2 ASPECTOS GERAIS SOBRE A INTERVENÇÃO ESTATAL NA ECONOMIA, O
2.6 A Responsabilidade Penal na Contemporaneidade
O Direito Penal surge na modernidade com a finalidade precípua de proteger as
instituições básicas do Estado, assim como os interesses mais elementares dos cidadãos,
garantindo que certas normas sejam cumpridas, e, via de consequência, permitindo que seja
possível uma convivência ou vida em sociedade. Infelizmente, não há como se pensar um
Estado que não faça uso do Direito Penal como forma de garantir um mínimo grau de
convivência. Todavia, com a superação da modernidade, a complexidade das sociedades leva
o Estado a um alto grau de “juridificação dos problemas sociais
45” em que não se comporta
mais garantir apenas um grau mínimo de convivência, o que implica numa mudança de
estratégias de proteções jurídico-penais e o próprio sistema jurídico acaba por criar novos
bens jurídicos que já não correspondem somente com os interesses básicos dos indivíduos,
tais como vida, saúde, liberdade, intimidade, propriedade, etc. Em outras palavras, o Direito
Penal clássico, liberal tradicional ou primário, cede espaço a um Direito Penal secundário,
fruto da evolução do sistema jurídico que acaba dando lugar a novas normas penais que têm
um reconhecimento jurídico prévio de novos interesses sociais abarcados no âmbito do
denominado Direito Penal econômico.
O Direito Penal econômico, no entanto, não passa de um ramo do Direito Penal,
cujas normas possuem as mesmas características que as demais normas penais, uma vez que a
pena cumpre em regra funções semelhantes. Ocupa-se em geral da estabilização de normas de
45 FEIJÓO SANCHEZ, Bernardo. Imputación objetiva en el Derecho penal económico y empresarial: Esbozo de una teoría general de los delitos económicos, Disponível em: [http://www.indret.com/pdf/627_1.pdf]. Acesso em 24 ago. 2014.
conduta indispensáveis para a sobrevivência da ordem socioeconômica vigente. Logo, segue
os mesmos conceitos encontrados em todo o direito penal tradicional, utilizando-se, todavia,
de algumas categorias e definições com maior intensidade, tais como crimes de perigo, de
mera conduta, delitos omissivos, normas penais em branco, dolo eventual entre outros.
Para tanto, considerando que os tipos penais trazidos na legislação fiscal, bem como
na lavagem de dinheiro, estão na categoria dos crimes econômicos, faz-se necessária trazer
algumas considerações sobre conceitos gerais da teoria geral do delito, a bem de situar o
problema.
Delito é, nas palavras de Hans-Heinrich Jescheck e Thomas Weigend
46, todo o
comportamento humano a que o ordenamento jurídico ameaça com uma pena. Isto é, a
responsabilidade penal tem como epicentro o comportamento humano que se dá através de
uma conduta, uma ação ou omissão. Juarez Cirino dos Santos
47refere que: “o Direito Penal
tem por objeto condutas humanas descritas de forma positiva (ações) ou de forma negativa
(omissão de ações) em tipos de condutas proibidas”. O que significa dizer que os tipos legais
descritos em forma positiva criam um dever de abstenção de ação, enquanto que os tipos
legais descritos em forma negativa criam um dever jurídico de ação, o que a doutrina
denomina para os primeiros de tipos comissivos e para os segundos de tipos omissivos.
Importa assim dizer que os tipos penais estão centrados em deveres jurídicos negativos e
deveres jurídicos positivos.
Com base nessa concepção da teoria do delito, não se tem como aceitar uma unidade
tradicional de construção do conceito de fato punível, devendo substituir-se por uma
construção quadripartida, como sugere Figueiredo Dias
48. Seja pelo viés onto-antropológico,
ôntico ou teleológico-funcional, verificam-se diferenças estruturais entre quatro espécies de
aparecimento do crime que determinam uma consideração dogmática autônoma: os crimes
dolosos de ação (ou comissivos), os crimes dolosos de omissão, os crimes negligentes (ou
culposos) de ação e os crimes negligentes (ou culposos) de omissão.
