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O Ser Humano é Espiritual

No documento Download/Open (páginas 35-41)

São várias as possibilidades de reflexão do homem primitivo, que o levaram no decorrer da história a desenvolver o seu lado espiritual, o fato de o ser humano poder pensar e ter memória acumulativa, fez com que ele se questionasse sobre sua própria existência.

Dizemos que o ser humano é espiritual, quando julgamos, que em sua maioria, o gênero humano acredita que a vida não é só matéria, mas existe uma força maior que organiza ou rege a existência. A palavra espírito tem sua origem do grego (ruah) que significa hálito, ou sopro, sendo assim, o sopro de Deus que habita no ser humano e, é esse sopro, segundo a tradição judaico-cristã, que dá vida ao homem. O ser humano é espiritual, pois ele pensa e age, com este princípio, de que algo “maior” do que somos impulsionaria o nosso viver.

Mas, dentre os aspectos da vida, o que sem dúvida nenhuma mais nos inquieta e indubitavelmente inquietava também nossos antepassados primitivos, é a

certeza da morte. Tomar consciência da morte pode levar o ser humano a um poço sem sentido, a um viver desorientado, mas pode também dar um novo propósito ao seu viver. A palavra que, talvez, expresse esse sentido seja transcendência: o desejo de que a morte não acabe como um sonho. A consciência da morte foi o eixo central de o ser humano buscar o imaterial.

O antropólogo Lévi-Strauss, em seu livro Tristes Trópicos, deixa claro o respeito que todos os povos demonstram aos seus mortos, inclusive, desde remotas eras: “Não existe provavelmente nenhuma sociedade que não trate seus mortos com consideração. Nas próprias fronteiras da espécie, o homem Neandertal enterrava também os seus defuntos em túmulos sumariamente arrumados” (LÉVI-STRAUSS, 1957, p. 243). Já o filósofo e antropólogo Juvenal Arduini descreve o anseio do ser humano de todos os tempos de significar o morrer:

Não parece que o homem tenha de curvar-se perante a fragilidade, como se a morte fosse a última e culminante palavra da existência humana. Transcender a morte é atitude arraigada na cultura dos povos. As maneiras de expressar essa transcendência são múltiplas. Mas a crença de que o homem, de um modo ou de outro, continua a viver – sobreviver – após a morte, é fato universal testemunhado pela filosofia, pela antropologia cultural e pelas religiões. A humanidade abriga contido anseio de prolongar após a cessação da vida presente. Raramente o homem admite que o nada total prevalece após a morte. Esta aspiração não gera, por si, a certeza da vida trans-história, mas é indício de que o ser humano busca, irresistivelmente, perseverar na vida, após a atual fase existencial. Pelo menos enquanto aspiração, é fato que não se pode ignorar ou apagar. O homem de todos os lugares e de todos os tempos, experimenta a indormida pulsão para sobreviver (ARDUINI, 1989, p. 42).

Arduini diz que transcender a morte é uma atitude arraigada em todos os povos, por essa razão não é difícil explicar tantos rituais ancestrais de passagem (vida – morte – vida) ainda presentes nos nossos dias. Fato é que a tomada de consciência da finitude humana fez com que buscássemos formas de perpetuação.

No campo dos estudos da história das religiões ou das manifestações religiosas, o historiador Mircea Eliade aparece como uma referência fundamental, sobretudo nos três volumes de História das crenças e ideias religiosas. No primeiro volume, o autor trabalha os períodos históricos compreendidos da idade da pedra aos mistérios de Elêusis, citamos este volume, pois será a base deste levantamento

histórico do ser humano relacionado à religião. No primeiro capítulo de seu livro, Eliade destaca alguns elementos mágico-religiosos dos Paleantropídios, dentre as manifestações do homem primitivo com relação à religião, o autor destaca a significação simbólica das sepulturas.

Os mais antigos e numerosos “documentos” encontrados são, sem dúvida, as ossadas. As sepulturas, segundo o autor Eliade (2010, p. 22-23), surgiram com certeza a partir do musteriano (70.000 – 50.000 anos atrás). A crença em uma vida post mortem, destaca Eliade, pode ser demonstrada desde os tempos mais remotos, uma prova disso seria a utilização da ocra vermelha, substituto ritual do sangue e, portanto, “símbolo” da vida. Encontramos vestígios da prática desse ritual desde Chu-ku-tien até a costa da Europa Ocidental, além da África, Austrália, Tasmânia e na América.

