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A definição do termo “maus tratos parentais”, em especial, o conceito jurídico, encontra- se, ainda nos nossos dias, em torno de uma névoa dificilmente transponível, em virtude da complexidade e indeterminabilidade das situações que o mesmo pode abarcar.

Não é difícil compreender que o aumento populacional, aliado à evolução social a que se assiste nas últimas décadas, tornam quase impossível o seu acompanhamento em tempo real. Em consequência, as dinâmicas familiares multiplicam-se e, com isso, aumenta também a panóplia de situações passíveis de consubstanciarem maus tratos parentais.

Como explica ISABEL MARQUES ALBERTO, “[o] que para uns indivíduos e grupos

socioculturais pode constituir formas de educação e disciplina, para outros pode ser identificado

como formas de maltrato e vice-versa”104. Assim, salientam MANUELA CALHEIROS e MARIA BENEDICTA

MONTEIRO, “[…] uma vez que as definições do problema reflectem o sistema conceptual dos

102 Assim, nos termos do art. 5.º, al. a), da LPCJP, considera-se criança ou jovem, “a pessoa com menos de 18 anos ou a pessoa com menos de

21 anos que solicite a continuação da intervenção iniciada antes de atingir os 18 anos”.

103 Nos termos do qual, atento o disposto no art. 1.º, “[a] prática, por menor com idade compreendida entre os 12 e os 16 anos, de acto

qualificado pelo lei como crime dá lugar à aplicação de medida tutelar educativa em conformidade com as disposições da presente lei”. Para um estudo acerca das implicações deste regime, vide, Direito Tutelar de Menores. O Sistema em Mudança., AA.VV., FDUC, Centro e Direito da Família, N.º 5., Coimbra, Coimbra Editora, 2002.

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indivíduos, a compreensão do mau trato e da negligência pressupõe a análise do processo e do estado actual da negociação social desta realidade, bem como a importância dada aos actores sociais (população, técnicos, instituições) nessa negociação […], na sua definição, na análise das

suas causas, intervenção, prevenção, etc.”105.

No intuito de balizar aquele conceito, a Organização Mundial de Saúde definiu os maus tratos infantis como “[…] qualquer forma deficiente de tratamento das crianças, que pode ser reflectida em comportamentos de mau trato físico, emocional, abuso sexual, negligência e exploração comercial ou outra, que resulte em dano atual ou potencial para a saúde, sobrevivência, desenvolvimento ou dignidade, num contexto de uma relação de

responsabilidade, confiança ou poder”106. Por outro lado, também a Recomendação n.º (85) 4 do

Conselho da Europa, define a violência no meio familiar como “[…] qualquer acto ou omissão que ponha em perigo a vida, a integridade corporal ou psíquica ou a liberdade de uma pessoa ou que comprometa gravemente o desenvolvimento da sua personalidade”.

Não existe, pois, uma definição unívoca. Todavia, importa reconhecer que, independentemente da definição que pretenda adotar-se, certo é que a mesma deve manter a elasticidade necessária para se adaptar e tentar acompanhar, tanto quanto possível, a crescente mutação social, económica, jurídica, etc., dos nossos dias. Por estes motivos, e para efeitos do presente estudo, optamos por adotar um entendimento tão abrangente quanto possível deste conceito; como tal, tendemos a “[…] admitir que por detrás da mesma palavra podem esconder- se estilos, contextos e processos maltratantes muito diversos; assim, incluíram-se nessa noção não só as formas activas de violência contra a integridade física e psíquica da criança, como ainda as formas de privação, omissão ou negligência (material e afectiva) que comprometem o

seu crescimento e desenvolvimento”107.

Com efeito, aquela que antigamente era uma visão mais individualista deste conceito,

pois que colocava a tónica nas características individuais e internas do sujeito-agressor108,

105 Cfr. Manuela CALHEIROS e Maria Benedicta MONTEIRO, «Mau Trato e Negligência Parental. Contributos para a definição social dos conceitos»,

pp. 145 a 176 (p. 146), disponível em http://www.scielo.mec.pt/pdf/spp/n34/n34a06.pdf, consultado em julho de 2015.

106 Assim, Inês Mendes COUTINHO, Maria João SEABRA-SANTOS e Maria Filomena GASPAR, «Educação parental com famílias maltratantes: Que

potencialidades?», Análise Psicológica (2012), 4 (XXX), pp. 401 a 420 (p. 405), disponível em http://www.scielo.mec.pt/pdf/aps/v30n4/v30n4a04.pdf, consultado em julho de 2015.

