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Pedindo emprestadas as palavras de FERNANDO PESSOA JORGE, podemos definir a

responsabilidade civil como “[…] a situação em que se encontra alguém que, tendo praticado

um acto ilícito, é obrigado a indemnizar o lesado dos prejuízos que lhe causou”185. Assim, quer

respeite à sua vertente contratual, “[…] proveniente da falta de cumprimento das obrigações emergentes dos contratos, de negócios jurídicos ou da lei […]”, quer respeite à sua vertente extracontratual, “[…] resultante da violação de direitos absolutos ou da prática de certos actos

que, embora lícitos, causam prejuízo a outrem […]”186, a responsabilidade civil é uma das fontes

de obrigações – é este o sentido das normas plasmadas nos arts. 483.º a 510.º187.

Importa, todavia, esclarecer que este instituto possui uma natureza supletiva, na medida em que apenas será chamado a intervir nas relações socioeconómicas naqueles casos em que, havendo efetivamente ocorrido um dano, outra forma não existirá para, não apenas compensar o

lesado pelo prejuízo, mas ainda repor a ordenação natural dos bens na ordem jurídica188.

Tradicionalmente, a este instituto tem sido reconhecida uma função essencialmente compensatória ou reparadora. Isto é, a obrigação de indemnização tutelada por este instituto destina-se a reparar ou a compensar os prejuízos que o lesado sofreu, tentando colocá-lo na

185 Ensaio Sobre os Pressupostos da Responsabilidade Civil, reimpressão, Coimbra, Almedina, 1995, p. 36.

186 João ANTUNES VARELA, Das Obrigações em Geral, Vol. I, 10.ª edição revista e aumentada, Coimbra, Almedina, 2011, pp. 519 e 520. A

responsabilidade civil extracontratual, por sua vez, desdobra-se ainda em responsabilidade por factos ilícitos, responsabilidade pelo risco e responsabilidade por factos lícitos. Todavia, por questões de economia temporal e espacial, e porque é aquela que contende com o objeto do nosso estudo, focar-nos-emos apenas na primeira, sem prejuízo de adiantarmos algumas sugestões de leitura para um estudo mais aprofundado acerca das outras. Assim, vejam-se, entre outros, Mário ALMEIDA COSTA, Direito das Obrigações, 12.ª edição revista e actualizada, Coimbra, Almedina, 2009, pp. 611 ss e Luís MENEZES LEITÃO, Direito das Obrigações, Volume I – Introdução. Da Constituição das Obrigações, 11.ª edição,

Coimbra, Almedina, 2014, pp. 329 ss.

187Vide, em específico, o art. 483.º, n.º1, relativamente à responsabilidade civil extracontratual ou aquiliana e o art. 798.º, relativamente à

responsabilidade civil contratual ou obrigacional.

188 É neste sentido que Manuel CARNEIRO DA FRADA, Direito Civil – Responsabilidade Civil – O Método do Caso, Coimbra, Almedina, 2006, p. 60,

refere, “[a]través da responsabilidade civil tutela-se ou promove-se a institucionalização de uma certa ordenação de bens pelo Direito, pelo que as normas reguladoras da imputação dos danos são, sob este ponto de vista, regras secundárias (ou de tutela) com respeito àquelas que, explícita ou implicitamente, compõem e definem essa ordenação de bens (as normas ordenadoras ou primárias são um prius em relação àquelas)”.

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situação em que se encontraria, não fora aquela lesão. Neste sentido, costuma afirmar-se que o dano é pressuposto e limite máximo da obrigação de indemnização; nada mais haverá a

compensar para além dele, detendo, por isso, um “papel nuclear”189 no nosso sistema civil.

Embora o reconhecimento da função compensatória à responsabilidade civil seja unânime, cada vez em maior número são as vozes que lhe reconhecem uma função punitivo- preventiva. A lógica deste entendimento não é de árduo alcance: ao obrigar o lesante ao pagamento de uma indemnização (ainda que de cariz compensatório) ao lesado, indubitavelmente a responsabilidade civil encontra-se, por um lado, a sancionar/punir o comportamento daquele agente, retribuindo-lhe o prejuízo que o seu ato ilícito causou – assinalando-se, assim, a função punitiva – e, por outro, a desencorajar esse e outros eventuais agentes da prática de quaisquer novos atos, suscetíveis de produzirem novos prejuízos –

ressaltando, então, a função preventiva190.