Mircea Eliade faleceu em 1986, o original do livro que citamos foi publicado na França, em 1976. A ciência arqueológica é muito dinâmica, sendo atualizada constantemente com novas descobertas. Eliade apontou as primeiras sepulturas datadas de (70.000 a.C.), porém uma descoberta mais recente indica que a construção de túmulos é ainda posterior a este período.

O Jornal impresso Hoy de 20/07/2012 publicou uma matéria assinada por JJesús Bombin, intitulada Atapuerca8 esconde o “santuário” mais antigo da Humanidade (tradução nossa). “A equipe de investigadores que trabalha na serra burgalesa de Atapuerca achou na estância de verão restos da espécie Homo Heidelbergensis (300.000 – 500.000 anos) que reforça a teoria de a Sima dos Ossos foi o primeiro cemitério da humanidade.” (BOMBIN, 2012, tradução nossa).

Como diz a chamada da matéria, os pesquisadores9 se permitem a chamar esta localidade espanhola conhecida como Sima de los Huesos como um santuário, não há como dissociar a palavra “santuário” de um ritual religioso, é justamente essa a intenção dos arqueólogos que pesquisam este sítio:

Ao encontrar a falange de um menino neste sítio foi reforçada a teoria que defendiam os investigadores que Sima de los Huesos

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A Serra de Atapuerca é um pequeno conjunto montanhoso na província de Burgos (Castilla e León). É considerado como um dos mais importantes sítios arqueológicos da atualidade.

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Antropólogos citados na matéria: Juan Luis Arsuaga, Eudalt Carbonell e José Maria Bermudez, coordenadores das escavações.

abrigava um “santuário” em que se realizariam rituais funerários. ‘Se trata do primeiro ‘santuário’ da humanidade’, explicou Arsuaga argumentando que não existem restos em toda Eurásia deste calibre. ‘É a prova mais antiga de um comportamento funerário e de uma acumulação coletiva’ (BOMBIN, 2012, tradução nossa).

Ou seja, pesquisas recentes reforçam a ideia religiosa como um desejo do ser humano de vencer a morte. Não fariam sentido os rituais funerários se o homem primitivo não aspirasse à vida pós-morte. Eliade defende que, além das sepulturas, as oferendas que se faziam aos mortos remetem aos fortes indícios de religiosidade: Em suma, pode-se concluir que as sepulturas confirmam a crença na imortalidade (já assinalada pela utilização da ocra vermelha) e trazem alguns esclarecimentos suplementares: enterros orientados para o leste, marcando a intenção de tornar o destino da alma solidário com o curso do Sol, portanto a esperança de um “renascimento”, isto é, de uma pós-existência num outro mundo; crendo na continuação da atividade específica; certos ritos funerários, indicados pelas oferendas de objetos e adornos e restos de refeições (ELIADE, 2010, p. 24).

O tema das oferendas aos mortos incide diretamente sobre o nosso estudo dos ex-votos, pois nos apontam a certeza de uma relação comunicacional existente entre os vivos com seus mortos, e com as forças transcendentes que regem a vida. O morto recebia como oferenda os seus pertences, sinalizando que os povos primitivos acreditavam que ele em algum lugar continuaria suas atividades. Além destes objetos, os adornos seriam o “agradar” ao morto, bem como os alimentos depositados.

Estes vestígios pré-históricos ainda hoje estão presentes em práticas votivas que giram em torno de pessoas falecidas. Os nossos cemitérios atuais, em grandes ou pequenas cidades, estão repletos de túmulos que recebem oferendas do mesmo gênero. Sobre este tema, falaremos mais adiante, pois incide diretamente em o nosso objeto de pesquisa, o ex-voto.

Na defesa de que o ser humano é religioso desde a sua origem, podemos citar uma entrevista publicada no site do Vatican Insider (07/01/2012) com o sacerdote belga Julien Ries, que foi por muito tempo professor na Universidade Católica de Leuven, sendo também o fundador de um novo campo do saber, a

antropologia religiosa fundamental. Destacamos, a seguir, duas perguntas dessa entrevista elaborada pelo Vatican e as respostas de Ries:

O senhor chega à púrpura depois de uma vida de pesquisa: foi um dos primeiros a insistir sobre a dimensão religiosa como originária no ser humano. O sentido religioso é realmente inato? Estou muito de acordo com o paleontólogo Yves Coppens, o descobridor de Lucy, que há anos repete que o ser humano é desde já um homem religioso.

Como se documenta essa afirmação?

