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A Religião é um meio de Comunicação

No documento Download/Open (páginas 46-53)

Na defesa desta teoria, nos apoiaremos no artigo Narrar a Deus: a religião como meio de comunicação, publicado na Revista Brasileira de Ciências Sociais em 2009 (p. 9-15), do autor italiano Enzo Pace, sociólogo da religião. Também teremos por base as teorias de Clifford Geertz, embora ele não afirme que a religião seja um meio de comunicação, podemos fazer esta leitura ao lermos o seu livro As interpretações das culturas. Tanto em Pace quanto em Geertz, a religião é entendida como sistema. Pace afirma que a religião é um sistema elaborado de comunicação (PACE, 2009, p. 10); e Geertz, por sua vez, defende a teoria que a religião pode ser entendida como um sistema cultural (GEERTZ, 2015).

Antes de prosseguirmos nesta análise, vemos a necessidade de definirmos brevemente o termo sistema. A palavra provém do latim systema e indica um conjunto de elementos interligados e devidamente ordenados interagindo entre si. Ao considerar a religião como sistema cultural, Geertz sugere que após a segunda guerra mundial o estudo antropológico sobre religião teria estagnado. Parece que os estudiosos desse tema se conformaram com as análises feitas por Durkheim sobre a natureza do sagrado; a metodologia Werstehenden de Weber; o paralelo de Freud entre rituais pessoais e coletivos; e as teorias de Malinowski sobre a diferença entre religião e senso comum. Estes quatro pilares devem ser fundamentos de estudiosos da antropologia da religião, mas o erro estaria em considerá-los os únicos.

Na ampliação das fontes nos estudos acerca da religião, Geertz diz que ele reunirá esforços para que a religião seja estudada e analisada como dimensão cultural:

De qualquer forma, o conceito de cultura ao qual eu me atenho não possui referentes múltiplos nem ambiguidades fora do comum, segundo o que me parece: ele denota um padrão de significados transmitidos historicamente, incorporados em símbolos, um sistema de concepções herdadas expressas em formas simbólicas por meio das quais os homens comunicam, perpetuam e desenvolvem seu conhecimento e suas atividades em relação à vida. É fora de dúvida que termos tais como “significado”, “símbolo” e “concepção” exigem uma explicação. Mas é justamente aí que deve ocorrer o alargamento, o aprofundamento e a expansão. Se Langer está certo em dizer que “o conceito do significado, em todas as suas variedades, é o conceito filosófico dominante de nossa época”, que “os animais, os símbolos, as denotações, as significações, as comunicações... são nossos recursos de capital (intelectual)”, então talvez seja tempo de a antropologia social, em particular a parte que se preocupa com o estudo da religião, tomar conhecimento disso (GEERTZ, 2015, p. 66).

Embora o autor levante este problema com relação ao estudo da religião na esfera da antropologia social, podemos aqui defender a interdisciplinaridade dessa questão, pois o estudo da religião, ainda hoje, é visto com olhares preconceituosos e reducionistas por muitas de nossas academias intelectuais. Entender a religião como sistema cultural amplia o foco, dando credibilidade e seriedade às pesquisas.

Clifford Geertz (2015, p. 66,67), ao tratar do tema do paradigma da interpretação, diz que “os símbolos sagrados funcionam para sintetizar o ethos10

de um povo – o tom, o caráter e a qualidade da sua vida, seu estilo e disposições morais e estéticos”.

A visão de mundo de um povo depende e se origina de sua crença, de sua prática religiosa. A religião, de uma forma ou outra, determina e condiciona o ethos de um grupo. Todos os aspectos da vida giram em torno desse eixo central: que é a visão que se tem do sagrado, do nascer ao morrer. E podemos ir além, até mesmo de antes do nascer e do depois de morrer, a religião constrói uma rede de

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O termo ethos é de origem grega, caracteriza o conjunto de costumes e hábitos fundamentais nas questões do comportamento e também da cultura (valores, ideias e crenças). São as características centrais de um determinado grupo, época ou região.

significados. E o que sinaliza para esse grupo os seus princípios são os símbolos religiosos.

Ao discorrer sobre a sua teoria, Geertz (2015, p. 67) define o que é uma religião. Destacamos abaixo a definição nos mesmos moldes que o autor traça sobre esse tema de suma importância em nossa pesquisa: “Portanto, sem mais cerimônias, uma religião é:

(1) um sistema de símbolos que atua para →

(2) estabelecer poderosas, penetrantes e duradouras disposições e motivações nos homens através da →

(3) formulação de conceitos de uma ordem de existência geral e → (4) vestindo essas concepções com tal aura de fatualidade que → (5) as disposições e motivações parecem singularmente realista.