No nosso ordenamento, dada a influência das ciências jurídicas germânicas, a obrigação de indemnizar no contexto da responsabilidade civil por factos ilícitos depende do preenchimento cumulativo de cinco pressupostos contemplados na norma geral do art. 483.º, n.º1, “[a]quele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação”. Doutrinalmente, o mesmo é dizer que, para fazer funcionar esta regra, dever-se-ão encontrar reunidos os seguintes requisitos: existência de um facto voluntário

praticado pelo agente191, ilicitude192, culpa193, produção de um dano e nexo de causalidade entre o

facto praticado pelo agente e o dano que do mesmo adveio194.

189 Cfr. JÚLIO GOMES, «Sobre…, cit., p. 10.

190 Entre os vários autores que vêm pugnando por este entendimento, destaca-se Paula Meira LOURENÇO, A Função Punitiva da Responsabilidade

Civil, Coimbra, Coimbra Editora, 2006, acérrima defensora da necessidade, não só de se reconhecer (dado que é já reconhecida) a função punitiva da responsabilidade civil, mas essencialmente de se lhe conceder o merecido destaque, consentâneo com a crescente evolução e modernização deste instituto. Aliás, a par desta autora, outros nomes (tais como Manuel CARNEIRO DA FRADA, Direito Civil. Responsabilidade Civil,

O Método do Caso, reimpressão, Coimbra, Almedina, 2010; António MENEZES CORDEIRO, Tratado de Direito Civil. Parte II. Tomo III, Coimbra,

Almedina, 2010 ou ainda Henrique Sousa ANTUNES, Da Inclusão do Lucro Ilícito e de Efeitos Punitivos entre as Consequências da Responsabilidade Civil Extracontratual: a sua Legitimação pelo Dano, 1.ª edição, Coimbra, Coimbra Editora, 2011, dedicam especial atenção a esta função da responsabilidade civil; no entanto, por este ser um tema sobre o qual nos debruçaremos com maior detalhe na Parte III da presente dissertação, remetemos para então a sua análise.

191 O facto consubstancia, na opinião de PIRES DE LIMA e de ANTUNES VARELA, Código Civil Anotado. Volume I (Artigos 1.º a 761.º), 4.ª edição revista

e actualizada, Coimbra, Coimbra Editora, p. 471, o elemento essencial para o funcionamento do regime da responsabilidade, pois só em função da prática do mesmo poderá aferir-se da existência dos restantes pressupostos. Neste ponto, consideramos de extrema pertinência o acervo de João ANTUNES VARELA, Das Obrigações…, cit., p. 529, porquanto ressalva que a exigência da voluntariedade do facto não elimina, ipsis verbis, do

âmbito de uma eventual obrigação de indemnizar todos aqueles atos em que o agente não tenha querido, isto é, não tenha “[…] prefigurado mentalmente os efeitos do acto e tenha agido em vista deles”. Com efeito, como o próprio salienta “[h]á, pelo contrário, inúmeros casos (a

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começar pela chamada negligência inconsciente) em que não existe semelhante representação mental e, todavia, ninguém contesta a obrigação de indemnizar”, razão pela qual os “[…] actos danosos praticados por distracção ou por falta do auto-domínio normal não deixam de constituir o agente em responsabilidade”. De todo o modo, não é qualquer facto que releva nestes termos, pois somente o voluntário, controlável pelo agente, poderá, quando verificados os restantes requisitos, reclamar a intervenção da obrigação de indemnizar ao abrigo da responsabilidade civil; sendo certo que, neste âmbito, incluem-se quer as ações, quer as omissões de comportamento devido por parte do agente, nos termos do disposto no art. 486.º. Ainda a este propósito entende António MENEZES CORDEIRO, Tratado…, cit., p. 436, poder considerar-se, com base nesse

preceito, que “[…] a omissão só é “facto” quando exista, num momento prévio, o dever de praticar o acto omitido”. Já João ANTUNES VARELA, Ibidem p. 528, defende que a “[…] a omissão é causa do dano, sempre que haja o dever jurídico especial de praticar um acto que, seguramente ou muito provavelmente, teria impedido a consumação desse dano”.

