres”775. Em 1767, Charles afirma: “Ele [o Espírito Santo] santifica, sem querer saber / Se são

772 WJW, vol. 3, 1781, p. 240 – sermão 87, §II.9 [The danger of riches]: “O ye Methodists, hear the word of the Lord! I have a message from God to all men; but to you above all. For above forty years I have been a servant to you and to your fathers. And I have not been as a reed shaken with the wind: I have not varied in my testimony. I have testified to you the very same thing from the first day even until now. But 'who hath believed our report?' I fear, not many rich. I fear there is need to apply to some of you those terrible words of the Apostle: `Go to, now, ye rich men! Weep and howl for the miseries which shall come upon you. Your gold and silver is cankered, and the rust of them shall witness against you, and shall eat your flesh, as it were fire.´ Certainly it will, unless ye both save all you can and give all you can. But who of you hath considered this since you first heard the will of the Lord concerning it? Who is now determined to consider and practise it? By the grace of God begin today!” 773 WJW, vol. 2, 1760, p. 275 – sermão 50, §III.1 [The use of money]: “Having first gained all you can, and sec- ondly saved all you can, then give all you can.”

774 Charles Wesley, diário, 4 set. 1739: “At four I preached over against the school in Kingswood, to some thou- sands, (colliers chiefly,) and held out the promises, from Isaiah 35: `The wilderness and the solitary place shall be glad for them; and the desert shall rejoice, and blossom as the rose.´ I triumphed in God's mercy to these poor outcasts, (for he hath called them a people who were not a people,) and in the accomplishment of that scripture, "Then the eyes of the blind shall be opened, and the ears of the deaf shall be unstopped; then shall the lame man leap as an hart, and the tongue of the dumb sing; for in the wilderness shall water break out, and streams in the desert." O how gladly do the poor receive the Gospel: We hardly knew how to part.” (grifo deste autor). 775 HNCW, 1745, p. 40 [p. 21 no original]: “The wise men adore / And bring him their store, / The rich are per-

grandes ou pequenos seus próprios eleitos / Regenerados das alturas / Transformados na sua forma gloriosa, / Estampa a Tua imagem em nossos corações / em pureza e amor.”776

Enceramos com mais um exemplo em que Wesley relaciona a falta de eficácia do cris- tianismo da sua época com a atitude criticada anteriormente:

Ó, que Deus possa me capacitar, mais uma vez, antes que eu me vá daqui, e não seja mais visto, a erguer minha voz, como uma trombeta, para aqueles que ganham e economizam tudo que podem, mas não dão tudo que podem! Vocês são os homens, alguns dos principais homens que continuamente a- fligem o Espírito Santo, e em grande medida, interrompem sua influência graciosa quando pousa em nossas assembléias. Muitos de nossos irmãos, amados de Deus, não têm comida para comer; eles não têm vestimenta para colocar; eles não têm um lugar onde deitar a cabeça. E por que eles estão assim desamparados? Porque você, impiedosamente, injustamente, e cruel- mente, detém deles o que o seu Senhor e o Senhor deles hospeda em suas mãos, de propósito, para que você supra as necessidades deles. Veja esse membro pobre de Cristo marcado pela fome, tremendo de frio, quase nu! Enquanto isso, você tem muito dos bens materiais, – para comer, beber e vestir. Em nome de Deus, o que você está fazendo?777

Aqui a graça é novamente relacionada com o amor preferencial ao membro pobre de Cristo. Mais adiante iremos ainda ver, como Wesley relaciona isso com a pobreza de Cristo como exemplo para aqueles que pretendem “andar como Cristo andou”. Acreditamos que es- ses elementos constituem mais “...um perfil convincente de um `Wesley dos pobres´...” do que se projetava 25 anos atrás na vertente libertadora da teologia metodista.778

mitted to follow the poor”.

776 HTCJ , 1767, p. 114: “6. He sanctifies, without respect / Of high and low, his own elect / Regenerate from above, / Into thy glorious form converts, / And stamps thine image on our hearts / In purity and love.”

777 WJW, vol. 4, 1789, p. 91 – sermão 122, §9 [Causes of the inefficacy of Christianity]. “O that God would en- able me once more, before I go hence and am no more seen, to lift up my voice like a trumpet to those who gain and save all they can, but do not give all they can! Ye are the men, some of the chief men, who continually grieve the Holy Spirit of God, and in a great measure stop his gracious influence from descending on our assem- blies. Many of your brethren, beloved of God, have not food to eat; they have not raiment to put on; they have not a place where to lay their head. And why are they thus distressed? Because you impiously, unjustly, and cru- elly detain from them what your Master and theirs lodges in your hands on purpose to supply their wants! See that poor member of Christ, pinched with hunger, shivering with cold, half naked! Meantime you have plenty of this world's goods, of meat, drink, and apparel. In the name of God, what are you doing?”

778 Veja Hugo ASSMANN. Basta a santidade social? Hipóteses de um católico romano sobre a fidelidade meto- dista. Luta pela Vida e Evangelização. Piracicaba / São Paulo: Editora UNIMEP / Edições Paulinas, 1985, p. 198. Assmann resiste, porém, com toda razão às simplificações e à idealização de Wesley a respeito. O nosso es- forço é lembrar das significativas iniciativas feitas sem perder de vista as suas limitações.