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Esquema 11 As três dimensões da proposição-enunciado

3 ANÁLISE TEXTUAL DOS DISCURSOS: A RESPONSABILIDADE

3.4 NOÇÕES QUE DÃO SUPORTE AO ESTUDO DA RESPONSABILIDADE

3.4.4 A Responsabilidade enunciativa e o Ponto de vista

O estudo da Responsabilidade enunciativa situa-se na polifonia e é uma das principais propostas de análise da ATD. No Brasil, esse termo ganha visibilidade a partir de 2008, com a publicação da obra A linguística Textual: introdução à análise textual dos discursos, já citada. Nesse livro, Jean-Michel Adam apresenta a responsabilidade enunciativa em dois momentos, a saber: no capítulo 2, ao discutir as categorias para a análise de textos, e no capítulo 3, tipos de ligação das unidades de base, mais especificamente ao tratar do estudo dos conectores.

Mesmo focalizando a responsabilidade enunciativa em dois capítulos, Adam ([2008] 2011) apresenta essa noção de forma resumida e aberta, sinalizando para o diálogo com outros autores, entre os quais destacamos: Rabatel (2008, 2009) e Guentcheva (1994, 1996).

Devemos considerar, também, outros pontos no estudo da responsabilidade enunciativa: (1) essa noção “não é consensual para os autores que se dedicam ao seu estudo”

(RODRIGUES; PASSEGGI; SILVA-NETO, 2010, p. 153); e (2) as pesquisas que contemplam tal questão “ainda não atingiram um grau de difusão correspondente à relevância do assunto para os estudos linguísticos” (RODRIGUES et al, 2014, p. 33).

Para Adam ([2008] 2011), a responsabilidade enunciativa é equivalente ao ponto de vista (PdV) e “consiste na assunção por determinadas entidades ou instâncias do conteúdo do que é enunciado, ou na atribuição de alguns enunciados ou PdV a certas instâncias (PASSEGGI et al., 2010, p. 299). De acordo com Rodrigues (2010, p. 5), a responsabilidade enunciativa pode ser “individual quando um produtor físico (locutor –narrador-enunciador) assume o(s) enunciado(s)” ou coletiva, quando esses enunciados são assumidos, por exemplo, por um grupo de indivíduos.

Nessa perspectiva, Adam (2011, p. 109) afirma que “toda proposição-enunciado compreende três dimensões complementares”: dimensão enunciativa, conteúdo referencial e valor ilocucionário. Para ilustrar essa questão, o autor propõe o esquema a seguir, no qual podemos ver a representação dessa ligação, que de forma geral é determinada pela orientação argumentativa (ORarg). O autor acrescenta ainda que “não existe enunciado isolado: mesmo aparecendo isolado, um enunciado elementar liga-se a um ou a vários outros e/ou convoca um ou vários outros em resposta ou como simples continuação” (ADAM, 2011, p. 109).

Esquema 11 - As três dimensões da proposição-enunciado

Observando esse esquema compreendemos que a RE situa-se no topo da pirâmide, estando diretamente ligada a um contexto anterior, ou seja, aos enunciados já ditos ou inferidos, e a um contexto posterior, em outras palavras, com as enunciações futuras e ao mesmo tempo ligadas ao nível A, a representação discursiva constituída pelo conteúdo proposicional; e ao no nível C, representado pelo valor ilocucionário resultante das potencialidades argumentativas dos enunciados. Para Adam (2011, p. 111), esse “triângulo que não hierarquiza os três componentes; situa [A] e [C] na mesma linha (o que corresponde à condição clássica F [p] da pragmática dos atos de discurso) e põe a enunciação [B] em posição mediana, entre [A] e [C]”.

Adam ([2008] 2011, p. 117) afirma que “o grau de responsabilidade enunciativa de uma proposição é suscetível de ser marcado por um grande número de unidades da língua”. O autor em questão enumera entre essas grandes categorias os índices de pessoa, os dêiticos espaciais e temporais, os tempos verbais, as modalidades, os diferentes tipos de representação da fala, as indicações de quadros mediadores, os fenômenos de modalização autonímica e as indicações de um suporte de percepções e de pensamentos, como podemos ver no quadro seguinte.

