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A repercussão da concepção e da instituição família na e a partir da

A Constituição de 1988 não adjetivou a família, mas lhe dedicou tratamento constitucional mais extensivo, uma vez que expandiu os efeitos jurídicos da família legítima para além da família matrimonial, mudando os contornos da família objeto da proteção constitucional e aceitando novos modelos familiares.

A dignidade da pessoa humana é o epicentro das normas constitucionais, o sustentáculo dos direitos fundamentais e a base dos direitos de personalidade. A pessoa, compreendida na lógica kantiana como um fim em si mesmo, dotada de dignidade e não de preço, passa a ser o centro das instituições e não mera peça de sua composição (Menezes, 2008). Sendo o Brasil um estado laico, que consagra o pluralismo, o respeito à diversidade e a autonomia da pessoa, não é coerente que se estabeleçam modelos ideais de família, excluindo outros já existentes no cenário social, já que uma vez reconhecida a autonomia da pessoa humana através da preservação e observação de sua dignidade pessoal na formação da sua família e na natureza sócio-cultural desta, o ordenamento jurídico deverá reconhecer-lhes independentemente da conformação dessa estrutura familiar.

Assim, identificando a extensão do conceito de família na Constituição Brasileira de 1988, percebe-se que o instituto vem transitando da perspectiva da instituição para a perspectiva da pessoa. O centro da família se firma na pessoa, na figura do membro, momento em que a organização familiar revela a sua função humanizante, cujo motor propulsor é o afeto e a solidariedade. O direito de personalidade à autodeterminação ético-existencial do sujeito também não pode ceder a um modelo único de estrutura familiar, haja vista que é permitido ao cidadão o seu próprio planejamento familiar. Não cabe ao Estado dirigir a conduta do cidadão para este ou aquele modelo familiar, pois esta decisão envolve aspectos de sua autonomia ético-existencial (Menezes, 2008).

.A Constituição de 1988 foi um marco normativo que possibilitou a ampliação do conceito de família, porém o Código Civil não acompanhou o avanço que o texto constitucional, construindo uma regulamentação presa a um viés ideológico matrimonialista, sem atentar para os demais modelos de família. Quando o texto constitucional ressalta a proteção do Estado para a família e admite a existência de união estável como entidade familiar, ressalta Menezes (2008) que

haveria de dedicar a este arranjo familiar proteção equivalente à deferida à família matrimonial, a família homoafetiva sequer foi mencionada e, no entanto, constitui um modelo de família que, no cotejo dos princípios constitucionais, seria justificável.

O epicentro da Constituição de 1988 é a dignidade da pessoa humana, substrato essencial dos direitos fundamentais. Desta forma, a pessoa ganha notável destaque na atuação do Estado e na conformação das instituições, em geral. A família, instituição secular de forte matiz religiosa, assume feição laica e função instrumental em face do desenvolvimento da pessoa. Deixa de ter um fim em si mesmo, para se conformar como instituição de apoio e amparo à pessoa de seus membros, garantindo-lhe o livre desenvolvimento da personalidade. A família migra, de acordo com Menezes (2008) de uma estrutura fechada para delinear-se como comunidade de afeto, evitando adjetivações e exclusões, de modo a comportar-se numa dimensão plural. O texto constitucional, sem adjetivar a família, apenas garante-lhe proteção do Estado, por reconhecer a sua natureza cultural e a sua importância no desenvolvimento da personalidade da pessoa e na proteção da pessoa.

A família corresponde a um núcleo social primário é disciplinado constitucionalmente em capítulo específico, no Título da Ordem Social e em alguns dispositivos esparsos. A proteção deferida à família pelo Estado se funda na importância que este grupo social desenvolve na formação psicossocial do indivíduo. É na família que a pessoa recebe as primeiras orientações para a vida coletiva e é neste organismo que os atos de solidariedade e de ajuda mútua acontecem mais recorrentemente. Não sem razão, a família tem deveres constitucionais, como o de assegurar às crianças a sociabilidade, a educação básica e a saúde, bem como o de proteção e cuidado com a pessoa do idoso.

O caput do art. 226 dispõe que a família é base da sociedade, e por assim ser, necessita de especial proteção do Estado. Nos parágrafos que se seguem ao caput, há referências a modelos específicos de família: os parágrafos primeiro, segundo e sexto, fazem alusão ao casamento; o parágrafo terceiro anuncia o reconhecimento da união estável entre homem e mulher como entidade familiar e o parágrafo quarto dispõe sobre a família monoparental, formada por um dos pais e seus descendentes, conforme transcrito

Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado. § 1º - O casamento é civil e gratuita a celebração.

§ 2º - O casamento religioso tem efeito civil, nos termos da lei.

§ 3º - Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento.

§ 4º - Entende-se, também, como entidade familiar a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes.

§ 5º - Os direitos e deveres referentes à sociedade conjugal são exercidos igualmente pelo homem e pela mulher.

