3 A RESPONSABILIDADE PENAL DOS CONTADORES NOS CRIMES CONTRA A
3.3. Os crimes de lavagem de dinheiro
3.3.2. A estrutura típica dos crimes de lavagem de dinheiro e as fases ou etapas do
3.3.2.1. O caput do artigo 1º da lei 9.613/98
A apuração da ocorrência dos delitos de lavagem de dinheiro, previstos pela Lei
9.613/98 igualmente pressupõe, não raro, conhecimentos e informações contábeis. Isso se
denota da leitura da redação do tipo penal, cujo texto traz in verbis:
Art. 1o Ocultar ou dissimular a natureza, origem, localização, disposição, movimentação ou propriedade de bens, direitos ou valores provenientes, direta ou indiretamente, de infração penal.
Pena: reclusão, de 3 (três) a 10 (dez) anos, e multa.
221 Ibid., p. 901.
Numa análise acerca da tipicidade objetiva do caput do artigo 1º, percebe-se que o
legislador descreveu dois comportamentos distintos, aos quais se incide a mesma pena. A
consumação do delito se dá, portanto, por meio da primeira (ocultar) ou da segunda
(dissimular) etapa ou fase do processo de branqueamento de capitais, exaurindo-se com a
reinserção do capital na economia com aparência de licitude. Classifica-se, assim, esse crime
como de ação múltipla, com núcleos disjuntivos, pois a realização de qualquer uma das
condutas concretiza a consumação. Não se tem dessa forma como admitir um concurso de
delitos naqueles casos em que o sujeito realiza, no mesmo contexto e sobre os mesmos bens,
as duas ações descritas no tipo penal. Tudo faz parte de um mesmo processo de lavagem de
dinheiro em que os atos posteriores absorvem os primeiros, tornando-se estes meios ou
momentos de preparação do processo unitário, embora complexo, do fato principal para a
realização final. Não se vislumbra, assim, as figuras da continuidade delitiva e, muito menos,
da pluralidade de crimes, uma vez que se trata de um fato único de lavagem de dinheiro que
renova a sua materialidade típica a cada nova conduta.
Para se chegar ao alcance típico da lavagem de dinheiro em relação aos profissionais
contábeis, faz-se necessário num primeiro momento analisar o significado de cada um dos
dois verbos nucleares da norma, quais sejam: ocultar e dissimular. Ocultar tem como
significado “esconder, tirar de circulação, subtrair de vista”.
222Consuma-se o delito com a
simples ocultação, encobrimento, através de qualquer meio, tendo como elemento a intenção,
através de qualquer meio, de converter o produto ilícito oriundo de crime em ativo lícito.
Considerada a primeira fase da lavagem de dinheiro, a ocultação é uma etapa que
pode ser realizada utilizando algumas técnicas, como o “fracionamento que consiste em
dividir as elevadas somas de dinheiro em outras de menor quantia ou fracionar as transações
em cédulas e assim evadir as obrigações de identificação ou comunicação
223”. Buscando
evitar essa forma de branqueamento de capitais, o Banco Central do Brasil expediu a
CIRCULAR Nº 3.461 que estabelece no artigo 6º, §2º, inciso I, a necessidade de todas as
instituições financeiras terem um sistema de registro que deva permitir a identificação das
operações que, realizadas com uma mesma pessoa, conglomerado financeiro ou grupo, em um
mesmo mês calendário, superem, por instituição ou entidade, em seu conjunto, o valor de
R$10.000,00 (dez mil reais). Trata-se de uma complementação a norma penal em branca
trazida no artigo 11 da lei de lavagem de capitais, visando evitar tal técnica para o
cometimento do delito.
222 BADARÓ E BOTTINI, op.cit., p. 66.
Outra técnica de ocultação utilizada pelos agentes da lavagem de dinheiro está em
misturar o dinheiro ilícito ao capital obtido de alguma forma licitamente por empresa
legalmente constituída. Insere-se o capital ilícito nas inúmeras operações e movimentações,
cujo dinheiro obtido é fruto de atividades legalmente constituídas. Uma modalidade comum
de se perfectibilizar esta técnica consiste na contratação de consultorias, algumas econômicas
e contábeis, que cobram valores subjetivos e usam esses “honorários” como uma forma de
lavar o capital.
A dissimulação, também denominada de estratificação, escurecimento ou
mascaramento, consiste no ato ou conjunto de atos posterior a ocultação. Com a
dissimulação, o bem de origem ilícita é distanciado de sua origem maculada. Consubstancia-
se num ato mais sofisticado que mascarar propriamente a origem ilícita dos bens. Visa
justamente frustrar a tentativa de encontrar a ligação com o crime antecedente e caracteriza-
se, geralmente, em operações financeira entre contas correntes, movimentações de moeda via
cabo, compras e vendas sequenciais de imóveis por valores artificiais, empréstimos
simulados, tudo com o fim de revestir ou dar aparência de legitimidade aos bens de origem
maculada.