107 Cfr. Ana Nunes de ALMEIDA, Isabel Margarida ANDRÉ e Helena Nunes de ALMEIDA, «Sombras e marcas: os maus tratos às crianças na família»,

Análise Social, Vol. XXXIV (150), 1999, pp. 91 a 121, p. 92, disponível em http://analisesocial.ics.ul.pt/documentos/1218798695T1vKY9iv7Ce08NU0.pdf, consultado em julho de 2015.

108 Apologista deste entendimento, o modelo psiquiátrico, um dos modelos explicativos dos maus tratos infantis, acentuava as características

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apresenta hoje uma componente eminentemente dinâmica, aliando aquelas a outros fatores

externos, quer no contexto humano, quer no contexto sócio-cultural109 em que se inserem as

crianças. É neste sentido que as ciências humanas e sociais e, em especial, a psicologia, classificam o modelo ecológico do desenvolvimento, modelo este que enfatiza “[…] o facto de a parentalidade ser influenciada não só pelos fatores individuais e familiares, mas, também, por fatores contextuais, que terão de ser analisados e considerados aquando do desenho de

intervenção protetiva que se quer eficaz”110.

Vale tudo isto para dizer que, no estudo de uma matéria tão sensível como esta, é mister manter um espírito aberto, permitindo expandir os horizontes e reconhecer o caráter interdisciplinar das questões,de modo a que, ao complementarem-se as diversas áreas do saber e estendendo-se os campos de intervenção, possa caminhar-se no sentido de oferecer a melhor

resposta possível a esta problemática111.

Como tal, cumpre-nos enquadrar e classificar, ainda que de modo superficial, as várias categorias ou tipos de maus tratos infantis/parentais, sem prejuízo, obviamente, de tudo quanto acima se aduziu.

35, “[e]ste modelo realça a depressão, baixa auto-estima e controle dos impulsos dos pais, remetendo para patalogia mental dos pais, como única causa do mau trato […] basicamente, a assunção principal da abordagem psiquiátrica é de que as causa[s] do abuso infantil devem ser encontradas nos pais, que possuem certas características de personalidade que os distinguem dos pais não abusivos. Os pais abusivos não apresentam apenas traços de personalidade distintos dos pais não abusivos, como esses traços são essencialmente patológicos (Burguess, 1979, 148)”.

109 Sobre este contexto, vide, entre outros, Manuela CALHEIROS e Maria Benedicta MONTEIRO, «Mau…, cit., pp. 152 ss; “[a]o nível das práticas, são

muitos os exemplos de práticas educativas tradicionais que suscitam conflitos interculturais e que revelam a interferência, não só de valores educativos, como de objectivos de socialização diferentes. Os rituais de iniciação juvenil como a circuncisão, a clitoritomia ou a privação de alimentação e de sono, que ocorrem em muitas partes do mundo, constituem um bom exemplo deste conflito intercultural”.

110 Cfr. Inês Mendes COUTINHO, Maria João SEABRA-SANTOS e Maria Filomena GASPAR, «Educação…, cit., p. 409. No mesmo sentido, Guilherme de

OLIVEIRA, «A Criança Maltratada», Temas de Direito da Família – 1., Coimbra, Coimbra Editora, 1999, pp. 187 a 193, p. 187, aponta três fatores

que, na sua opinião, devem incluir-se nesta análise, a saber: “o valor que a sociedade dá às crianças; o alcance da intervenção do Estado sobre a Família [e] a situação económica conjuntural das sociedades”.

111 Sobre a interdisciplinaridade desta matéria e os potenciais perigos nessa análise, vide, Ana Nunes de ALMEIDA, Isabel Margarida ANDRÉ e

Helena Nunes de ALMEIDA, «Sombras…, cit. pp. 96 ss, com especial destaque para o alerta de que “[…] todas as avaliações ou diagnósticos

profissionais acarretam também consigo as convicções subjectivas dos técnicos. Em suma, se, metodologicamente, na investigação em ciências sociais sempre se levanta a questão da interposição de filtros entre o investigador e a realidade, a complexidade do tema dos maus tratos na família (universo, por excelência, fechado e privado) torna-a aqui incontornável” (p. 97).

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3.2.1. O conceito de Criança ou Jovem em perigo – os diferentes tipos de maus tratos

O sistema jurídico não se demonstrou indiferente a estas considerações, tendo, por isso, consagrado um entendimento bastante abrangente daquelas que podem considerar-se situações que colocam em perigo crianças e jovens.