§ 6º O casamento civil pode ser dissolvido pelo divórcio.

§ 7º - Fundado nos princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável, o planejamento familiar é livre decisão do casal, competindo ao Estado propiciar recursos educacionais e científicos para o exercício desse direito, vedada qualquer forma coercitiva por parte de instituições oficiais ou privadas.

§ 8º - O Estado assegurará a assistência à família na pessoa de cada um dos que a integram, criando mecanismos para coibir a violência no âmbito de suas relações. (BRASIL, 2013)

Dessa forma, considerando o foco do direito das famílias na pessoa humana, bem como a indiscutível incidência dos direitos fundamentais, a todos também é deferido o livre planejamento familiar. Não se pode, portanto, pretender uma interpretação restritiva da família mencionada na Constituição, aos modelos previstos nos parágrafos do referido artigo do texto constitucional. A família é uma experiência cultural formada pelos sujeitos em sua individualidade, e de acordo com mudanças históricas já referidas no presente trabalho, a família contemporânea apresenta uma pluralidade de modelos, o que envolve a família anaparental, homoafetiva, eudemonista e tantas outras.

Anteriormente à Constituição Federal de 1988, apenas a família matrimonial tinha o reconhecimento e a proteção do Estado. Embora as demais organizações familiares não tivessem existência jurídica, palpitavam na vida social, sendo alvo da discriminação e da negação da religião e do Estado. No plano social, a organização da família e a sua própria essência sofreram alterações, mantendo, contudo, a sua importância na formação da pessoa.

Ressalta-se, mais uma vez, que o nosso Estado Democrático de Direito tem como fundamento a dignidade da pessoa humana, trata-se daquilo que se denomina princípio máximo, portanto, não há ramo do direito em que a dignidade da pessoa humana tenha mais atuação do que o Direito de Família. De qualquer modo, por certo é difícil a denominação do que seja o princípio da dignidade da pessoa humana. Reconhecendo a submissão de outros preceitos constitucionais à dignidade humana, Sarlet (2005) conceitua o princípio em questão como o reduto intangível de cada indivíduo e, neste sentido, a última fronteira contra quaisquer

ingerências externas. Tal não significa, contudo, a impossibilidade de que se estabeleçam restrições aos direitos e garantias fundamentais, mas que as restrições efetivadas não ultrapassem o limite intangível imposto pela dignidade da pessoa humana. Pode-se afirmar que o princípio da dignidade humana é o ponto de partida do novo Direito de Família brasileiro.

Por outro lado a solidariedade social é reconhecida como objetivo fundamental da República Federativa do Brasil pelo art. 3º, inc. I, da Constituição Federal de 1988, no sentido de buscar a construção de uma sociedade livre, justa e solidária.

Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: I - construir uma sociedade livre, justa e solidária; (BRASIL, 2013)

Esse princípio acaba repercutindo nas relações familiares, já que a solidariedade deve existir nesses relacionamentos pessoais. Vale salientar que a solidariedade não é só patrimonial, é afetiva e psicológica. O princípio da solidariedade familiar também implica respeito e consideração mútuos em relação aos membros da família.

Prevê o art. 227, § 6º, da Constituição Federal que os filhos, havidos ou não da relação de casamento, ou por adoção terão os mesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação.

Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.

§ 6º - Os filhos, havidos ou não da relação do casamento, ou por adoção, terão os mesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação. (BRASIL, 2013)

Tal dispositivo regulamenta especificamente a isonomia constitucional de modo que, juridicamente, todos os filhos são iguais, havidos ou não durante o casamento. Essa igualdade abrange também os filhos adotivos e aqueles havidos por inseminação. Diante disso, não se pode mais utilizar as expressões filho adulterino ou bastardo, as quais são discriminatórias (Oliveira, 2002).

Assim como há igualdade entre filhos, a Constituição Federal reconhece a igualdade entre homens e mulheres no que se refere à sociedade conjugal formada

pelo casamento ou pela união estável, conforme o art. 226, §§ 3º e 5º, da CF/88. Como decorrência lógica do princípio da igualdade entre cônjuges e companheiros, temos o princípio da igualdade na chefia familiar, que deve ser exercida tanto pelo homem quanto pela mulher em um regime democrático de colaboração, podendo, inclusive, os filhos opinarem. Nesse sentido, Tartuce coloca que

Assim sendo, pode-se utilizar a expressão despatriarcalização do Direito de Família, já que a figura paterna não exerce o poder de dominação do passado. O regime é de companheirismo ou colaboração, não de hierarquia, desaparecendo a figura do pai de família (patter famílias), não podendo ser utilizada a expressão pátrio poder, substituída, na pratica, por poder familiar. (TARTUCE, 2008, p. 44)

