3 A RESPONSABILIDADE PENAL DOS CONTADORES NOS CRIMES CONTRA A
3.2. Os crimes contra a ordem tributária
3.2.3 Os crimes previstos no artigo 1º da lei 8.137/90
3.2.3.1 Omitir informação ou prestar declaração falsa às autoridades
O inciso I do artigo 1º da Lei 8.137/90 descreve duas formas de condutas para
suprimir ou reduzir tributos: a omissão de informação e a prestação de declaração falsa.
Denotam-se, portanto, duas modalidades de agir, uma omissiva e outra comissiva.
A falta de critérios pelo legislador acerca de qual teoria optou para a configuração
dos delitos de supressão e redução de tributos é patente ao se questionar sobre a exigência da
fraude ou a simples infração ao dever positivo imposto nos delitos omissivos. Isso influencia
toda a adequação típica da conduta na medida em que, concretamente, perquire-se se a
suficiência da simples omissão da conduta devida como o não cumprimento é capaz de
configurar o delito em questão ou se há necessidade de um componente fraudulento que seja
hábil a induzir em erro o Fisco.
A omissão prevista no inciso I é o ponto nevrálgico acerca da discussão dogmática. E
isso se deve ao fato que a própria doutrina dos delitos omissivos já é deveras conturbada.
Com a superação das doutrinas naturalistas e ontológicas, a essência da omissão, nas palavras
de Fabio Roberto D’Ávila
171, “desloca-se, pois, para a norma”. Renuncia-se o conceito
unitário de ação e acata-se uma concepção diferenciadora das condutas. Juarez Tavares
172preleciona que “a lesão ou o perigo de lesão de bem jurídico, em face da multiplicidade de
variantes sociais, muitas vezes não se vincula diretamente à proibição de modalidades de
ações juridicamente indesejáveis, que pela experiência, possam produzi-los, mas à imposição
de deveres concretos que pretendem evitar esses resultados”. Em suma, a essência dos crimes
omissivos está na infração à normas imperativas de conduta. Isso porque, o objetivo do direito
penal é de proibir ações lesivas de bens jurídicos, por um lado, e ordenar ações protetoras de
bens jurídicos, por outro, porque a produção do resultado de lesão do bem jurídico por ação
proibida equivale à não-evitação do resultado por omissão de ação mandada, como destaca
Juarez Cirino dos Santos
173. Desta feita, tipifica-se o crime omissivo quando o agente não faz
o que lhe é juridicamente ordenado.
Essa é a natureza das condutas omissivas que poderá se dar de dois modos, quais
sejam, “mediante a imposição de ações possíveis, que devem ser executadas por todos para
impedir a concretização dessa lesão, ou por quem tenha, em face da assunção de postura
pessoais, o dever de impedir tal resultado
174”. Portanto, dentro das condutas omissivas,
distinguem-se duas modalidades de atuação, os crimes omissivos próprios e impróprios.
Fábio Roberto D’Ávila
175enumera alguns critérios de distinção utilizados pela
doutrina para diferenciar dogmaticamente os crimes omissivos próprios dos delitos
comissivos por omissão. São eles:
a) Critério normológico. Esta classificação, já praticamente abandonada, vale-se da natureza da norma violada, preceptiva ou proibitiva, para diferenciar entre omissões próprias e impróprias. As hipóteses de crimes omissivos próprios seriam de violação de normas preceptivas, de normas que exigem a realização de uma conduta positiva, enquanto os crimes omissivos impróprios violariam normas proibitivas, que estariam voltadas à proibição de um determinado resultado.
b) Crietério de Herzberg. Segundo Herzberg, crimes omissivos próprios são aqueles cujo tipo legal admite a sua realização apenas na forma
171 D’AVILA, Fabio Roberto. Ofensividade e Crimes Omissivos Próprios. Coimbra: Coimbra Editora, 2005, p.
188.