192 A ilicitude, nestes termos, pode assumir uma de duas variantes: ou a violação de um direito subjetivo alheio ou a violação de uma norma que

protege direitos ou interesses alheios, i.e., normas de protecção. Cfr. Mário ALMEIDA COSTA, Noções…, cit., pp. 111 ss; Luís MENEZES LEITÃO, Direito…, cit., pp. 259 ss;PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA, Código…, cit., pp. 472 a 474; Jorge RIBEIRO DE FARIA, Direito…, cit., pp. 415 ss; Pedro

ROMANO MARTINEZ, Direito das Obrigações. Programa 2010/2011. Apontamentos, 3.ª edição, Lisboa, AAFDL, 2011, p.118; João ANTUNES VARELA,

Das Obrigações…, pp. 533 ss e Mafalda Miranda BARBOSA, «(Im)pertinência da autonomização dos danos puramente morais? Considerações a propósito dos danos morais reflexos», CDP, n.º 45, pp. 3 a 63, (p. 3).Deste modo, a natureza ilícita do facto praticado pelo agente encontra-se presente nas situações acima descritas, desde que, naturalmente, não se verifique nenhuma causa de justificação ou de exclusão da mesma, como a ação direta, a legítima defesa, o estado de necessidade ou, em certos casos, o consentimento do lesado. Sobre as causas de justificação ou exclusão de ilicitude, Jorge RIBEIRO DE FARIA, Direito…, cit., pp. 433 ss;Luís MENEZES LEITÃO, Direito…, cit., p. 267; Pedro ROMANO MARTINEZ,

Direito…, cit., pp. 279 ss; João ANTUNES VARELA, Das Obrigações…, cit., pp. 552 ss e Fernando PESSOA JORGE, Ensaio…, cit., pp. 29 ss e 269 ss.

193 A culpa, in casu, a conduta do agente, merece um juízo de desvalor, uma censura ou reprovação, “[…] quando, pela sua capacidade e em face

das circunstâncias concretas da situação, se concluir que ele podia e devia ter agido de outro modo” – cfr. João ANTUNES VARELA, Das Obrigações…, cit., p. 562. A imputabilidade surge, assim, como pressuposto da culpa. Fazendo nossas as palavras de FERNANDO PESSOA JORGE, Ensaio…, cit., p. 331, “[s]e a culpa exprime a voluntariedade do acto, isto é, o nexo de imputação psicológico dele ao agente, exige-se que este seja susceptível de tal imputação, que tenha imputabilidade”. A imputabilidade é então uma “[…] qualidade natural, que decorre de o agente se encontrar no uso das suas faculdades mentais e poder, portanto, actuar livremente”. O sujeito tem de querer ou entender o ato por si praticado e ser capaz de medir as consequências do mesmo, pois que, conforme dispõe o art. 488.º, n.º 1, “[n]ão responde pelas consequências do facto danoso quem, no momento em que o facto ocorreu, estava, por qualquer causa, incapacitado de entender ou querer, salvo se o agente se colocou culposamente nesse estado, sendo ele transitório”, presumindo ainda a Lei, no n.º 2, do mesmo normativo, inimputáveis, os menores de 7 anos e os interditos por anomalia psíquica. Sendo esta a regra geral, há que salientar que, em casos excecionais, em que razões de equidade assim o imponham, pode o inimputável ser obrigado a indemnizar, com os limites dispostos no art. 489.º.

Nos termos e para os efeitos do disposto no art. 483.º, consagrou-se um critério latu sensu, na medida em que se abrange a culpa, quer na modalidade do dolo, quer na modalidade de negligência (também designada por mera culpa). A relevância desta distinção é tanto maior quanto mais se atente no postulado no art. 494.º, uma vez que nos casos de mera culpa, o quantum indemnizatório poderá ser limitado, “equitativamente, em montante inferior ao que corresponderia aos danos causados, desde que o grau de culpabilidade do agente, a situação económica deste e do lesado e as demais circunstâncias do caso o justifiquem”.

O dolo, por sua vez, pode ser considerado em três modalidades distintas: o dolo direto, que João ANTUNES VARELA, Das Obrigações…, cit., p. 570,

classifica como os casos em que “[…] o agente representa ou prefigura no seu espírito determinado efeito da sua conduta e quer esse efeito como fim da sua actuação, apesar de conhecer a ilicitude dele”; o dolo necessário, nas situações em que o agente reconhece o facto ilícito como uma consequência necessária e certa da sua conduta e, embora não desejando diretamente esse desfecho, nem por isso deixa de com ele se conformar e assim agir; e o dolo eventual, representativo das hipóteses em que o agente prevê efetivamente o resultado ilícito proveniente da sua conduta, mas somente como uma consequência possível (eventual), já não como o desfecho certo e necessário. Vide,Jorge RIBEIRO DE FARIA,

Direito…, cit., pp. 457 a 461, Fernando PESSOA JORGE, Ensaio…, cit., p. 322, João ANTUNES VARELA, Das Obrigações…, cit., p. 570. Já a negligência ou mera culpa pode assumir uma de duas variantes, a negligência consciente ou a negligência inconsciente. A primeira delas aproxima-se do conceito de dolo eventual, na medida em que tal como neste, também na negligência consciente o agente prevê a possibilidade de ocorrência do facto ilícito; todavia, aqui ele não crê na sua consumação, ou seja, confia efetivamente que aquele resultado, embora possível, não se produzirá. Vale isto por dizer, “[…] a culpa consciente distingue-se do dolo eventual porque neste o agente, se tivesse a certeza do resultado ilícito, mesmo assim quereria o acto, ao passo que, naquela, não teria actuado” – cfr. Fernando PESSOA JORGE, Ensaio…, cit., p. 322.