Os verbos típicos definem inicialmente essas duas etapas ou fases para a consecução
do delito de lavagem de dinheiro que reclama um processo complexo e bem estruturado, na
maioria das vezes formada por um emaranhado de operações e transferências financeiras para
impedir que as autoridades descubram o iter ou roteiro daquilo que caracteriza o
branqueamento de capitais
224. Para tanto, a doutrina aponta como a primeira fase a ocultação
ou colocação (placement), a segunda etapa sendo o encobrimento ou mascaramento e a
terceira fase consistente na integração ou reinvestimento (integration). Essa última etapa
consiste em retornar aos destinatários os recursos oriundos das atividades ilegais.
Embora não se exija, sob um aspecto puramente objetivo, na lavagem de dinheiro
que os atos de mascaramento sejam complexos ou sofisticados, bastando que os atos de
esconder os bens ou movimentá-los de forma capaz de ludibriar a fiscalização, isso por si só é
insuficiente para caracterizar o branqueamento de capitais. Há que se ater também aos
elementos subjetivos inerentes do tipo penal que consistem na vontade ou intenção de reciclar
o capital, reinserindo-o na ordem econômica como se lícitos fossem
225, isto é,
consubstanciando a última etapa, a integração.
224 LIMA, Vinicius de Melo. Lavagem de dinheiro e ações neutras: critérios de imputação penal legítima.
Curitiba: Juruá, 2014, p. 68.
As condutas dos profissionais contábeis são, por vezes, fundamentais para a primeira
(ocultação) e segunda fase (dissimulação) da lavagem de dinheiro. Isso porque, há atribuições
exclusivas dos contadores, tais quais as a otimização do resultado diante do grau de ocupação
ou do volume de operações; controle, avaliação e estudo da gestão econômica, financeira e
patrimonial das empresas e demais entidades; análise de custos com vistas ao estabelecimento
dos preços de venda de mercadorias, produtos ou serviços, entre tantas outras que só poderão
ser manipuladas por esses profissionais. Ou seja, nenhuma dessas operações poderá ser
viabilizada se não for subscrita por um contador e todas elas, aliadas a outras condutas, serão
necessárias para o encobrimento e a dissimulação dos bens de origem ilícita. É importante
lembrar que as operações de lavagem de capitais, em regra, utilizam pessoas jurídicas, cuja
contabilidade é atribuição exclusiva dos profissionais contábeis.
O caput do artigo 1º da Lei 9.613/98 traz um tipo penal comissivo, pois exige um
comportamento positivo de ocultar ou dissimular valores, bens ou produtos oriundos do
injusto penal antecedente. Não se tem, portando, a modalidade omissiva própria prevista no
crime em comento. Admite-se, todavia, a modalidade omissiva imprópria, o que será
analisado em tópico próprio.
Aliás, outra questão que é discutida na doutrina e que tem efeitos práticos
importantes diz respeito a natureza do tipo penal da reciclagem de capitais quanto ao
resultado. Há quem afirme que seriam crimes de perigo concreto, outros afirmam tratar-se de
crimes de perigo abstrato ou ainda de resultado. Essa discussão doutrinária está longe de
alcançar um consenso, importando aqui salientar que a lavagem de dinheiro na forma típica
do artigo 1º aparenta, nas palavras de Pierpaolo Bottini
226, tratar-se de um crime de resultado.
Isso porque, o comportamento típico descreve uma alteração naturalística do no objeto do
delito, no estado da coisa ou bem procedente do injusto penal. A ocultação e a dissimulação
seriam ao mesmo tempo comportamento e resultado e ambos, portanto, elementos do tipo
penal em comento. Nesse sentido, o Ministro aposentado do Supremo Tribunal Federal
Sepúlveda Pertence já se manifestou no RHC 80816-6/SP
227alegando que a “ocultação é um
evento ou resultado exterior à conduta de ocultar”.
226 Ibid., p. 68.
227 EMENTA: Lavagem de dinheiro: L. 9.613/98: caracterização. O depósito de cheques de terceiro recebidos
pelo agente, como produto de concussão, em contas-correntes de pessoas jurídicas, às quais contava ele ter acesso, basta a caracterizar a figura de "lavagem de capitais" mediante ocultação da origem, da localização e da propriedade dos valores respectivos (L. 9.613, art. 1º, caput): o tipo não reclama nem êxito definitivo da ocultação, visado pelo agente, nem o vulto e a complexidade dos exemplos de requintada "engenharia financeira" transnacional, com os quais se ocupa a literatura. (RHC 80816, Relator(a): Min. SEPÚLVEDA PERTENCE, Primeira Turma, julgado em 18/06/2001, DJ 18-06-2001 PP-00013 EMENT VOL-02035-02 PP- 00249)
A relevância da natureza acerca do resultado no crime de branqueamento de capitais
está no fato de que se concebermos que esses crimes seriam de perigo abstrato, a mera
conduta de ocultar, sem impor qualquer consequência naturalística dificultaria a aplicação da
norma em alguns âmbitos que necessitam de estratégias para o enfretamento à lavagem de
dinheiro. Assim, a título de exemplo, se considerar a lavagem de dinheiro um crime de perigo
abstrato, não se teria como responsabilizar o garante pela omissão dolosa, já que na omissão
imprópria se tem um resultado naturalístico sobre o objeto do delito. Isso será enfrentado em
outro tópico onde se verificará o alcance da posição de garante em relação aos contadores.
