• Nenhum resultado encontrado

Ex-votos nas origens das práticas religiosas

No documento Download/Open (páginas 59-63)

É praticamente impossível determinarmos o aparecimento dos ex-votos como prática religiosa, sabemos, contudo, que não há uma separação entre uma coisa e outra, pois as manifestações religiosas, segundo dados antropológicos, contemplavam uma possível troca de agrados, entre o humano e divindade cultuada.

Este fenômeno não foi exclusivo de uma religião ou uma região do planeta, mas constata-se que as religiões ou as espiritualidades, desde sempre e em todos os lugares, foram marcadas fortemente por este diálogo de retribuição de duas vias. O divino retribui o ser humano com graças; e o ser humano, por sua vez, retribui o

12

Sobre a teoria da Folkcomunicação criada por Luiz Beltrão e a importância dos ex-votos nestes estudos, daremos destaque no quarto e último capítulo.

sagrado com oferendas. Muito embora defendamos a ideia de que os ex-votos estejam na essência de toda prática religiosa desde a sua origem, precisamos datar algumas manifestações devocionais que não só aproximam uma coisa e outra, mas provam que são inseparáveis.

A simbiose entre a crença e a oferenda pode ser verificada de forma científica no período pré-histórico:

Os rituais de fertilidade da terra, na qual os aspectos mágicos da religião se sobressaem, de modo especial no período do Paleolítico Superior (entre os anos 35.000 – 10.000 a.C.), reforça a relação dos habitantes dessa época com o ciclo reprodutivo da terra. Escavações arqueológicas em algumas regiões da Europa encontraram objetos que constatam uma evolução no manejo da agricultura e da relação dos indivíduos com a natureza, são inúmeros anzóis rudimentares, como também instrumentos de aragem da terra e machados manuais. Durante esse período o ser humano é reconhecido pelos cientistas como Homo Sapiens, talvez por isso a relação com a natureza esteja marcada de rituais mágicos com base no agrário e no entendimento da terra como “deusa-mãe”, levando, assim, as práticas de agradecimento ao ciclo (morte-vida) da vegetação, com oferendas de exemplares dos frutos colhidos. Essas oferendas representam, ainda que de forma primitiva, os ex-votos (GOMES GORDO, 2015, p. 34,35).

Ainda dentro do período compreendido como pré-história, mas agora focando no mesolítico, que seria a transição entre o paleolítico (idade antiga da pedra) e o neolítico (idade nova da pedra) – período esse que compreende os anos de 10.000 – 5.000 a.C., temos os estudos do antropólogo A. Rust que, em várias de suas descobertas, encontrou vestígios contundentes sobre a relação do homem pré- histórico com as divindades por meio das oferendas. Mircea Eliade, sobre os estudos de Rust, escreve:

O lago de Stellmoor era provavelmente tido como “lugar sagrado” pelos caçadores mesolíticos. Rust recolheu na jazida numerosos objetos: flechas de madeira, ferramentas de osso, machados talhados em galhadas de renas. É muito provável que eles representem oferendas, como acontece com os objetos da Idade do Bronze e da Idade do Ferro encontrados em alguns lagos e lagoas da Europa ocidental. Sem dúvida, mas de cinco milênios separam os dois grupos de objetos, mas a continuidade desse tipo de prática religiosa é inquestionável (ELIADE, 2010, p. 41,42).

Eliade, com base nos estudos de Rust, destaca algo que nos parece fundamental em nosso estudo, a prática disseminada da oferenda nas

manifestações religiosas da antiguidade. Mircea Eliade (2010, p. 42, grifo nosso), ao continuar seu raciocínio, destaca algo que para nosso estudo é fundamental: “Na fonte chamada Saint-Sauveur (floresta de Compiègne) foram encontrados objetos de sílex da época neolítica (quebrados intencionalmente como sinal de ex-voto)”.

As oferendas aos deuses, no período pré-histórico, são de grande variedade, desde instrumentos de caças; partes da caça oferecidas como sacrifício; sementes e frutos em agradecimento à colheita; bonecos (de argila) em formato de animais ou mesmo no formato humano. Os bonecos em formato humano, oferecidos em santuários de diferentes partes do mundo, seriam uma espécie de “duplo orante”, ou seja, como que uma extensão do devoto. A sua imagem, representada no boneco, estava em oração constante e perpétua diante da divindade. Podemos constatar a presença dessa simbologia do “duplo orante” em manifestações religiosas da Europa, Ásia e América. O “duplo orante” funcionaria, em termos práticos, como um ex-voto, era tanto um agradecimento (perpétuo), como também um pedido de proteção por toda vida.

Na América do Sul, em comunidades pré-colombianas, era muito comum nos rituais religiosos oferecer os bonecos (representações humanas) como oferenda aos deuses cultuados. O mais curioso dessa tradição latino-americana é que os bonecos eram ocos, e dentro deles eram ofertados uma série de dádivas para as divindades, como sementes, presentes, mechas de cabelos e pequenos objetos considerados valiosos.

Na região que hoje é a Colômbia, entre os muitos povos que viviam nestas localidades em diferentes partes da história, destacamos a cultura “Muisca” da Cordilheira Oriental – de aproximadamente 5000 a.C., os duplos orantes eram oferecidos em templos, nos caminhos considerados sagrados, na beira das plantações, nos lagos. O intuito era assegurar os bens já existentes, propiciar a fertilidade e a saúde.

Figura 5 - Exemplo de “duplo orante” pré-colombiano – Museo de La Plata (Argentina)

Fonte: Arquivo do autor

Maria Augusta Machado da Silva, pesquisadora e museóloga, destaca os primeiros objetos que, segundo ela, representam uma linguagem individual entre os seres humanos e os deuses. Estes objetos são sumerianos13, ela escreve também sobre o papel do duplo orante. Vemos nesta descrição uma similaridade muito grande com os ex-votos:

Os primeiros objetos que testemunham o relacionamento individualizado entre homens e deuses situam-se na faixa de 2.800 a.C. São sumerianos e eram depositados nos templos, onde exerciam a função de “duplos-orantes” em permanente adoração aos deuses. Às inúmeras estatuetas votivas juntaram-se os numerosíssimos amuletos, configurando duas modalidades votivas. O “duplo-orante” atrairia a proteção dos deuses propiciados pela oração perpétua. O amuleto, impregnado com a sacralidade dos deuses, projetaria para fora do espaço sagrado e sobre o seu portador a proteção invocada. Em síntese: a essência do ofertante, impregnada no objeto mimético, caracterizava a primeira modalidade;

13

A Suméria é considerada por muitos pesquisadores como a civilização mais antiga da humanidade, ficava na região da Mesopotâmia. Sua principal cidade era Ur, inclusive citada no livro do Gênese do Antigo Testamento bíblico: 11,28; 11,31; 15,7.

e a essência da divindade, impregnada no amuleto, tipificava a segunda (SILVA, 1981, p. 21).

Os sumérios eram politeístas, assim como quase todas as formas de crenças antes do judaísmo. Um mesmo povo cultuava uma grande diversidade de deuses, muitos desses deuses tinham um caráter funcional, cada um atendia um aspecto da vida, ou uma necessidade.

Veremos, a seguir, algumas religiões antigas, o relacionamento comunicacional que esses devotos estabeleciam com o sagrado, sobretudo por meio do ex-voto.

No documento Download/Open (páginas 59-63)