Consideremos esse ser humano religioso como o conhecemos através dos fatos e dos gestos da história: se analisarmos as suas pinturas encontradas em centenas de cavernas, até agora descobertas, suas milhares de gravuras rupestres, se examinarmos o seu comportamento com relação aos falecidos, se tentarmos interpretar os gestos das suas mãos elevadas à cúpula celeste – o "Ka" dos antigos egípcios –, somos obrigados a pensar em uma experiência de relação vivida de forma consciente pelo ser humano arcaico com a realidade misteriosa e ultraterrena (RIES, 2012, tradução nossa).

Julien Ries também defende que a relação de nossos antepassados longínquos com a morte ou com os falecidos é um forte indício do homo religiosus. Além do culto nos funerais pré-históricos, ele destaca outros elementos culturais descobertos pela arqueologia, como manifestações religiosas concretas presentes na gênese do ser humano: as pinturas em centenas de cavernas, espalhadas em várias partes do mundo; gravuras rupestres, etc.

Esta teoria também é defendida por Mircea Eliade, com relação às pinturas rupestres. Ele diz que o fato de essas pinturas estarem longe da entrada das cavernas permitiu que os pesquisadores concluíssem que essas grutas eram uma espécie de santuário. O que reforça ainda mais essa teoria é o motivo de essas grutas não serem habitadas, funcionando como um espaço místico, de caráter numinoso (ELIADE, 2010, p. 29).

Outro fato curioso é que na representação simbólica da caverna, no imaginário do homem pré-histórico, a gruta era uma espécie de útero da terra, sendo este local considerado a fonte da vida. Espaço em que os nossos antepassados faziam grande parte de seus cultos, ornamentando com pinturas ou oferendas o “santuário”.

Muitos povos sepultavam os seus mortos justamente nessas grutas, simbolizando que o corpo/semente era “plantado” novamente no útero/ventre da terra (MARQUETTI; FUNARI, 2011, p. 162). Outra manifestação cultural que remete aos aspectos religiosos seriam as danças circulares. Encontramos evidências dessa prática em diferentes partes do mundo, a saber: Eurásia, Europa oriental, Melanésia e entre os índios do continente americano. Vale um destaque que a maioria das tribos indígenas do Brasil, ainda hoje em seus rituais religiosos, fazem da dança circular o apogeu de suas liturgias.

A presença da dança circular em culturas arcaicas contemporâneas é uma manifestação clara da persistência dos ritos e crenças pré-históricos (ELIADE, 2010, p. 36). A dança em círculos seria um ritual dos caçadores primitivos para acalmar a alma do animal abatido, bem como para multiplicar as caças. Funcionaria também como uma espécie “solidariedade mística”. Neste momento fazemos um destaque para a teoria de que, conforme a linguagem foi sendo aperfeiçoada, também foram sendo aprimorados os rituais religiosos, que incidem diretamente sobre o nosso trabalho de aproximação da religião com a comunicação.

Mirceia Eliade, em seu livro História das crenças e das ideias religiosas (I), conclui o primeiro capítulo intitulado “No começo... Comportamentos mágico- religiosos dos paleantropídios”, com dois parágrafos que nos parecem imprescindíveis:

À proporção que se aperfeiçoava, a linguagem aumentava seus meios mágico-religiosos. A palavra pronunciada desencadeava uma força difícil se não impossível, de anular. Crenças similares ainda sobrevivem em várias culturas primitivas e populares. São encontradas também na função ritual das fórmulas mágicas do panegírico, da sátira, da execração e do anátema nas sociedades mais complexas. A experiência exaltante da palavra como força mágico-religiosa conduziu às vezes à certeza de que a linguagem é capaz de assegurar os resultados obtidos pela ação ritual. Concluindo, temos também que levar em conta a diferença entre os diversos tipos de personalidade. Certo caçador destacava-se por suas proezas ou pela astúcia; outro pela intensidade de seus transes extáticos. Essas diferenças caracterológicas implicam uma certa variedade na valorização e interpretação das experiências religiosas. No final, apesar das poucas ideias fundamentais comuns, a herança religiosa do paleolítico já apresentava uma configuração religiosa bastante complexa (ELIADE, 2010, p. 38).

Existe, de fato, uma ligação profunda entre a comunicação e a religião. Como vimos até aqui, tanto os aspectos religiosos quanto os comunicacionais estariam na essência do ser humano. Não diríamos que a linguagem levou a um maior desenvolvimento da relação do homem com o sagrado, nem que esta ligação espiritual tenha favorecido ao aprimoramento da linguagem. Acreditamos que não existem dicotomias entre uma coisa ou outra. Na integralidade ontológica, que é o ser humano, a sua evolução foi em sua totalidade e não parcial.

No documento Download/Open (páginas 35-41)