Por outro lado, conforme anteriormente transcrito, prevê o art. 227, caput, da Constituição Federal de 1988 que é dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda a forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. Essa proteção integral pode ser percebida pelo princípio do melhor interesse da criança. Essa proteção é regulamentada pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei n. 8.069/90). O art. 3º do próprio ECA prevê que a criança e o adolescente gozam de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sem prejuízo da proteção integral, assegurando-lhes, por lei ou por outros meios, todas as oportunidades e as facilidades, a fim de facultar-lhes o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e de dignidade, para Costa

o princípio do melhor interesse da criança, critério consagrado no direito comparado [...]. Os interesses da criança e do adolescente são superiores porque a família, a sociedade e o Estado, todos são compelidos a protegê- los, tendo em conta a sua peculiar condição de pessoas em formação e desenvolvimento. (COSTA, 2004, p.226)

Observa-se através dos dispositivos abaixo transcritos que o Estatuto da Criança do Adolescente incorporou para a criança e o adolescente os princípios constitucionais relativos aos adultos.

Art. 15. A criança e o adolescente têm direito à liberdade, ao respeito e à dignidade como pessoas humanas em processo de desenvolvimento e como

sujeitos de direitos civis, humanos e sociais garantidos na Constituição e nas leis. (...)

Art. 18. É dever de todos velar pela dignidade da criança e do adolescente, pondo-os a salvo de qualquer tratamento desumano, violento, aterrorizante, vexatório ou constrangedor. (ECA, 2013)

Há uma preocupação em proteger o menor através de seus direitos constitucionais como a liberdade, o respeito, a dignidade e por serem mais frágeis, a criança e o adolescente necessitam da real proteção da família, para zelar por sua incolumidade física, psíquica e afetiva.

O afeto talvez seja apontado, atualmente, como o principal fundamento das relações familiares. Mesmo não constando a palavra afeto na Constituição Federal como um direito fundamental, pode-se dizer que o afeto decorre da valorização constante da dignidade humana. No que tange a relações familiares, a valorização do afeto remonta ao fato de que o vínculo familiar de afeto significa mais que um vínculo biológico, o princípio da afetividade é importantíssimo, pois quebra paradigmas, trazendo a concepção da família de acordo com o meio social.

A dignidade é o núcleo dos valores descritos na Constituição e o fator que pauta a defesa da família como instituição formadora da sociedade. A igualdade é tratada no que diz respeito ao tratamento de homem mulher e filhos e filhas e estes entre si, como norteador do respeito que deve haver entre estes. A liberdade é orientadora dos passos que estes membros da família devem trilhar na construção do conforto da família e para que assim seja construída uma ponte para a realização e respeito do que está descrito nos demais princípios. A proteção do menor também está inserida neste contexto dos princípios gerais e fundamentais. De acordo com Pereira

Com a crescente tendência de constitucionalização do Direito Civil, conseqüência dos movimentos sociais e políticos de cidadania e inclusão, os princípios gerais têm-se reafirmado cada vez mais como uma importante fonte do Direito e têm-se mostrado para muito além de uma supletividade. Eles se revestem de força normativa imprescindível para a aproximação do ideal de Justiça. (PEREIRA, 2006, p. 22)

O Direito de Família alcança nova dimensão dada pela nova Constituição de 1988, porém, como toda normatização, não apresenta em seu conteúdo soluções a todos os anseios e necessidades sociais, até mesmo pela constância das mudanças operadas a cada dia em nossa sociedade. Afetividade, novos conceitos de família, dignidade, liberdade e igualdade andam em conjunto na preceituação dos

fundamentos normativos do Direito de Família contemporâneo. A relação de família sofreu alterações consideráveis e tanto a Constituição quanto as demais legislações procuraram atender à necessidade e tornar sua aplicação prática de forma rápida e definitiva, porém, em muitos casos, se faz necessário uma interpretação mais abrangente, levando-se em consideração as peculiaridades de cada caso.

Os julgadores deixam de lado a mera condição de repetidores do conteúdo normativo para ocupar o lugar de hermeneutas de uma realidade passiva de modificação a cada instante. O texto legal passa a ser um paradigma para decisões, não sendo dispensado um pensamento desprovido de preceitos e pré-conceitos quando da sua incidência, já que, o que se busca, na realidade, é o atendimento aos anseios sociais. Silva Filho coloca que

tem-se uma produção legislativa mais rica em termos de referências axiológicas e uma Constituição que pretende amparar um EstadoDemocrático de Direito. Tem-se igualmente um Poder Judiciário que parece, aos poucos, estar despertando de um sono dogmático e ocupando um espaço mais incisivo na cena pública, acenando cada vez mais com a possibilidade de controle efetivo da atividade legal e administrativa. (SILVA FILHO, 2006, p. xxiii)

Sendo assim, não se pode negar que, nesta linha de raciocínio, a jurisprudência brasileira tem desenvolvido papel de fundamental importância para a construção de novos parâmetros, principalmente fundados no reconhecimento de modalidades de famílias quando lastradas no afeto e em suas novas conformações.