Assim, dispõe o art. 3.º, n.º 1, da LPCJP, que “[a] intervenção para a promoção dos direitos e proteção da criança e do jovem em perigo tem lugar quando os pais, o representante legal ou quem tenha a guarda de facto ponham em perigo a sua segurança, saúde, formação, educação ou desenvolvimento, ou quando esse perigo resulte de acção ou omissão de terceiros ou da própria criança ou do jovem a que aqueles não se oponham de modo adequado a removê- lo”. Ora, no intuito de concretizar estes conceitos indeterminados, o n.º 2, do mesmo preceito

exemplifica112 como perigo, as situações em que a criança ou jovem está abandonado ou vive

entregue a si próprio (al. a)); sofre maus tratos físicos ou psíquicos ou é vítima de abusos sexuais (al. b)); não recebe os cuidados ou a afeição adequados à sua idade e situação pessoal (al. c)); é obrigado a atividades ou trabalhos excessivos ou inadequados à sua idade, dignidade e situação pessoal ou prejudiciais à sua formação ou desenvolvimento (al. d)); está sujeito, de forma direta ou indireta, a comportamentos que afetem gravemente a sua segurança ou o seu equilíbrio emocional (al. e)) ou assume comportamentos ou se entrega a actividades ou consumos que afectem gravemente a sua saúde, segurança, formação, educação ou desenvolvimento sem que os pais, o representante legal ou quem tenha a guarda de facto se

lhes oponham de modo adequado a remover essa situação (al. f))113.

Da conjugação destes preceitos legais extrai-se que o nosso ordenamento jurídico reconhece no conceito de maus tratos parentais a existência da componente física e psicológica, bem como a inclusão de manifestações de violência ativas e passivas (omissivas). Nas palavras

de TOMÉ D’ALMEIDA RAMIÃO, “[o] perigo a que se reporta este normativo traduz a existência de

uma situação de facto que ameace a segurança, saúde, formação, educação ou

112 Note-se a utilização da expressão “designadamente”, indicadora de que este não é um preceito taxativo. Isto mesmo evidenciam Helena

BOLIEIRO e Paulo GUERRA, A Criança…, cit., pp. 34 ss, “[p]retendeu-se que o elenco de situações fosse o mais abrangente possível, de modo a

contemplar o maior número de casos de perigo que, independentemente da sua natureza, são comprometedores de direitos fundamentais da criança ou do jovem e exigem por isso o desencadeamento da intervenção de protecção”.

113 Paralelamente, o art. 19.º, n.º 1, da Convenção Sobre os Direitos da Criança, determina, “[o]s Estados Partes tomam todas as medidas

legislativas, administrativas, sociais e educativas associadas à protecção da criança contra todas as formas de violência física ou mental, dano ou sevícia, abandono ou tratamento negligente; maus tratos ou exploração, incluindo a violência sexual, enquanto se encontrar sob a guarda de seus pais ou de um deles, dos representantes legais ou de qualquer outra pessoa a cuja guarda haja sido confiada”.

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desenvolvimento da criança ou do jovem, não se exigindo a verificação efectiva da lesão da segurança, saúde, formação, educação ou desenvolvimento. Basta, por isso, a criação de um

real ou muito provável perigo, ainda que longe de dano sério”114.

Assim, por uma questão de facilidade expositiva, podemos agrupar – embora a tal não se limitando – os maus tratos parentais em situações de abuso físico e situações de abuso psicológico. Importa, todavia, salvaguardar que dentro de cada um destes grupos encontram-se várias modalidades e diferentes tipos de manifestação, bem como que esta compartimentalização não é, obviamente, estanque (isto é, um mesmo comportamento, nas mais das vezes, consubstancia, simultaneamente, abuso físico e psicológico).

a) Abuso físico115

O abuso físico é, por natureza, mais evidente, pelo que, em princípio, mais facilmente

detetável. Desde castigos corporais116, a formas de tortura, privação da alimentação, ou trabalho

forçado, etc., qualquer forma de violência física contra as crianças pode ser assim enquadrada117.

Comporta, então, “[…] todos os danos físicos (não acidentais) criados à criança ou jovem, em resultado de actos ou omissões da parte dos pais, seu representante legal ou pessoa que detenha a sua guarda de facto ou mesmo de terceiros e aqueles não se oponham de modo adequado [a] evitá-los”118.

114 Vide Lei de Protecção de Crianças e Jovens em Perigo. Anotada e Comentada, 3.ª edição (revista e aumentada), Lisboa, Quid Juris, 2004, p.

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115 Embora não nos cabendo entrar nessa análise, não podíamos deixar de referir que este abuso pode consubstanciar um crime de ofensas à

integridade física qualificada, atenta a especial debilidade da criança face ao adulto. Para um estudo aprofundado acerca dessas matérias, leiam- se as anotações aos arts. 143.º a 152.º-A do CP – P.Pinto ALBUQUERQUE, Comentário do Código Penal à Luz da Constituição da República e da

Convenção Europeia dos Direitos do Homem, Universidade Católica Editora, Lisboa, 2008.