Em seu texto, após apresentar esta definição de religião, o autor segue afirmando o papel que o “aquilo” considerado sagrado desempenha na construção de nossa identidade social e psicológica (nossa cultura). Os paradigmas estruturais, daquilo que somos enquanto humanos, somente podem ser configurados por meio dos significados que damos à nossa existência e organizamos nossas condutas. Estes “significados” passam necessariamente pelos “símbolos”, sobre isso, Geertz escreve:

Os significados só podem ser “armazenados” através de símbolos: uma cruz, um crescente ou uma serpente de plumas. Tais símbolos religiosos, dramatizados em rituais e relatados em mitos, parecem resumir, de alguma maneira, pelo menos para aqueles que vibram com eles, tudo que se conhece sobre a forma como é o mundo, a qualidade de vida emocional que ele suporta, e a maneira como deve comportar-se quem está nele. Dessa forma, os símbolos sagrados relacionam uma ontologia e uma cosmologia com uma estética e uma moralidade: seu poder peculiar provém de sua suposta capacidade de identificar o fato com o valor no seu nível mais fundamental, de dar sentido normativo abrangente àquilo que, de outra forma, seria apenas real. O número desses símbolos sintetizadores é limitado em qualquer cultura e, embora em teoria se possa pensar que um povo poderia construir todo um sistema autônomo de valores, independente de qualquer referente metafísico, uma ética sem ontologia, na verdade ainda não encontramos tal povo (GEERTZ, 2015, p. 94).

Entender o ser humano como ser simbolizante, criador de conceitos e desejoso de significados, abre perspectivas amplas para os estudos com temáticas relacionadas ao universo religioso. A religião é um sistema cultural, formadora ou influenciadora do ethos de um povo.

Depois de percebermos, com a ajuda das ideias do antropólogo Clifford Geertz, de que a religião está dentro do escopo da cultura, partiremos para um entendimento de que a religião é também um sistema ordenado de comunicação, com base nas teorias de Enzo Pace.

No artigo científico em que Pace defende a teoria de que a religião é comunicação, o autor apresenta a metodologia por ele empregada em seu estudo. Com base no método de análise utilizado por Talad Asad para comparar o Islamismo e o Cristianismo, chamado de método genealógico, Pace desenvolve o seu pensamento.

O método da genealogia estuda as teias genealógicas de uma família ou de um grupo de famílias unidas por um determinante comum (o parentesco). Nesta metodologia, as religiões mundiais podem ser estudadas e analisadas como “famílias genealógicas”, pois todas elas estariam interligadas em uma relação que poderíamos chamar de “parentesco espiritual”. Os complexos sistemas de símbolos são a base deste “parentesco” que perpassam as diferentes religiões:

[...] interessa-nos analisar a relação entre a virtude da improvisação que, muitas vezes, está na origem de uma religião, e a construção dos sistemas de crença religiosa. O primeiro relaciona-se com o poder de comunicação, o segundo com a constituição e reprodução no tempo e no espaço de um sistema de sentido (PACE, 2009, p. 10).

Dessa forma, o interesse do autor é desenvolver a teoria de que a religião é como um processo de comunicação. Pace explica a razão desse estudo, a religião ao ser considerada como processo de comunicação acaba sendo preservada de “armadilhas conceituais recorrentes”.

São apresentadas pelo autor três armadilhas comuns, sobretudo no estudo acadêmico das religiões. Entendendo a religião como comunicação, evitaríamos as seguintes armadilhas:

a) A superação da dicotomia modernidade e tradição, sendo considerada como meio de comunicação, não poderíamos fazer um juízo superficial das diferentes formas de crer. Muitas vezes, a comunicação é entendida como mercado de comunicação, justamente é dessa ideia que devemos fugir.

Ao pensarmos a religião como sistema de comunicação deveríamos ter a convicção de que:

comunicar, referindo-se aos sistemas de crença religiosa, remete a um princípio estrutural de funcionamento dos próprios sistemas: combinar elementos ou partes que compõem o universo dos significados que uma religião elabora a partir da fundação e que desenvolve no decorrer do tempo (PACE, 2009, p. 10).

b) Evitar a simples decomposição da religião em suas diferentes dimensões.

Ao se estudar a religião analiticamente na busca de uma padronização empírica, na maioria dos casos, realizamos a pesquisa dentro de uma lamentável superficialidade.

Se a estrutura da religião está denominada pela pura palavra capaz de fixar ou remover os limites simbólicos dos universos de sentidos dos indivíduos e dos grupos sociais, então se trata de estudar como atua a força da palavra, segundo as condições sociais e históricas em que uma ou mais religiões devem ser observadas (PACE, 2009, p. 10).

c) Evitar dicotomias como primitivo e evoluído, simples e complexo.