Acresce-se a isso, a doutrina que aqui se segue a qual os tipos penais visam proteger
um bem jurídico, constituindo um dos marcos essenciais para a interpretação típica
49de um
lado, e, uma função crítica, consistindo na fulcral possibilidade de declarar a inexistência de
46 JESCHECK, Hans-Heinrich. WEIGEND, Thomas. Tratado de Derecho Penal. Parte General. 5ª ed. Trad.
Miguel Olmedo Cardenete. Granada: Comares, 2002. p. 54.
47 SANTOS, Juarez Cirino dos. Direito Penal Parte Geral. 3ª Ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008. p.3 48 FIGUEIREDO DIAS, Jorge de. Questões fundamentais do direito penal revisitadas. São Paulo: Editora
Revista dos Tribunais, 1999. p. 216.
49 VON HIRSCH, Andrew. El concepto de bien jurídico y el “princípio del daño” in La teoria del bien
um bem jurídico merecedor de proteção frente a situações de penalização de condutas
meramente imorais, de outra banda. Assim, quando se afirma que toda a incriminação deve
ofender ou lesionar um bem jurídico, tal conceito, como salientou Luis Greco
50, “pode ser
entendido tanto de uma perspectiva dogmática quanto de uma perspectiva político-criminal”.
A intervenção do Direito penal deve limitar-se a proteger interesses que sejam relevantes para
o âmbito de liberdade da pessoa ou, como expõe Santiago Mir Puig
51, interesses que
assegurem a participação dos indivíduos em sociedade. Interesses que são valorados
positivamente e que só podem dar lugar a bens jurídico-penais orientados a defesa da esfera
de liberdade das pessoas, permitindo sua participação social em termos de igualdade. Isso
não implica, no entanto, que não possam ser objeto de proteção penal interesses
supraindividuais, pois a proteção penal deve abarcar tanto a esfera da liberdade individual,
como interesses de caráter social dirigidos a proteger às condições sociais que permitem a
participação dos indivíduos em sociedade.
Juarez Tavares
52enfatiza que “dadas as variedades com que se apresenta, é
praticamente impossível conceituar exaustivamente bem jurídico”. Roland Hefendehl
53elenca
alguns conceitos de bem jurídico pré-existentes à sua obra. São eles:
1) “los bienes jurídicos suponen aquellos presupuestos valiosos y necesarios para la existencia” (Mayer, Hellmuth); 2) “aquellas circunstancias dadas o finalidades que son útiles para el individuo y su libre desarrollo en el marco de un sistema social global estructurado sobre la base de la concepción de esos fines o para el funcionamiento del propio sistema” (Roxin, Claus); 3) “presupuestos instrumentales necesarios para el funcionamiento del sistema social y para que éste sobreviva” (Rudolphi, Hans-Joachim ); e 4) “aquellos presupuestos que aseguran las posibilidades de participación del individuo en la sociedad” (Calliess, Rolf-Peter).
No âmbito do direito penal econômico, Silva Sanchez
54esclarece que os bens
jurídicos já estão devidamente configurados por outros setores do direito, sendo que a
permissão e a proibição de condutas encontram-se condicionadas a prévias regulações em que
a determinação de deveres positivos e negativos encontra-se positivada. Logo, a pretensão de
explicar dogmaticamente todo o Direito Penal econômico a partir da exclusiva existência de
deveres de não lesionar o patrimônio alheio ou funções estatais de ordenação da economia é
50 GRECO, Luis. Modernização do Direito Penal, Bens Jurídicos Coletivos e Crimes de Perigo Abstrato.
Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011. p. 77.
51 MIR PUIG, Santiago. Derecho penal, parte general. 8ª ed. Madri: Editorial B de F, 2008. p. 121. 52 TAVARES, Juarez. Teoria do Injusto Penal. 3ª ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2003. p. 181.
53 HEFENDEHL, Roland. ¿Debe ocuparse el derecho penal de riesgos futuros?: bienes jurídicos colectivos y
delitos de peligro abstracto. In Revista electrónica de ciencia Penal y Criminología. 04-14 (2002) p. 02.