Quadro 14 - Grau de responsabilidade enunciativa: categorias e marcas linguísticas

Ordem Categorias Marcas linguísticas

01 Índices de pessoas Meu, teu/vosso, seu

02 Dêiticos espaciais e temporais

Advérbios (ontem, amanhã, aqui, hoje) Grupos nominais (esta manhã, esta porta) Grupos preposicionais (em dez minutos) Alguns determinantes (minha chegada)

03 Tempos verbais Oposição entre o presente e o futuro do pretérito

Oposição entre o presente e o par pretérito imperfeito e pretérito perfeito. 04 Modalidades Modalidades sintático-semânticas maiores:

Téticas (asserção e negação) Hipotéticas (real) Ficcional e (4) Hipertéticas (exclamação) Modalidades objetivas Modalidade intersubjetivas Modalidade subjetivas Verbos e advérbios de opinião

Lexemas afetivos, avaliativos e axiológicos 05 Diferentes tipos de

representação da fala

Discurso direto (DD) Discurso direto livre (DDL) Discurso indireto (DI) Discurso narrativizado (DN) Discurso indireto livre (DIL) 06 Indicações de quadros

mediadores

Marcadores como segundo, de acordo com e para

Modalização por um tempo verbal como o futuro do pretérito. Escolha de um verbo de atribuição de fala como afirmam, parece Reformulações do tipo é, de fato, na verdade, e mesmo em todo caso Oposição do tipo alguns pensam (ou dizem) que X, nós pensamos

(dizemos) que Y

07 Fenômenos de modalização autonímica

Não coincidência do discurso consigo mesmo (como se diz, para empregar

um termo filosófico)

Não coincidência entre as palavras e as coisas (por assim dizer, melhor

dizendo, não encontro a palavra)

Não coincidência das palavras com elas mesmas (no sentido etimológico,

nos dois sentidos do termo)

Não coincidência interlocutiva (como é a expressão? Como você costuma

dizer)

08 Indicações de um suporte de percepções e de pensamentos relatados

Focalização perceptiva (ver, ouvir, sentir, tocar, experimentar) Focalização cognitiva (saber ou pensamento representado)

Através da análise do quadro acima, compreende-se que a responsabilidade enunciativa pode ser materializada por diferentes marcas linguísticas que permitem ao locutor assumir ou não os enunciados. Para Passeggi et al (2010, p. 301, grifos do autor.):

As oito categorias sintetizadas no quadro acima permitem o estudo da responsabilidade enunciativa ou do PdV em suas várias formas de materialização. Entre essas diversas possibilidades, como, por exemplo, a descrição da responsabilidade enunciativa assumida pelo locutor narrador,

Adam (2008 a) exemplifica dois tipos de PDVs (1) PdV anônimo da opinião comum introduzido por verbos discendi ( verbos na terceira pessoa

do singular ou plural) e (2) quadro mediador ( mediação epistêmica e

mediação perceptiva- percepção).

Para ilustrarmos a questão, acompanhamos Adam (2011, p. 112), que apresenta alguns exemplos que favorecem a compreensão dos fenômenos aqui expostos. Vejamos:

T6 [F1-e1] Um desconhecido pintava de ocre os muros do cemitério e Pantin. [F2-e2] Dujardin perambulava nu por Saint- Ouen- l’Aumône.

[F3-e3] Loucos, parece.

De acordo com Adam (2011, p. 112), nesse exemplo, encontramos um apagamento enunciativo, uma vez que “a informação parece relatada sem que a pessoa fale”. Nesse sentido, “a predição nominal monorrema Loucos, que recategoriza os sujeitos de F1 e F2, é atribuída a um enunciador cujo locutor se distancia, explicitamente, pela fórmula impessoal: parece”, ocasionando assim um PdV (ponto de vista) anônimo.

Para Adam (2011, p. 115) o PdV anônimo, frequentemente, é introduzido por expressões “como segundo, de acordo com, para; mas também se encontram introdutores mais específicos, como Em Washington, Em Paris”. Para o autor, essas questões são esclarecidas nos trabalhos de Zlatka Guentchéva, sobre o quadro mediativo que “marcam uma zona textual sob a dependência de uma fonte de saber (mediação epistêmica) ou de percepção (mediação perceptiva). Os enunciados podem assim, não ser assumidos pelo locutor-narrador” (ADAM, 2011, p. 115). Sobre o PdV anônimo, Passeggi et al (2010, p. 301) acrescentam que tal fenômeno se insere nas categorias 5 e 6 do quadro apresentado.

Após situarmos o estudo da responsabilidade enunciativa, trazemos algumas reflexões sobre duas noções que complementam o fenômeno em questão. Nossas reflexões acompanharam, principalmente, as pesquisas de Rabatel (2008, 2009), no que diz respeito ao Ponto de vista, e Guentchevá (1994, 1996), no que concerne ao quadro mediativo. Desde já, enfatizamos que concordamos com Rodrigues (2010, p. 05) ao afirmar que “a identificação da (não) assunção ou a (não) atribuição da responsabilidade enunciativa está estreitamente ligada

à identificação de a quem pertence o ponto de vista”. Desse modo, entendemos que o estudo do PdV está atrelado a (não) materialização da RE.

