3 A RESPONSABILIDADE PENAL DOS CONTADORES NOS CRIMES CONTRA A
3.1. Notas introdutórias: o fenômeno da autorregulação e o direito penal
Afora se tratarem de crimes econômicos que exigem o elemento subjetivo do dolo e
que podem ser realizados tanto sob as condutas comissivas como omissivas, os crimes fiscais
e a lavagem de dinheiro não raro só poderão se perfectibilizar com o auxílio, a contribuição
ou a ajuda de um profissional contábil. Isso porque, nos delitos tributários, a exigência que
determinados documentos, informações, sejam confeccionados apenas por profissionais
habilitados nesse labor dificulta ao cidadão comum cometer esses crimes sem o auxílio ou o
uso de um contador. Isso não significa dizer que os crimes contra a ordem tributária somente
serão realizados por profissionais contábeis ou que eles obrigatoriamente serão partícipes ou
coautores nesses delitos. Deve-se averiguar o alcance do tipo, seja objetivo ou subjetivo da
conduta do contador que, ao elaborar os documentos, pode ou não estar cooperando
conscientemente para o cometimento do delito.
De outra banda, para que se consiga ocultar ou dissimular a natureza, origem,
localização, disposição, movimentação ou propriedade de bens, direitos ou valores
provenientes, direta ou indiretamente, de infração penal, o uso de expedientes contábeis tem
sido bastante usual ao ponto da própria lei de lavagem de dinheiro prever no §2º, II, do artigo
1º que incorrerá na mesma pena àquele que participar de grupo, associação ou escritório tendo
conhecimento de que sua atividade principal ou secundária é dirigida à prática do
branqueamento de capitais. Além disso, com a reforma trazida pela lei 12.683 de 2012,
incluiu-se no inciso XIV, artigo 9º, a obrigação dos contadores de identificar clientes e manter
registros, além de comunicar operações financeiras.
O profissional contábil proporciona uma informação adequada a terceiros
interessados, sejam os clientes pessoas físicas e jurídicas que são atendidos diretamente por
ele, como também os órgãos de fiscalização do Estado que necessitam dessas informações. Há
operações complexas que somente podem se desenvolver em virtude de conhecimentos
especiais de planejamento fiscal através de um profissional habilitado para esse mister. A
tomada de uma decisão econômica de forma calculada e responsável está condicionada à
obtenção de uma informação otimizada e veraz. Essa informação se converte em ferramenta
essencial para se poder operar numa economia livre dentro dos padrões de risco socialmente
aceitáveis
129. Não por outro motivo que se procurou regulamentar internacionalmente a forma
de estruturação da contabilidade, como uma maneira de justamente garantir a necessária
transparência econômica que deve imperar nessas relações.
Para um empresário, por exemplo, a contabilidade demonstra a imagem fiel da
empresa. A falsa informação econômica relativa à atividade empresarial coloca em perigo
interesses patrimoniais de uma pluralidade de agentes da vida econômica e social que afetam
imediatamente a ordem econômica, entendida na sua dimensão supra-individual. Esta ordem
econômica, como restou anteriormente apontado, constitui igualmente objeto de tutela do
Direito Penal e, por tal motivo, a técnica de utilização de crimes de perigo é frequentemente
utilizada. São figuras delitivas que protegem interesses difusos de significação social e
econômica
130.
Nessa conjuntura, pode-se afirma que há um dever de informação contábil, isto é, um
dever de se fornecer a situação real da empresa e que se dá, geralmente, em duas
modalidades: o dever de informação interna e o dever de informação externa. No primeiro
caso, tem-se a obrigação de fidelidade assumida pelo administrador diante da sociedade e dos
sócios. Esse dever tem como fim a proteção da própria empresa e dos sócios e se dirige à
correta formação da vontade no ente coletivo. Como refere Montalvo
131, uma administração
de empresa, para ser leal, tem que proporcionar a devida informação à sociedade e ao sócio.
Até porque, o direito à informação é um dos direitos subjetivos mínimos do sócio.
De outra banda, há o dever de informação externa diante das autoridades
administrativas de controle e frente aos terceiros que atuam no mercado. É inegável que o
interesse público que subjaz em atividades que se desenvolvem em determinados setores
econômicos justifica que as empresas estejam submetidas a determinadas supervisões por
órgãos administrativos de controle. Isso se dá com o COAF, os órgãos de receita, bem como,
no mercado financeiro de bolsa de valores e uma gama de outros órgãos que necessitam de
informações sobre a empresa para fiscalizá-las. Por óbvio, as atuações fiscalizadoras e
regulamentadoras desses órgãos externos serão voltadas para o ramo ou setor em que a
empresa atua.