116 A este propósito não podemos deixar de salvaguardar que não tratamos aqui daquele já previamente abordado “direito ao castigo”, no âmbito

do poder-dever de direção da educação e de disciplina que impende sobre os pais (sendo certo que, como referido, mesmo o reconhecimento de um direito nesta medida não se encontra alheio a controvérsia doutrinal); queremos, portanto, referir-nos tão-só às situações em que se extravasa o âmbito deste poder de disciplina, infligindo dor física propositada e totalmente desproporcional, e/ou sem qualquer fim disciplinar ou, de outra forma, a coberto de uma alegada (inexistente?) (des)necessidade de disciplina. É, portanto, este o sentido da definição sociológica adotada por Manuela CALHEIROS e Maria Benedicta MONTEIRO, «Mau…, cit., p. 163, já que, nas suas palavras, “[o] mau trato físico, [que] engloba métodos de

educação coercivos/punitivos através da utilização de técnicas disciplinares (físicas) inadequadas e violentas, a agressão e violência física e o consumo de álcool e medicamentos”. A título ilustrativo desta situação, leia-se o Acórdão do TRP, de 02/04/2014 (José Piedade), proferido no âmbito do processo n.º 261/12.2GDVFR.P1, consultado em julho de 2015, “[e]xcede o poder/dever de educação-correcção dos progenitores a conduta dos pais que, com o uso de um cinto, batem no filho de 11 anos, porque encobria maus resultados escolares e estaria a fumar”.

117 Para um estudo mais aprofundado das diversas modalidades que pode o abuso físico revestir, cfr., Isabel Maria ALBERTO, Maltrato…, cit., pp.

33 e 34 e Isabel ROSINHA, «Abandono Psicológico: Estudo Exploratório. Um contributo dos profissionais dos Centros de Acolhimento Temporário de Menores em Risco» in Abandono e Adopção, Eduardo Sá, Maria Clara Sottomayor, Isabel Rosinha e Maria João Cunha, Coimbra, Almedina, 2005, pp. 19 a 23.

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b) Abuso psicológico

Como vínhamos a referir, em sede de abuso psicológico incluem-se todas as formas de

maus tratos conhecidas, uma vez que, como bem sublinha ISABEL MARQUES ALBERTO, “[e]sta

forma de maltrato tem a particularidade de estar presente nas outras formas de maltrato, uma vez que cada uma delas constitui violência contra uma pessoa, uma personalidade, que é

atingida na totalidade e não apenas num segmento”119. Basta pensarmos que qualquer castigo

corporal consubstancia uma forma de humilhação e privação da dignidade de que, enquanto sujeito de direitos, toda a criança e jovem são inalienavelmente titulares.

Numa conceção abrangente de abuso psicológico, podemos, então, defini-lo como o conjunto de “[…] actos conscientes dos pais na relação afectiva e na socialização da criança que não favorecem as necessidades de desenvolvimento emocional, social e intelectual, incluindo interacções verbais agressivas, actos de abandono declarado e uma socialização inadequada

através de modelos inadequados, reforço do desvio ou evitamento social”120.

§ As particularidades da negligência/abandono e do abuso sexual A negligência e o abandono

A negligência e/ou abandono são, de todas as formas categorizadas de maus tratos, aquelas que se verificam com maior frequência. Nestes casos, os progenitores eximem-se das suas responsabilidades e da sua função de cuidar das crianças, de lhes prestar assistência a todos os níveis, seja ela médica, alimentar, afetiva, social, etc.121. Vemos, por isso, que estes

conceitos tanto podem incluir-se no âmbito dos maus tratos físicos, como em sede de maus tratos psicológicos.

119 Cfr. Maltrato…, cit., p. 32.

120 Cfr. Manuela CALHEIROS e Maria Benedicta MONTEIRO, «Mau…, cit., p. 163. Isabel ROSINHA, «Abandono…, cit., pp. 20 e 21, fazendo uma

súmula dos contributos de vários estudos (na sua maioria, levados a cabo por profissionais da saúde), para esta definição, sugere a consideração dos seguintes aspetos: “falta de interesse e de ligação do adulto pela criança”; “rejeição, desprezo, comportamentos sádicos, exigências desproporcionais para a idade da criança ou o abandono”; “destruição ou deterioração significativa das competências da criança, tais como a sobrevalorização ou desvalorização das competências da criança associada a punição, reforço negativo ou positivo ou ambiguidade dos padrões de avaliação” e ainda a “incapacidade de proporcionar à criança um ambiente de tranquilidade, bem-estar emocional e afectivo, tal como a ausência de afecto, a hostilização verbal, a depreciação, a ameaça e humilhação frequentes ou situações de grande violência familiar”.