Trata-se de um crime comum que pode ser praticado por qualquer pessoa que tenha
disposição dos bens, ou competência e capacidade para empreender atos de ocultação e
dissimulação
228. Há discussões doutrinárias acerca da legitimidade da autolavagem, fenômeno
que consiste na hipótese do autor do delito antecedente ser o sujeito ativo da lavagem de
dinheiro. Algumas legislações, como o Código Penal italiano excluem essa possibilidade, o
que faz com que o delito de reciclagem de dinheiro seja um crime próprio. Todavia, esse não
é o caso da legislação brasileira que, ao silenciar sobre a possibilidade ou não da
autolavagem, aparentemente não a impede. Não obstante há quem afirme que isso poderia
configurar um bis in idem, é consabido que o bem jurídico do crime antecedente não se
confunde com o bem jurídico da lavagem de dinheiro, motivo pelo qual a autolavagem não
seria propriamente uma dupla punição por um mesmo fato. Em suma, o tipo penal pode ser
praticado pelo autor ou partícipe do delito originário, sem que isso configure dogmaticamente
como um sancionamento duplo.
Outra questão complexa acerca da natureza do delito de branqueamento de capitais
é a que se refere ao momento da consumação, o que afeta não apenas a contagem do prazo
prescricional, como também a extensão da “aplicação das alterações da lei de lavagem de
dinheiro no tempo
229”. Nesse critério, classificam-se os delitos em instantâneos, instantâneos
de efeitos permanentes e permanentes.
Os crimes instantâneos são, nas palavras de Pacelli e Callegari
230, “os delitos que se
consumam no momento em que ocorre o resultado, sem que este determine a criação de uma
situação antijurídica duradoura”. Não há uma continuidade temporal, o que não importa que a
prática do delito tenha que ser rápida, imediata, mas sim que tão logo praticado o crime ele
não poderá ser mantido temporalmente pelo autor.
228 BADARÓ E BOTTINI, op.cit., p. 75. 229 BADARÓ E BOTTINI, op.cit., p. 77.
230 PACELLI, Eugênio. CALLEGARI, André. Manual de direito penal: parte geral. São Paulo: Atlas, 2015, p.
Já os crimes permanentes são aqueles delitos em que a consumação se dá com uma
situação ilícita duradoura, isto é, que se mantém ou pode cessar pela conduta do agente.
Nesses crimes, a consumação prolonga-se, protrai no tempo, se estende durante um largo
período. Pierpaolo Bottini
231alude serem os crimes de gerúndio, “que estão acontecendo”.
Esses crimes admitem a coautoria e a participação depois da consumação enquanto se mantém
a situação ilícita e, até esta situação cessar, não se começa a contar o prazo prescricional do
delito, uma vez que, caso isso ocorresse, dar-se-ia o absurdo do crime prescrever sem que os
autores cessassem sua situação ilícita. Esses crimes têm reflexos processuais nas prisões em
flagrante, uma vez que poderá ocorrer enquanto não cessada a permanência, como esclarecem
Pacelli e Callegari
232.
Na doutrina e jurisprudência pátria, sobretudo, há outra classificação que refere
existirem crimes instantâneos, mas com efeitos permanentes. Não faltam críticas sobre esse
critério que não teria muita relevância prática. No entanto, a pertinência da classificação está
vinculada ao fato de que alguns crimes possuem características em que é difícil afirmar se o
delito seria instantâneo ou permanente.
Na lavagem de dinheiro, o verbo ocultar admite interpretações diversas. Ora pode-se
entender como um crime permanente, como uma continuidade criminosa com execução em
andamento enquanto o bem permanecer escondido, ora pode-se interpretar o ato de ocultar
como um delito instantâneo que se consumaria no exato momento em que o bem foi
escondido ou dissimulado. A permanência neste último caso seria uma mera consequência
natural da conduta primária. Na doutrina, majoritariamente, diz-se tratar de um delito
permanente, embora o Supremo Tribunal Federal, no julgamento do Inquérito de número
2471/SP, ao enfrentar a questão decidiu não estar pacificada a natureza do delito, in verbis:
VII – Não fixada ainda pelo Supremo Tribunal Federal a natureza do crime de lavagem de dinheiro, se instantâneo com efeitos permanentes ou se crime permanente, não há que falar-se em prescrição neste instante processual inaugural.
(Inq 2471, Relator(a): Min. RICARDO LEWANDOWSKI, Tribunal Pleno, julgado em 29/09/2011, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-043 DIVULG 29- 02-2012 PUBLIC 01-03-2012)
Essa questão aparentemente deve ser resolvida sob o viés do bem jurídico tutelado.
Como antes apontado, não há uma unanimidade sobre qual bem jurídico a lavagem de
dinheiro afeta. Considerando como sendo a conduta antecedente, a infração pretérita, o crime
231 Ibid., p. 77. 232 Ibid., p. 204.