172 TAVARES, Juarez. Teoria dos Crimes Omissivos. São Paulo: Marcial Pons, 2012, p. 294.
173SANTOS, Juarez Cirino dos. Direito Penal Parte Geral. 3ª Ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008. p.213 174 Ibid., p. 294.
omissiva, enquanto por crimes omissivos impróprios entendem-se aqueles cuja realização admite tanto a forma comissiva quanto a omissiva.
c) Critério do dever de garante. Para esta classificação, o elemento distintivo entre as omissões próprias e impróprias consiste na exigibilidade ou não do “dever de garante”, que estaria ausente nas omissões próprias, enquanto, para as impróprias, consistiria elementos fundamental.
d) Critério lógico-objetivo de Schünemann. Os elementos motivadores da classificação “lógico-objetiva” aproximam-se, em alguns pontos, dos motivos que levaram à elaboração do critério do tipo penal. Schünemann não apenas destacava a falta de utilidade do critério do resultado, como também salientava a necessidade de uma denominação que fosse capaz de reunir os crimes omissivos não-escritos. No entanto, diferentemente de Kaufmann, o critério por ele proposto fundamenta-se em um elemento eminentemente material: a equiparação aos crimes comissivos. Assim, aplicando-se o critério “lógico-objetivo” de Schünemann, impróprias são consideradas as omissões que podem ser tratadas, do ponto de vista do direito penal, como equiparáveis à realização por um agir positivo ou, em outras palavras, à não- realização, equiparável à comissão, de uma ação individualmente possível, ao passo que, como própria, designam-se, por uma lógica de exclusão, as omissões não equiparáveis a um agir positivo.
Embora não faltem teorias para diferenciar os crimes omissivos próprios dos
comissivos por omissão, predominantemente dois principais critérios se destacam: o critério
do resultado e o critério do tipo penal. Também denominado de critério tradicional, o critério
do resultado considera o crime omissivo próprio como um ilícito caracterizado pela simples
violação de um dever, ou numa configuração mais recente uma mera desobediência ao
mandamento legal
176, o que independe, por corolário lógico, da existência de um resultado. O
tipo penal dos crimes omissivos próprios não traz o resultado normativamente vinculado que,
aliás, pode sequer existir. No âmbito da omissão seria o equivalente aos crimes de mera
atividade. Ao passo que os crimes comissivos por omissão são aqueles em que a ocorrência de
um resultado típico, além de necessária, coloca o sujeito ativo no papel de garante como a
pessoa que tem o dever de evitá-lo.
Nos crimes omissivos próprios, o resultado, caso exista, será indiferente ao tipo
penal, visto não fazer parte da sua descrição. Essa é uma diferença essencial no critério do
resultado nos crimes omissivos impróprios, em que a ocorrência do resultado típico deveria
ser evitada pela intervenção do garante, ante o fato de se estar diante de uma norma
preceptiva. O resultado típico é, portanto, para os crimes omissivos impróprios o maior
fundamento para essa modalidade de conduta omissiva.
O segundo critério mais utilizado é o formal ou do tipo penal que distingue os crimes
omissivos próprios e impróprios através de uma análise do tipo. Significa dizer que os crimes
omissivos próprios consistem em delitos cuja existência decorre de expressa previsão legal na
qual a omissão está diretamente tipificada
177, diferentemente do que ocorre com a omissão
imprópria em que não há um tipo especificando-a, configurando-se normalmente o resultado
da combinação de uma cláusula geral com o tipo penal de um crime comissivo. A essência
dos crimes omissivos impróprios não estaria, assim, na sua estrutura dogmática, mas sim na
sua feição axiológica que deverá ser levada em conta para delimitar-se a fronteira entre as
duas modalidades de conduta omissiva.
Não obstante o critério que se utilize, a modalidade omissiva prevista no inciso I do
artigo 1º da Lei 8.137/90 é a imprópria, isto é, está-se diante da denominada comissão por
omissão na qual, em linhas gerais, a omissão pode ser equiparada à ação positiva na produção
do resultado requerido pelo tipo
178. Ou seja, “a equivalência da não-evitação do resultado por
omissão de ação à produção do resultado por ação se fundamenta no dever jurídico de agir
para evitar o resultado, atribuído ao garantidor do bem jurídico
179”. A figura do garantidor
nesse tipo de delito é elemento do tipo e, por esse motivo, um critério legal de definição da
posição de garantidor é exigência do princípio da legalidade. Juarez Cirino Dos Santos
180refere que na doutrina penal vislumbram-se dois critérios para definir a posição de garante
nos tipos de omissão imprópria, quais sejam, o material e o formal. Assim, os define:
a) o critério formal ou clássico considera a lei, o contrato e a ação precedente perigosa como fontes do dever de garantia;
b) o critério material ou moderno trabalha com duas fontes alternativas do dever de garantia: 1) por um lado, garantia de proteção/guarda de pessoa determinada (ou de bem jurídico determinado) contra situações de perigo indeterminado; 2) por outro lado, garantia de segurança/vigilância de fontes de perigo determinadas para proteger bens jurídicos indeterminados (ou pessoas indeterminadas).
