3 A RESPONSABILIDADE PENAL DOS CONTADORES NOS CRIMES CONTRA A
3.3. Os crimes de lavagem de dinheiro
3.3.1. Conceito de lavagem de dinheiro e considerações sobre o bem jurídico
Uma grande parte da doutrina jurídica nacional e internacional atribui o surgimento
do termo “lavagem de dinheiro” à nomenclatura empregada por autoridades americanas ao
método utilizado pela máfia na década de 30 do século XX para justificar a origem de
recursos ilícitos, método este que consistia na exploração de máquinas de lavar roupas
automáticas. No entanto, a evolução do fenômeno da lavagem de dinheiro se dá com o
desenvolvimento, a partir dos anos 60, do lucrativo negócio do tráfico de drogas
210. A
primeira vez que se utilizou a expressão “money laundering” num processo judicial foi nos
Estados Unidos no ano de 1982 e desde então a literatura jurídica à adotou em textos
normativos nacionais e internacionais.
Pierpaolo Cruz Bottini
211conceitua lavagem de dinheiro como o “ato ou a sequência
de atos praticados para mascarar a natureza, origem, localização, disposição, movimentação
ou propriedade de bens, valores e direitos de origem delitiva ou contravencional, com o
escopo último de reinseri-los na economia formal com aparência de licitude”. Disso denota-se
que “a análise do fenômeno da lavagem de dinheiro exige o esmiuçamento da complexidade
do delito, dividindo-o nas fases de ocultação, estratificação e integração.
212” Essa é a principal
característica do branqueamento de capitais, o polimorfismo, isto é, a necessidade de
compreender este delito como um conjunto de atos, cuja finalidade é tirar de cena a real
origem, natureza, disposição e movimentação ou propriedade de bens, valores e/ou direitos
para, assim, reintroduzi-los na economia formal, com uma falsa aparência de licitude
213.
Na verdade não se tem um conceito realmente firme do que consiste a lavagem de
dinheiro, sendo que a doutrina costuma caracterizar este delito através dos processos para se
chegar ao branqueamento de capitais. Significa dizer que a conduta típica não é descrita como
se costuma usualmente se fazer no direito penal tradicional, ou seja, como uma conduta
objetiva. Por conta disso, na Espanha, questionou-se, inclusive, se tais condutas afetariam
210 CORDERO, op.cit., p. 53.
211 BOTTINI e BADARÓ, op.cit. p. 23.
212 CALLEGARI, André Luís. WEBER, Ariel Barazzetti. Lavagem de dinheiro. São Paulo: Atlas, 2014, p. 01. 213 BORRAGINE, Bruno Garcia. O exercício da advocacia e os pontos de conexão com a o delito de lavagem de
capitais: análise de dois casos examinados pelo Tribunal Regional Federal da 3ª Região. In.ESTELLITA, Heloisa (Coord.). Exercício da advocacia e lavagem de capitais. Rio de Janeiro: FGV Editora, 2016. p. 240.
efetivamente um bem jurídico, isto é, se existiria um interesse suscetível de tutela penal
214na
criminalização da lavagem de dinheiro. No entanto, a maioria da doutrina acabou por
considerar que há motivos para a criminalização da reciclagem de capitais, uma vez que existe
um interesse social que justificaria a intervenção penal.
Por esse motivo, um dos temas mais polêmicos e debatidos é a busca da indicação e a
natureza do bem jurídico tutelado nos crimes de lavagem de dinheiro. A doutrina está longe
de ter uma unanimidade nesse ponto, ou seja, sobre qual é o bem jurídico ofendido no
branqueamento de capitais. Assim, há distintas correntes com propostas e fundamentações
que importam em consequências não apenas teóricas como práticas para a adoção de uma
interpretação normativa coerente. Destacam-se as seguintes concepções: a) bem jurídico
lesado no crime antecedente como objeto de tutela da norma de lavagem de dinheiro; b) a
Administração da Justiça como bem jurídico lesionado pelo delito de lavagem; c) a ordem
econômica como bem jurídico afetado pela lavagem de dinheiro; d) a luta contra a
criminalidade organizada como bem jurídico afetado; e) pluriofensividade.
A primeira corrente doutrinária citada defende que a lavagem de dinheiro afeta de
algum modo o objeto tutelado pela norma cuja infração gera os bens. Isso decorre do fato que
as legislações de primeira geração sobre o branqueamento de capitais estavam ligadas
exclusivamente ao combate ao tráfico de drogas. Assim, afirmava-se que o bem jurídico
tutelado seria o mesmo que é afetado nos delitos de tráfico de entorpecentes, qual seja, a
discutível “saúde pública”. Com o surgimento das denominadas legislações de segunda
geração que ampliaram o rol de crimes antecedentes, passou-se a entender que o objeto da
tutela normativa não se restringia tão somente à saúde pública, pois abarcaria todos os bens
jurídicos afetados pelos crimes antecedentes à lavagem de dinheiro, tais como o patrimônio, a
administração pública, entre outros. Todavia, as legislações de terceira geração, em que há
indicação genérica de qualquer crime como sendo antecedente, impossibilita que se
identifiquem os bens jurídicos lesados pela lavagem de dinheiro.