54 SILVA SANCHEZ, Jesus Maria. Fundamentos del Derecho Penal de la Empresa. Madri: Editorial B de F,
uma empreitada condenada ao fracasso, visto que se trata de uma visão monista de bem
jurídico, ou seja, de ofensa a interesses individuais, não conseguindo abarcar a imensa gama
de bens jurídicos coletivos e difusos. Portanto, ao determinar a tipicidade ou atipicidade de
determinadas condutas, deve-se levar em conta as posições jurídicas ou regulações jurídicas
sobre as quais se projeta a valoração especificamente jurídico-penal.
Nos crimes sócio-econômicos deve-se ter em conta que, a par dos deveres negativos
de não se realizar determinadas condutas que, aliás, permeiam todo o Direito Penal
tradicional, o substrato sobre o que se atua é uma posição jurídica em que a obrigação de
condutas positivas em benefício a outro âmbitos de organização (indivíduos, sociedades
mercantis, Administração Pública, etc), ou, ao menos, deveres mais estreitos de colaboração
que o mero respeito a outras esferas prepondera.
Assim, uma das características do Direito Penal econômico é a de estar atrelado a
outros subsistemas do direito (administrativo, tributário, etc), de tal sorte que a análise do
injusto perpassa por esses outros ramos intimamente imbricados. Isso, no entanto, não implica
que toda a violação a um dever jurídico deva ou possa ser criminalizada. A valoração da
conduta como típica depende de como se encontram previamente definidas as relações
jurídicas. Significa dizer que o injusto penal é um injusto qualificado, sendo que o desvalor
jurídico-penal da conduta não pode ser alheio ao contexto normativo ou ao tipo de relações
jurídicas estabelecidas no subsistema correspondente. Logo, se determinados comportamentos
estão em consonância com as normas administrativas, tributárias, mercantis, etc, num
corolário lógico dever-se-á ter a atipicidade ou a permissão da conduta no âmbito penal.
Como salienta Silva Sanchez
55, o umbral da tipicidade ou a permissão das condutas não pode
ser determinado sem se ter em conta o substrato normativo sobre o que se está atuando,
especialmente quando existem deveres especiais.
Sob esse aspecto, tanto os crimes tributários, como os delitos de lavagem de dinheiro
pressupõem deveres, isto é obrigações, por parte de agentes, em que se visa não apenas o
controle, como de evitá-los. Nessa perspectiva, dos deveres dos agentes, a informação
contábil é importante, senão fundamental, para a sua configuração. Montalvo
56salienta
También el Derecho administrativo sancionador, como en el caso de la infracción tributaria y el derecho regulador de la actuación en determinados mercados organizados, contemplan sanciones administrativas en el caso de infracción de deberes contables. Luego la debida información contable es objeto de tutela por el Derecho sancionador. Mientras que la infracción
55Ibíd.., p. 12.
administrativa puede fundamentarse en este caso en la mera infracción del deber, para determinar si esta contravención formal constituye además un injusto penal debe indagarse acerca de las finalidades y funciones que competen al Derecho Penal económico en esta materia. Por tanto, no basta para explicar el a la infracción del deber legal de llevar una contabilidad adecuada a la buena praxis del modelo ideal de comerciante; porque la legitimidad de la reacción por medio de la pena requiere demonstrar un plus desvalor, un mayor contenido de injusto, que explique razonablemente por qué el Derecho administrativo sancionador es insuficiente para reaccionar adecuadamente frente al ilícito. Por tanto, no basta para poder afirmar aquella legitimación con demostrar el quebranto del orden jurídico-contable; es preciso que ese ataque se produzca de forma grave, y que el bien de que se trate merezca, por su entidad, la tutela del orden penal.
Ciertamente el Derecho penal económico ha ocupado parcelas antes reservadas al Derecho administrativo. La expansión del Derecho penal en este ámbito determina correlativamente la necesidad de afirmar la secundariedad de la tutela penal, pues el solapamiento de normas pertenecientes a distintos sectores del ordenamiento jurídico, que tienen atribuidas equivalentes funciones de protección, hace necesario clarificar cuál es el ámbito de ilicitud penal. Esto es, en un ámbito en el que la clase de los intereses protegidos pertenece a diversos dominios del Derecho – penal y administrativo -, debe determinarse claramente cuál es el espacio reservado al Derecho penal, sobre la base de que a él compete la defensa más enérgica de dichos intereses.