O legislador pátrio adotou no artigo 13,§2º do Código Penal o critério formal que,
apesar de oferecer segurança jurídica, tem uma natureza limitada e muito rígida, uma vez que
nem a lei, nem a validade do contrato determinariam a posição de garantidor, mas a relação de
confiança (no caso da lei) e a assunção fática da garantia (no caso do contrato). Já o critério
material ou moderno, por sua vez, “é abrangente e flexível – e, por isso, dominante na
177 Ibid., p. 221.
178 BITENCOURT e MONTEIRO, op.cit., p. 110. 179 Ibid. p. 215.
doutrina e jurisprudência contemporâneas -, mas a natureza difusa das categorias conceituais
que o estruturam reduz a segurança jurídica
181”.
Importante são as colocações sobre o tema feitas por Tavares
182que considera que a
partir da criação da posição de garante, a doutrina passa a tomar a omissão, como uma relação
proposicional fática em que a existência deixa de ser subordinada a limites precisos para
constituir, unicamente, como um elemento de juízo de valor a que se estendem desde a forma
de uma configuração empírica – no caso da ação precedente criadora do perigo – até deveres
típicos de organização, passando por proposições puramente semânticas.
Logo, para o autor supracitado, o ponto básico da correspondência da omissão à ação
estaria na constatação, conforme os diversos critérios de observação e inferência admissíveis,
de que, no caso concreto, o sujeito não teria impedido o resultado juridicamente proibido,
ainda que tivesse a capacidade de fazê-lo e, além disso, estivesse igualmente juridicamente
obrigado. Assim, há neste processo alguns fatores intervenientes:
a) a existência de um resultado juridicamente proibido; b) a não ação de alguém; c) a capacidade de atuar por parte desse alguém; d) a submissão desse alguém a um dever de impedir o resultado183.
O processo de correspondência decorre, portanto, de uma indução por analogia com
a própria ação: extrai-se da ação o que ela poderia apresentar, caso tivesse sido realizada, e
com isso se afirma que a ela corresponde a não ação. A questão da posição de garantidor se
insere como elemento desse processo de indução
184.
Nos crimes fiscais, o dever de agir está atrelado, em regra, como já anteriormente
salientado, à existência de obrigação tributária principal, isto é, a obrigação de pagar, que
pode ser originária tanto de um fato gerador, como de uma imposição pecuniária oriunda do
não cumprimento de deveres formais, a denominada obrigação tributária acessória. Não por
outro motivo que uma grande parcela da doutrina considera-os como delitos de infração de
dever em que a comissão por omissão ocorrerá sempre que a omissão do dever de agir
estabelecido na lei tributária, isto é, o não cumprimento da obrigação fiscal, estiver vinculada
à causação de um prejuízo patrimonial à Fazenda Pública
185.
Assim, na comissão por omissão prevista no artigo 1º, inciso I, da Lei 8.137/90 há
que se identificar o garantidor que, em regra, será o sujeito passivo da obrigação tributária,
181 Ibid. p. 215.
182 TAVARES, Juarez. Teoria dos Crimes Omissivos. São Paulo: Marcial Pons, 2012. p. 136-137 183 TAVARES, op.cit. p.137.
184 Ibid., p. 137.
isto é, o contribuinte. Todavia, há próprias exceções previstas na legislação tributária e a
questão atinente à responsabilidade penal quando se trata de pessoas jurídicas o que, de igual
forma, foi prescrito em norma pelo legislador no artigo 11 da lei dos crimes contra a ordem
tributária. Como já foi sobejamente demonstrado, nos crimes omissivos impróprios, há em
seu seio a figura do garantidor, cuja análise desse papel é fundamental para se ter contornos
mais claros sobre os limites das funções dos profissionais de contabilidade, isto é, até que
ponto as omissões podem ser objeto de responsabilização penal ou não e como nesses casos
se daria a autoria ou participação dos contadores.