Do dever de informação externa, cada dia mais presente nas legislações mundiais,
exsurge o denominado fenômeno da autorregulação que afeta numerosos pontos da teoria de
imputação jurídico-penal. A autorregulação consiste numa mudança de paradigma em que o
129 MONTALVO, op.cit., p. 25. 130 MONTALVO, op.cit., p. 27. 131 Ibid., p. 30.
Estado altera os rumos das estratégias reguladoras repassando obrigações de supervisão ao
próprio ente privado para justamente garantir uma melhoria qualitativa e quantitativa na
própria intervenção estatal. Esse fenômeno afeta transversalmente o Direito Penal e obriga
que se revejam questões relativas a instituições dogmáticas que são fundamentais para a
imputação jurídico penal
132. A ideia de autorregulação implica em profundas transformações
das relações entre Estado e sociedade civil que influi diretamente em aspectos básicos da
teoria da imputação jurídico-penal como, por exemplo, a permissão de condutas em âmbitos
relacionados a novos riscos. A autorregulação repensa os termos da clássica questão da
dogmática sobre o papel das regras técnicas extrajurídicas para a determinação do risco
permitido ou da permissão de condutas no âmbito do Direito Penal. Nesse quesito, o papel do
profissional contábil tem uma relevância ímpar, na medida em que há regras que
obrigatoriamente devem ser seguidas na formulação de documentos e que serão utilizados
pelas empresas ou pessoas físicas cuja atribuição é exclusiva do contador. Portanto, na
omissão imprópria, figura dogmática que se verifica tanto nos crimes fiscais como na lavagem
de dinheiro, tem de se analisar quem será o efetivo garante e como a influência do profissional
contábil terá uma relevância no alcance do tipo. O surgimento da autorregulação no direito
administrativo em sentido lato, abarcando as obrigações das empresas para com o Fisco ou o
COAF, é uma forma de controlar o comportamento das corporações e exibe notáveis efeitos
em todo o direito penal, uma vez que condutas comissivas ou omissivas, sob a análise desses
órgãos estatais, podem representar um indício de uma fraude fiscal ou uma simulação para
ocultar bens ou valores. Mas como já salientado, muitas operações têm de ser realizadas
obrigatoriamente pelo profissional contábil, o que implica em verificar quem realmente está
por trás de toda a viabilização da operação suspeita, não se podendo apenas atribuir uma
responsabilidade ao administrador da empresa, mas igualmente ao corpo técnico se alguma
culpabilidade for demonstrada.
A sociedade contemporânea consiste numa sociedade de organizações e de uma
sociedade do risco
133. As organizações empresariais já não podem ser tratadas como uma
soma de indivíduos, mas supõe uma nova realidade social com dinâmicas diferentes dos
indivíduos. Isso leva a repensar os fundamentos da responsabilidade jurídico penal. Cada
sujeito terá um papel dentro da organização que, analisado sob um prisma individualista, na
perspectiva da dogmática penal clássica, poderá levar a uma irresponsabilidade penal
organizada. Isso significa dizer que a tradicional imputação jurídico-penal encontra severas
132 FEIJOO SÁNCHEZ, op. cit., p. 49. 133 FEIJOO SÁNCHEZ, op. cit., p. 50.
dificuldades diante de lesões a bens jurídicos que tem suas origens em certas organizações
humanas ou configurações organizativas próprias das empresas contemporâneas com divisões
horizontais e verticais e, principalmente, uma descentralização de funções e tarefas. É claro
que esse fenômeno não pode ser compreendido como uma forma intencional e maliciosa ou
fraudulenta de esvaziar as responsabilidades dos agentes, senão que se trata mais de um
problema estrutural de toda a organização complexa.