As noções sobre os pontos de vista, termo assinalado por Rabatel com todas as iniciais maiúsculas (PDV), é um item de destaque nos estudos rabatelianos. Para o pesquisador (RABATEL, 2005, p. 2), “o PDV é uma categoria transversal”, que situa-se no centro do dialogismo, sendo assim, é concebido como uma ferramenta para o estudo da alteridade. Acompanhamos Rabatel (2008, p. 503) no que diz respeito ao entendimento sobre o dialogismo, que “não é somente o fato de que o discurso se compõe de discursos anteriores, é, também, o fato de refletir, voluntariamente em seu discurso, pontos de vista diferentes”.

Rabatel (2014, p. 152), em uma entrevista cedida à Revista de Estudos do Discurso, afirma que a polifonia e o dialogismo o levaram a articular a enunciação e a argumentação no estudo de textos literários, podendo estabelecer assim um “embaralhamento enunciativo” entre a voz e os pontos de vista, representados nos textos. Para o pesquisador, “o domínio dos principais motivos, mecanismos e ferramentas do PDV são indispensáveis para a leitura dos textos literários como para os textos documentários, frequentemente solicitados pelas atividades de escritas [...]” (RABATEL, 2005, p. 57). Nesse mesmo artigo, o autor acrescenta que o PDV não está relacionado a um único tipo/sequência textual como, por exemplo, o narrativo, descritivo ou argumentativo, mas que pode aparecer em outros como o injuntivo e o explicativo.

Ao longo de suas pesquisas, Rabatel (2008, p. 101) estabelece três formas diferentes de PDV: (1) PDV representado, que está relacionado à percepção; (2) PDV contado, que parte da perspectiva dos personagens e (3) PDV afirmado, que exprime falas ou pensamentos. Para o autor:

[...] com o PDV representado, o focalizador percebe, pensa “sem falar...”, enquanto que com o PDV contado, o focalizador percebe, pensa contando. Esse ponto de vista contado não concerne assim, às falas reportadas dos personagens ou às expressões do narrador, pois no momento em que o centro da perspectiva sai da atividade de narração stricto sensu e ele se põe a falar, trate-se de comentários explícitos do narrador, trate-se dos enunciados no discurso direto, então o PDV muda de natureza e se tem necessidade de um outro conceito para analisá-lo, o de PDV afirmado. (RABATEL, 2008, p. 101).

Enfim, para identificarmos o PDV, é indispensável reconhecer a fonte, mesmo que esta esteja implícita; uma vez que para o PDV ser veiculado necessita de uma instância enunciativa. Dessa forma, podemos dizer que através do PDV o enunciador pode assumir ou

não a responsabilidade enunciativa dos enunciados. Mais especificamente, podemos dizer que,

[...]conforme seja conveniente ou não esse enunciador irá assumi-la. No caso da negativa da conveniência, o enunciador poderá atribui-la a outra fonte do saber ou apresentar um ponto de vista anônimo ou até mesmo se distanciar do que está sendo veiculado (RODRIGUES, 2014, p. 34).

Rodrigues (2010, p. 6) explica a (não) assunção da responsabilidade enunciativa seguindo a proposta de Rabatel (2009), para quem:

[...] há três possibilidades enunciativas; seja L1/E1 discordar de e2, materializando-se, assim, a não assunção da responsabilidade enunciativa; seja, ele marcar sua neutralidade, implicando a responsabilidade enunciativa zero; seja concordar com o PDV de e2 podendo chegar a assumir totalmente o PDV de e2. Este último caso evidencia que ainda que as palavras não sejam de L1/E1, ele pode assumir a responsabilidade enunciativa a partir de um enunciado anterior, ou seja, em um contexto dialógico, com as palavras de outrem.

Outro ponto que merece destaque na teoria de Rabatel (2009) é a noção de “quase- Re”, que pode ser definida como a atribuição de um PDV a enunciadores segundos por L1/E1, de forma que esse não seja assumido integralmente pelos locutores/enunciadores primeiro. Para Rodrigues, Passeggi e Silva-Neto (2010, p. 157), a noção de “quase-Re” permite “atribuir um ponto de vista PdV mesmo a quem não está na origem do enunciado”.