Logo, resta claro que a determinação do bem jurídico ofendido na lavagem de
dinheiro por meio do crime antecedente é falha, recebendo críticas não apenas pela
indeterminação daqueles delitos, como também por fazer com que haja mais de uma
incidência sobre um bem jurídico, deslegitimando a criminalização. Isto é, pune-se a conduta
do crime antecedente, assim como a lavagem de dinheiro, que afetariam o mesmo bem
jurídico, tendo como corolário lógico, um bis in idem, inaceitável no direito penal.
214 CORDERO, op.cit., p. 193.
Ademais, o reconhecimento de que o bem jurídico da reciclagem de capitais seria o
mesmo do crime antecedente retira a autonomia e independência do próprio delito de
branqueamento de dinheiro, o que macula a ideia de combate a este delito como uma política
criminal. Assim, nas palavras de Pierpaolo Bottini
215“a ideia da identidade dos bens
jurídicos tutelados parece contrária a todo o movimento político-criminal de autonomia da
lavagem de dinheiro verificado nos mais diversos âmbitos”.
Além disso, é ilógico imaginar que àquele que lava o dinheiro oriundo de um
assassinato mediante recompensa estaria, da mesma forma, ofendendo o bem jurídico vida.
Isto é, punindo-se, neste caso, a lavagem de dinheiro não se estará reforçando a proteção ao
bem jurídico vida, não satisfazendo as exigências do princípio da ofensividade. É
inimaginável que um contador, autor ou partícipe de uma lavagem de dinheiro de verbas
oriundas de um homicídio mediante recompensa, esteja de igual sorte ofendendo o bem
jurídico vida.
Uma segunda corrente doutrinária postula que o bem jurídico tutelado na lavagem de
dinheiro seria a Administração da Justiça. O delito assemelhar-se-ia aos crimes de
favorecimento, previstos nos artigos 348 e 349 do Código Penal, uma vez que as condutas
afetariam a capacidade da Justiça de exercer suas funções de investigação, julgamento,
processamento e recuperação do produto oriundo da atividade criminosa. Isidoro Blanco
Cordero
216refere que a lavagem de dinheiro daria lugar a ocultação de um delito já cometido,
sendo que quem recicla os bens procedentes de um delito antecedente ofenderia a
Administração da Justiça. O branqueamento de capitais lesionaria, assim, a credibilidade do
sistema de Justiça, pois se utilizaria de complexas transações, justamente com o fim de
mascarar e afastar o produto originariamente ilícito e, através disso, impedir o rastreamento
pelas autoridades públicas.
Todavia, esse entendimento também é criticável, na medida em que a administração
da Justiça como bem jurídico da lavagem de dinheiro exigiria um dolo de violar o
funcionamento da Justiça, sendo que este não é a intenção direta do agente do branqueamento
de capitais, mas sim o lucro. Ademais, ao se conceber lavagem de dinheiro como um delito
contra a Administração da Justiça, está-se levando em conta aspectos parciais do
branqueamento de capitais, a saber, sobre as primeiras fases do processo de reciclagem, sem
que se dê uma atenção a fase mais importante, qual seja, a de integração. Embora, a lavagem
de dinheiro implique sempre num atentado à Administração da Justiça esse não é o aspecto
215 Ibid., p. 53. 216 Ibid., p. 198.
mais relevante. As sanções para esses delitos não se dão porque se lesa a Administração da
Justiça, mas sim porque afetam outros interesses merecedores de proteção.
Uma terceira corrente defende que a ordem econômica seria o bem jurídico afetado
pela lavagem de dinheiro. O cerne dessa teoria está na desvaloração dos atos de ocultação,
encobrimento e reciclagem do capital porque tais condutas desestabilizariam a economia,
visto que afetariam a livre concorrência, a livre iniciativa, assim como as relações de
consumo, a transparência, o acúmulo e o reinvestimento de capital sem lastro em atividades
produtivas ou financeiras lícitas, afetando o funcionamento e o equilíbrio da economia formal.
Trata-se de uma deslealdade competitiva, ante as vantagens que o autor da lavagem teria com
os benefícios de origem delitiva em detrimento de seus competidores.