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Numa noção bastante geral, a negligência pressupõe “[…] falha consecutiva em

responder às necessidades da criança”122, sendo porém certo que a principal destrinça entre este

conceito e o abandono se circunscreve ao facto de, neste último, haver uma rejeição total

daquelas responsabilidades por parte dos pais123. A corroborar tal entendimento, TOMÉ D’ALMEIDA

RAMIÃO entende que o conceito de abandono se refere ao “[…] abandono de facto e que

corresponde à noção corrente da palavra abandono, ou seja, traduz uma situação em que a criança ou o jovem foi abandonada à sua sorte, está completamente desamparada, desprotegida, não revelando os pais, o seu representante legal ou quem detiver a sua guarda de

facto, qualquer interesse pelo seu destino”124; terá, portanto, de existir uma manifestação de

vontade consciente e voluntária por parte do adulto em não mais se conectar com qualquer questão relativa à criança.

Por outro lado, também importa salientar que a negligência pode manifestar-se de diferentes formas, atendendo ao contexto sócio-cultural e económico em que a família maltratante se insira. Embora, como já aduzimos, não nos pareça assertivo adotá-la como

critério geral e inequívoco, não deixa de ser pertinente a observação de ISABEL MARQUES ALBERTO,

“[se] as classes sociais mais desfavorecidas, com dificuldades económicas, baixo nível de instrução, se podem caracterizar por incapacidade de fornecer à criança cuidados médicos, alimentação, materiais e frequência escolares, as classes sociais mais favorecidas dão os materiais mas esquecem as interacções. As suas crianças têm brinquedos, mas não

brincadeiras, têm livros mas não atenção, têm roupa, mas falta-lhes colo”125.

O abuso sexual126

No que respeita a esta modalidade tão específica de abuso, há que salientar que “[…] estamos perante um objecto multidisciplinar por natureza, mas face ao qual nem sempre é fácil

122 Ibidem. No mesmo sentido, Maria Silvia PASIAN, Juliana Martins FALEIROS, Marina Rezende BAZON e Carl LACHARITÉ, «Negligência Infantil: A

Modalidade Mais Recorrente de Maus-Tratos”, Pensando Famílias, 17 (2), 2013, pp. 61 a 70, disponível em http://pepsic.bvsalud.org/pdf/penf/v17n2/v17n2a05.pdf, consultado em julho de 2015.

123 Consubstanciando, por isso, na opinião de Jorge Duarte PINHEIRO, O Direito…, cit., p. 393, uma “hipótese extrema”. 124 Cfr. Lei…, cit., p. 27.

125 Cfr. Maltrato…, cit., p. 31.

126 Para uma abordagem aprofundada deste tema e do seu impacto nas crianças, sugerimos o estudo do Manual CORE para o atendimento de

crianças vítimas de violência sexual. Compreender. Parte I, elaborado pela APAV – Associação Portuguesa de Apoio à Vítima, disponível para consulta em http://www.apav.pt/pdf/core_compreender.pdf, consultado em julho de 2015.

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promover uma correcta articulação e, sobretudo, integração entre os diversos saberes e práticas

que convergem para a sua compreensão e intervenção”127.

Alvo de incontáveis estudos e variadas abordagens, a análise desta particular categoria de mau trato continua, nos dias de hoje, bastante em voga, sendo de difícil alcance a sua definição, pois que, em função do ramo do saber em que nos encontramos, os seus limites e perspetivas variam. Assim, no âmbito sociológico/psicológico, é possível configurar-se o abuso sexual como “[…] qualquer experiência sexual, forçada ou não, que vai de formas mais passivas, como a exibição de pornografia, até à relação sexual (genital, anal ou oral), passando pelo recurso à criança para produção de pornografia infantil, que pode num presente imediato ou

num futuro mais longínquo, provocar trauma e dificuldades de desenvolvimento”128.

Já em sede jurídico-penal, o CP, no art. 171.º, prevê o tipo legal de crime de abuso sexual de crianças. Assim, nos termos do n.º 1, “[q]uem praticar acto sexual de relevo com ou em menor de 14 anos, ou o levar a praticá-lo com outra pessoa, é punido com pena de prisão de um a oito anos”, sendo que, no n.º 2, se determina, “[s]e o acto sexual de relevo consistir em cópula, coito anal, coito oral ou introdução vaginal ou anal de partes do corpo ou objectos, o