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Sendo um dos primordiais objetivos da responsabilidade civil colocar o lesado na posição em que se encontraria se não tivesse ocorrido o dano, entende-se por que razão o nosso

ordenamento privilegia a reconstituição in natura do prejuízo. Como ensina o professor ANTUNES

VARELA, “[o] fim precípuo da lei nesta matéria é, por conseguinte, o de prover à directa remoção

do dano real à custa do responsável, visto ser esse o meio mais eficaz de garantir o interesse

capital da integridade das pessoas, dos bens ou dos direitos sobre estes”195.

Todavia, existem situações – aliás, a grande maioria – em que tal reparação natural é

insuficiente, ou porque se tornou impossível, ou porque se apresenta excessivamente onerosa

para o devedor – cfr. art. 566.º, n.º1. Nestes casos, deve ser fixada uma indemnização pecuniária.

A questão que a este propósito se coloca contende com o modo de cálculo da quantia monetária, de determinação desse valor. Para tal efeito, a doutrina recorre à chamada teoria da diferença, segundo a qual “[a] indemnização pecuniária deve manifestamente medir-se por uma diferença […] – pela diferença entre a situação (real) em que o facto deixou o lesado e situação

(hipotética) em que ele se encontraria sem o dano sofrido”196. É este o sentido do disposto no art.

566.º, n.º 2, nos termos do qual, “[a] indemnização em dinheiro tem como medida a diferença entre a situação patrimonial do lesado, na data mais recente que puder ser atendida pelo tribunal, e a que teria nessa data se não existissem danos”.

§

praticado produziria um resultado ilícito, sendo, porém, certo que o mesmo objetivamente era previsível, pelo que, se tivesse agido com o cuidado que lhe era exigível, tê-lo-ia previsto. Em suma, embora na negligência se denote um grau de culpa menor face ao dolo, nem por isso a falta de diligência no comportamento do agente deixará de ser censurável, motivo pelo qual “[o] grau de reprovação ou de censura será tanto maior quanto mais ampla for a possibilidade de a pessoa ter agido de outro modo, e mais forte ou intenso o dever de o ter feito” – cfr. João ANTUNES VARELA, Das Obrigações…, cit., pp. 573 e 574.

Por último, cumpre ainda salientar que no que respeita à prova da culpa, diferentemente do que sucede em sede de responsabilidade contratual (nos termos do art. 799.º, há uma presunção de culpa do devedor), o ónus recai sobre o lesado – cfr. art. 483.º, n.º 1. É a este que, na qualidade de credor da obrigação, incumbe fazer a prova dos prejuízos que sofreu, nos termos e para os efeitos das regras gerais de distribuição do ónus probatório – art. 342.º, n.º 1.

194 Neste sentido,António MENEZES CORDEIRO, Tratado de Direito Civil Português. II. Direito das Obrigações. Tomo III, Coimbra, Almedina, 2010,

pp. 433 ss; Mário ALMEIDA COSTA, Noções Fundamentais de Direito Civil, 5.ª edição revista e actualizada, Coimbra, Almedina, 2009, pp. 111 e

112; Jorge RIBEIRO DE FARIA, Direito…, cit., p. 413; Fernando PESSOA JORGE, Ensaio…, cit., p. 103; PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA,Código…, cit., pp. 471 ss e João ANTUNES VARELA, Das Obrigações…, cit., p. 525.

195 Cfr. Idem, p. 904. 196 Idem, p. 907.

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Ora, no contexto da perda de oportunidade, as dúvidas surgem, como melhor veremos, relativamente ao preenchimento dos pressupostos do dano e do nexo de causalidade. Por esta razão, debruçar-nos-emos, individual e brevemente, sobre a análise de cada um destes pressupostos, de modo a que, posteriormente, nos seja possível compreender na sua verdadeira amplitude o obstáculo (ou não) que a exigência dos mesmos poderá representar em sede de aceitação do dano da perda de chance no nosso ordenamento jurídico.