O progressivo e constante aumento da complexidade social, dos níveis de tecnicidade
e o desenvolvimento tecnológico, somados ao avassalador processo de globalização retiram
do Estado, como explica Ivó Coca Vila
134, a capacidade de regulara adequadamente as
estruturas empresariais. Isso porque, a especialização e a profissionalização por setores de
atividade, assim como a complexidade das estruturas organizacionais e os correspondentes
modelos de gestão torna a heterorregulação totalmente inviável. O Estado sequer possui
capacidade financeira para assumir os custos dos processos de regulação, supervisão e sanção
em âmbitos altamente complexos. Logo, diante dessa incapacidade do Estado de intervir
diretamente nesse tipo de organização empresarial, a única opção que resta é a de mitigar o
controle repassando essa função a própria empresa e estimulando uma correta auto-
organização, isto é, uma organização conforme o Direito, que respeite regras e normativas
administrativas. A autorregulação regulada é, assim
un nuevo instrumento de regulación ensayado por el Estado en una fase de transformación del mismo en el que, con carácter general, los instrumentos imperativos de actuación son sustituidos por técnicas indirectas de regulación. Mediante la autorregulación regulada la Administración supervisa la actuación privada de aprobación y aplicación de normas y los controles privados de cumplimiento de tales normas. La Administración debe asegurarse de que los destinatarios de tales normas y controles se sometan realmente a las mismas; y debe garantizar la capacidad técnica y el sometimiento a fines públicos de los sujetos privados que aprueban y controlan la aplicación de estas normas. En definitiva, la Administración debe velar para que la autorregulación privada conduzca, efectivamente, a la minimización de los riesgos generados por quienes se autorregulan135.
A identificação dos deveres contábeis junto às administrações públicas e a atribuição
de responsabilidades individuais recebem contornos mais expressivos no Direito Penal
brasileiro ante o fato de que aqui, à exceção dos crimes ambientais, não está prevista a
responsabilidade penal da pessoa jurídica. Diferentemente do que ocorre em outros países
134 COCA VILA, Ivó. ¿Programas de cumplimiento como forma de autorregulación regulada? In
Criminalidad de empresa y Compliance. Jesús-María Silva Sánchez (Dir) Raquel Montaner Fernández (Coor). Barcelona: Atelier, 2013. p. 45.
onde há previsão de imputação e responsabilização a entes coletivos, no direito penal pátrio
há uma necessidade de individualização, de tal sorte que a autorregulação regulada implica
numa organização interna da empresa em que exista uma atuação conjunta de controles de
Direito Administrativo e de Direito penal. A administrativização do Direito Penal faz com que
o Direito Administrativo deva atuar como ordem primária, estimulando estratégias de
autorregulação, exigindo, por meio de normativas, estratégias de prevenção a riscos, como se
depreende, por exemplo, no COAF. Já o Direito Penal, como ordem secundária, ocupa-se da
responsabilidade individual quando no marco da atividade empresarial se infringem regras
essenciais de convivência, podendo atuar com medidas prospectivas quando a situação da
empresa permite fazer um prognóstico de que se podem voltar a cometer delitos similares
136.
Essas considerações são fundamentais, uma vez que o profissional contábil assume
dentro de uma corporação um papel de elaboração de documentos que serão usados pela
empresa junto aos mais diversos órgãos de controle e fiscalização, tais como o Fisco e o
próprio COAF. Esses órgãos de controle e fiscalização estatais exigem, por meio da
autorregulação regulada, deveres no âmbito empresarial. Os deveres deverão ser cumpridos
por pessoas dentro da organização que embora, por vezes, não tenham cometido crimes
poderão ser afetadas por uma ação penal, justamente, em virtude da posição que ocupam na
empresa e das competências que lhe são atribuídas. É nesse contexto que a identificação das
obrigações dos profissionais contábeis exsurge de forma primordial na criminalidade
empresarial.
Em outras palavras, uma gama de profissionais, entre os quais se destacam os
contadores, tem não apenas o dever de exercer o ofício profissional sob uma perspectiva
strictu senso, como também repassar relatórios à profissionais da área de gestão de controle e
fiscalização que por sua vez deverão informar as autoridades estatais acerca do que ocorre
dentro da empresa. Nesse contexto, surgem deveres de supervisão dos superiores frente aos
inferiores hierárquicos, desenvolvendo-se nas empresas de forma cada vez mais intensa um
sistema de controle de riscos empresariais que difere dos sistemas ordinários de gestão. Isso
provoca, nas palavras de Feijoo Sánchez
137, um duplo fenômeno:
a)una extensión de la responsabilidad en comisión por omisión en el ámbito del Derecho Penal económico (donde tradicionalmente la responsabilidad ha sido por comisión); b) una extensión de la comisión por omisión imprudente en el ámbito empresarial con respecto a los outputs lesivos de la empresa
136 FEIJOO SÁNCHEZ, op.cit., p. 114. 137 Ibid., p. 119/120.
(riesgos ambientales, riesgos para la salud de los consumidores, riesgos relacionados con la seguridad e higiene en el trabajo, etc).
Na Espanha, onde há previsão legal da responsabilidade penal da pessoa jurídica, o
artigo 31 bis 1
138em seu segundo inciso menciona um dever de controle que obriga as pessoas
jurídicas a prevenir e detectar possíveis delitos internamente, um dever cujo descumprimento
pode acarretar na comissão de delitos.