Essa doutrina reforça a natureza de uma concepção autônoma do bem jurídico na
lavagem de dinheiro, desvinculando-o do crime de origem ou antecedente. Embora haja uma
relação entre o crime antecedente e a lavagem de dinheiro, uma vez que esta decorre do delito
de origem, o impacto causado na ordem econômica pela reciclagem de capitais, é um
elemento que diferencia o bem jurídico do branqueamento em relação aos bens jurídicos dos
crimes antecedentes. Tal proposta contempla de igual sorte a desnecessidade de um rol
taxativo de delitos antecedentes, coadunando com as legislações de terceira geração.
As principais críticas recaem na falta de precisão na conceituação de ordem
econômica como bem jurídico. O termo dá margens a interpretações muito fluidas que
impedem uma melhor orientação nos casos concretos, dificultando, inclusive, o desempenho
de função de limite negativo à produção e aplicação da norma penal. A expressão ordem
econômica enseja conceitos muito amplos. Não por outro motivo que há quem defenda que os
bens jurídicos tutelados seriam a livre concorrência, o tráfico lícito de bens ou outras
variações de elementos que formam e estruturam a denominada ordem econômica.
Numa quarta corrente que não encontra, ao que se sabe, eco na doutrina nacional,
está uma teoria alemã que considera o bem jurídico afetado pela lavagem de dinheiro a luta
contra a criminalidade organizada
217. Na Espanha, Bernardo Feijóo Sanchez
218é adepto a tal
conceituação, salientando que:
El blanqueo no es, en realidad, una infracción contra el orden socioeconómico, sino que forma parte de un creciente sector del ordenamiento jurídico-penal que podemos denominar Derecho Penal de
217 CORDERO, op.cit., p. 201.
218 FEIJÓO SANCHEZ, Bernardo. Imputación objetiva en el Derecho penal económico y empresarial: Esbozo de una teoría general de los delitos económicos, Disponível em: [http://www.indret.com/pdf/627_1.pdf] p. 50. Acesso em 23 ago. 2015.
organizaciones criminales (que actúan por ánimo de lucro o por ideología), representando un instrumento de lucha contra la delincuencia organizada en la medida en la que pretende estrangular económicamente a las organizaciones criminales. El creciente éxito políticocriminal del blanqueo y su expansión internacional parte del convencimiento de que para combatir a las organizaciones criminales (inicialmente las dedicadas al narcotráfico), una de las estrategias más eficaces consiste en neutralizar o desactivar las vías por las que los delincuentes profesionalizados blanquean los capitales fruto de sus actividades delictivas. Esta idea, desde luego, está presente en ciertas reflexiones generales sobre la legitimidad de este delito en diversas sentencias de nuestro Tribunal Supremo. No es ninguna casualidad que nuestra praxis jurisprudencial se encuentre absolutamente dominada por blanqueo de capitales provenientes de organizaciones dedicadas al narcotráfico ni que se pueda constatar en la actualidad una clara tendencia a utilizar el blanqueo como instrumento básico para combatir la financiación del terrorismo, aunque blanqueo de capitales que tienen un origen delictivo (ilegitimidad por origen) y financiación del terrorismo (ilegitimidad por destino) sean fenómenos distintos.
Essa teoria não prospera visto que a luta contra a criminalidade organizada não pode
ser considerada um bem jurídico tutelado, senão um fim do Estado que sequer confunde-se
com as finalidades do direito penal. Ademais, o vazio da expressão luta contra a
criminalidade organizada é patente, uma vez que não possibilita que se identifique qual
criminalidade organizada está-se referindo. A doutrina em comento traz tão somente um
elemento de política criminal de Estado sem apontar efetivamente qual interesse, representado
pelo bem jurídico tutelado, pretende-se proteger. A luta contra a criminalidade não pode nem
mesmo ser considerada um fim do direito penal, senão do Estado, por meio das autoridades
policiais. Logo, sob qualquer enfoque que se analise essa doutrina, verificar-se-á que ela é
equivocada.
Por fim, uma quinta e última corrente importante da doutrina a ser brevemente
analisada sustenta que o bem jurídico afetado pelos delitos de lavagem de dinheiro seria
pluriofensivo, isto é, lesaria simultâneos e distintos bens jurídicos, tais como, a Administração
da Justiça, a Ordem Socioeconômica, a transparência do sistema financeiro, a legitimidade da
atividade econômica, a incolumidade da saúde pública
219, entre outros. Desta feita, haveria
uma múltipla ofensa a bens jurídicos no branqueamento de capitais.
Muitos autores utilizam essa teoria mesclando os bens jurídicos afetados, ora
salientando que seriam ofendidos a Administração da Justiça e o bem jurídico tutelado do
delito antecedente, ora afirmando que seria a Ordem Socioeconômica e a Administração da
Justiça. Pierpaolo Bottini
220critica a teoria da pluriofensividade alegando que tal proposta
219 CORDERO, op.cit., p. 204. 220 Ibid., p. 63.