Sendo a religião um sistema de comunicação, ela não poderia ser definida como essencialista11, uma vez que a essência mesma da religião não pode ser definida, mesmo que se tente. As denominações religiosas fariam parte da dimensão espiritual presente em todos os seres humanos. Distanciaríamo-nos assim, do “verdadeiro” e “falso”, perigo constante de julgamentos e discriminações (mesmo e, sobretudo, no campo acadêmico). Mais do que estabelecer comparações,

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Na corrente do essencialismo filosófico, a essência seria o que existiria de real, considerando o restante como ilusório, ou até mesmo irreal.

precisamos buscar a raiz dorsal das crenças. O sistema comunicacional está presente em todas as manifestações religiosas.

Enzo Pace (2009) utiliza a alegoria do compasso para descrever o percurso histórico de uma religião, elas partiriam de um ponto central (gerador), e conforme vão se abrindo em círculos concêntricos acabam se moldando e inculturando no tempo e no espaço. Este modelo teórico de entendimento da religião como sistema de comunicação permitirá “encontrar afinidades eletivas entre distintos universos de crença religiosa com respeito ao fundamento temático de partida: a relação entre o incipit de uma religião e sua sucessiva constituição como um sistema”.

Nas conclusões de seu artigo, Pace apresenta de forma sucinta quatro pontos pertinentes que poderiam condensar a sua hipótese teórica, dentro dessa definição de religião como sistema de crença que está em interação com um ambiente específico desde a sua origem. Reproduziremos esses conceitos:

a) obriga o observador (cientista social) a considerar como objeto fundamental da análise a relação entre o impulso originário à formação de um novo credo religioso e o processo de construção do próprio sistema de crença;

b) obriga-o, também, a ter sob controle essa relação para compreender de maneira dinâmica se (e de que maneira) um sistema está em condições de se desenvolver segundo determinado tipo de relativa autonomia interna, para afirmar a própria identidade ou para marcar a diferença em relação a outros sistemas de crença;

c) desse modo, se assume como noção principal a centralidade do conceito de comunicação, tal como se define na teoria dos sistemas, para analisar a religião como poder de comunicação;

d) observando a validade explicativa em alguma direção (não em todas, por razões óbvias de espaço e das limitadas competências de quem escreve): a relação entre palavra e texto (sagrado), a força performática do ritual ou da liturgia, a elaboração de uma doutrina

concreta, que toma corpo (disciplinando também os corpos e as

emoções do corpo), enfim, a oscilação entre identificação étnica e pretensão universalista, que parece caracterizar as religiões em seu processo evolutivo em relação aos diferentes ambientes sociais nos quais se situam como ordenadores culturais dominantes (PACE, 2009, p. 13-14).

Embora as variadas denominações religiosas busquem formas de se diferenciar uma das outras no desejo de conquista de credibilidade e veracidade daquilo que é pregado, sabemos que o véu que cobre todas elas encontram sentido

em uma inquietação humana. Podemos chamar essa inquietação de uma espécie de “orfandade espiritual”.

Neste ímpeto de dar respostas aos mistérios da vida e da morte, nasce com a própria consciência humana a relação metafísica com uma “força” superior que conduz, protege e vela as nossas existências.

A religião é comunicação, pois ela não está fora do ser humano. Sendo o ser humano comunicação por natureza, é também por sua natureza que ele busque tocar o sagrado por meio dos gestos, símbolos, palavras, ritos, etc.

Desde as primeiras manifestações religiosas (registradas materialmente) por nossos antepassados, os símbolos são a forma de diálogo com aquilo que se entendia como transcendente, ou seja, desde as nossas origens a comunicação e a religião se completam.

Repetimos a máxima de Mircea Eliade (2010, p. 13) “tornar-se um homem significa ser “religioso”. Este pensamento está em plena sintonia com os dizeres do antropólogo Juvenal Arduini (1989, p. 50): “A religião não é ornamento cultural. É real dimensão do existir e do agir humanos. [...] A onipresença religiosa nas culturas das diversas sociedades está a dizer que o homem insiste em transcender-se, teima em ser-mais”.

Genealogicamente somos iguais enquanto espécie, com tudo o que isso possa representar. O ser humano é cultura, é comunicação (simbólico) e é religião, e são essas características, sem dicotomias, que tornam o homem – homem.

Com este entendimento, podemos adentrar mais especificamente em nosso objeto de pesquisa - os ex-votos - que são manifestações humanas (com toda fragilidade e desejo de superação que isso implica); são veículos de comunicação com as divindades, mas também com os de sua comunidade; são simbólicos em essência; e religiosos de forma ontológica.

Comunicar-se com o sagrado por meio do ex-voto está na gênese do existir humano, enquanto consciente de si.

CAPÍTULO II

EX-VOTO: COMUNICAÇÃO DE INTIMIDADE COM AS DIVINDADES

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