Juarez Tavares
186sobre o conteúdo material da posição de garantidor elucida que a
doutrina tem se assentado em dois grandes grupos: a) a especial posição de defesa de certos
bens jurídicos e b) a responsabilidade pelas fontes produtoras de perigo. No primeiro grupo
enquadrar-se-iam as situações em que alguém se encontre incapacitado ou sem condições de
proteger seus próprios bens jurídicos e, portanto, outra pessoa ficaria encarregada disso. Há
uma relação de confiança entre uma pessoa que espera a proteção de outra. São exemplos
clássicos a vinculação especial entre o sujeito garantidor e a vítima cujo primeiro, em virtude
de circunstâncias e condições sociais e familiares, fica obrigado socialmente à proteção, tal
como ocorre com relação aos pais, aos irmãos ou dentro da comunidade familiar. Da mesma
forma, as relações profissionais de trabalho, nas quais uma pessoa se obriga profissionalmente
à proteção de outras, o que se dá com os médicos em relação aos pacientes e os engenheiros
para com os usuários das obras. Também se pode citar a assunção por parte de um sujeito de
uma função de proteção unilateral ou bilateral, que independentemente de um contrato forma,
conduza a confiança da proteção do bem jurídico, como o caso da pessoa que ajuda um cego a
atravessar a rua ou daquele que se compromete a exercer a vigilância sobre os filhos alheios
em praças e parques de diversão.
No segundo grupo que trata da responsabilidade pelas fontes produtoras do perigo,
conforme Juarez Tavares
187, pode ser decomposto em outros dois subcasos: a) A situação de
proteção frente a objetos ou comportamentos do próprio sujeito ou que se situem na sua
responsabilidade. Por exemplo, o dono do prédio pelo bom funcionamento de seus
elevadores; o dono de animais pela sua contenção e custódia; o causador de uma situação de
perigo (ingerência) etc.; b) A posição de proteção frente a ações de seus subordinados. Assim,
por exemplo, o delegado para com os atos dos agentes; os pais pelos atos dos filhos menores;
os diretores de hospitais psiquiátricos pelos atos dos enfermos etc.
186 Ibid., p. 137.
Günther Jakobs
188, sobre a questão dos deveres de garante nos crimes omissivos
impróprios, traz outra interessante classificação, dividindo em a) deveres em virtude de
responsabilidade por organização b) deveres em virtude de responsabilidade institucional.
Destaca o doutrinador alemão que a fonte jurídica formal, isto é, a lei, é secundária nessa
classificação, uma vez que não criaria ex nihilo a posição de garante, mas aclararia os limites
da responsabilidade por organização ou de uma instituição. Os deveres em virtude de
responsabilidade por organização abarcariam aqueles deveres que resultem da relação entre
pais e filhos, entre cônjuges, das relações de confiança ou de poder e pelo exercício de
funções públicas, sendo que os que dizem respeito a responsabilidade institucional seriam
àqueles relativos a segurança no trânsito, a ingerência e aqueles advindos de uma assunção
fática.
Como pondera Renata Jardim da Cunha Rieger
189, em meio a tantas discussões
acerca da natureza dos deveres de garante, é possível identificar alguns pontos em comum, “e
um deles é que o dever de garantia deve ser jurídico”. Isso não significa dizer que deva ser
legal, isto é, advindo de uma lei que isoladamente consubstancia o dever de garantia. Por
dever jurídico compreende-se uma juridicidade, uma relação de confiança, que seja apta a
produzir efeitos jurídicos. Além disso, outro ponto em que toda a doutrina está de acordo diz
respeito ao fato de que deveres genéricos de agir, deveres de comunidade são insuficientes
para configurar o dever de garantia. Isso importa afirmar que a condição de garantidor surge
de deveres específicos.
Desta feita, interessa saber se o profissional contábil pode ou deve assumir a posição
de garantidor no crime de redução ou supressão de tributos. Não restam dúvidas que,
conforme o que já foi antes apontado, a responsabilidade, ainda que na esfera tributária não
seja relevada, poderá ser delegada ao contador por meio de um contrato. E isso conduz a
situações fáticas que não podem ser desconsideradas, como por exemplo, quando um contrato
social determina a obrigação do administrador de levar ao Fisco as informações pertinentes
para a cobrança de um tributo, seria ele o garantidor? Num primeiro momento a resposta é
afirmativa, no entanto, aparentemente deve-se analisar até que ponto a conduta omissiva não
perpassa por deveres cujo papel assessório dos contadores é freqüente, senão obrigatório.
A penalização de um administrador ou mesmo de uma pessoa física que confia a sua
contabilidade, seja por situações de obrigações legais (previstas na lei que disciplina as
188 JAKOBS, Günther. Derecho Penal. Parte General. Fundamentos y teoria de la imputación. 2ª ed. Madri:
Marcial Pons, 1997. p.968/969.
189 RIEGER, Renata Jardim da Cunha. A posição de garantia no direito penal ambiental: o dever de tutela do meio ambiente na criminalidade de empresa. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2011. p. 61/62.