Na legislação pátria não há previsão a essa forma de responsabilidade, todavia, tanto
os crimes fiscais, como os delitos de lavagem de dinheiro, prevêem condutas omissivas, o que
implicará identificar quem deverá ser considerado garante frente às modalidades de omissão
imprópria. E nesse quesito, deve-se perquirir se há possibilidade de delegar ou mitigar a
138 Artículo 31 bis 1. En los supuestos previstos en este Código, las personas jurídicas serán penalmente
responsables: a) De los delitos cometidos en nombre o por cuenta de las mismas, y en su beneficio directo o indirecto, por sus representantes legales o por aquellos que actuando individualmente o como integrantes de un órgano de la persona jurídica, están autorizados para tomar decisiones en nombre de la persona jurídica u ostentan facultades de organización y control dentro de la misma. b) De los delitos cometidos, en el ejercicio de actividades sociales y por cuenta y en beneficio directo o indirecto de las mismas, por quienes, estando sometidos a la autoridad de las personas físicas mencionadas en el párrafo anterior, han podido realizar los hechos por haberse incumplido gravemente por aquéllos los deberes de supervisión, vigilancia y control de su actividad atendidas las concretas circunstancias del caso. 2. Si el delito fuere cometido por las personas indicadas en la letra a) del apartado anterior, la persona jurídica quedará exenta de responsabilidad si se cumplen las siguientes condiciones: 1.ª el órgano de administración ha adoptado y ejecutado con eficacia, antes de la comisión del delito, modelos de organización y gestión que incluyen las medidas de vigilancia y control idóneas para prevenir delitos de la misma naturaleza o para reducir de forma significativa el riesgo de su comisión; 2.ª la supervisión del funcionamiento y del cumplimiento del modelo de prevención implantado ha sido confiada a un órgano de la persona jurídica con poderes autónomos de iniciativa y de control o que tenga encomendada legalmente la función de supervisar la eficacia de los controles internos de la persona jurídica; 3.ª los autores individuales han cometido el delito eludiendo fraudulentamente los modelos de organización y de prevención 4.ª no se ha producido una omisión o un ejercicio insuficiente de sus funciones de supervisión, vigilancia y control por parte del órgano al que se refiere la condición 2.ª En los casos en los que las anteriores circunstancias solamente puedan ser objeto de acreditación parcial, esta circunstancia será valorada a los efectos de atenuación de la pena. 3. En las personas jurídicas de pequeñas dimensiones, las funciones de supervisión a que se refiere la condición 2.ª del apartado 2 podrán ser asumidas directamente por el órgano de administración. A estos efectos, son personas jurídicas de pequeñas dimensiones aquéllas que, según la legislación aplicable, estén autorizadas a presentar cuenta de pérdidas y ganancias abreviada. 4. Si el delito fuera cometido por las personas indicadas en la letra b) del apartado 1, la persona jurídica quedará exenta de responsabilidad si, antes de la comisión del delito, ha adoptado y ejecutado eficazmente un modelo de organización y gestión que resulte adecuado para prevenir delitos de la naturaleza del que fue cometido o para reducir de forma significativa el riesgo de su comisión. En este caso resultará igualmente aplicable la atenuación prevista en el párrafo segundo del apartado 2 de este artículo. 5. Los modelos de organización y gestión a que se refieren la condición 1.ª del apartado 2 y el apartado anterior deberán cumplir los siguientes requisitos: 1.º Identificarán las actividades en cuyo ámbito puedan ser cometidos los delitos que deben ser prevenidos. 2.º Establecerán los protocolos o procedimientos que concreten el proceso de formación de la voluntad de la persona jurídica, de adopción de decisiones y de ejecución de las mismas con relación a aquéllos. 3.º Dispondrán de modelos de gestión de los recursos financieros adecuados para impedir la comisión de los delitos que deben ser prevenidos. 4.º Impondrán la obligación de informar de posibles riesgos e incumplimientos al organismo encargado de vigilar el funcionamiento y observancia del modelo de prevención. 5.º Establecerán un sistema disciplinario que sancione adecuadamente el incumplimiento de las medidas que establezca el modelo. 6.º Realizarán una verificación periódica del modelo y de su eventual modificación cuando se pongan de manifiesto infracciones relevantes de sus disposiciones, o cuando se produzcan cambios en la organización, en la estructura de control o en la actividad desarrollada que los hagan necesarios.