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2 O TRABALHO DO PSICANALISTA EM UM NÚCLEO DE CONVIVÊNCIA DE

4.3 OBJETIVOS DO ESTÁGIO

4.4.3 A reunião de síntese: o trabalho em rede

As reuniões de síntese se caracterizavam pelo encontro entre diferentes equipes dos serviços da rede interinstitucional que acompanhavam as famílias. Elas se desenrolavam a partir do relato das avaliações realizadas pelos profissionais durante os atendimentos em suas instituições. Havia uma ênfase na construção coletiva das hipóteses de trabalho, em uma articulação da rede interinstitucional. A partir da apresentação do que foi possível recolher da escuta dos membros da família, visava-se, como resultado das discussões, à construção de um eixo prioritário que organizasse e desse coerência às diferentes modalidades de acompanhamento.

Dessas reuniões, eu tive a possiblidade de acompanhar aquela que foi realizada para a discussão do caso da família Zaha. Nela, estiveram presentes as seguintes instituições: União Departamental de Associações de Famílias (UDAF)37, escola, Serviço Social Polivalente

36 Informação fornecida pela Profa. Livre-Docente Miriam Debieux Rosa durante um encontro do Laboratório

Psicanálise e Sociedade (IPUSP).

37 Union Départementale des Associations Familiales: reúne movimentos e associações que representam os

interesses das famílias, participando de ações políticas locais e departamentais em Paris (UNION DEPARTEMENTALE DES ASSOCIATIONS FAMILIALES, 2017).

(SSP)38, Proteção Materna e Infantil (PMI) e Assistência Educativa em Meio Aberto (AEMO).

Assim, a seguir, apresento o que cada participante narrou sobre as questões que envolviam a situação dessa família, no que se refere tanto aos pais quanto às crianças, e o que eles observavam por conta do atendimento em seus serviços. E, como resultado da reunião, destaco o eixo prioritário de trabalho com a família, construído a partir da interlocução entre os profissionais e suas avaliações do caso.

Primeiramente, a assistente social da escola na qual estudavam os filhos maiores do casal afirmou que as crianças relatavam que sofriam maus tratos por parte da mãe. Além disso, disse que os profissionais dessa instituição observavam a existência de uma relação conflituosa entre os pais, bem como dificuldades financeiras importantes da família. Especificamente em relação a Idrissa, a assistente social afirmou que ela ingeria pedaços de tecidos – tal como se encontrava no relatório judicial –, tendo crises frequentes na escola. Diante disso, e por conta de outras dificuldades escolares das crianças, ela informou que os profissionais da escola propuseram acompanhamento à família em associações do bairro, no Centro Médico-Psicológico (CMP)39 e por um psicólogo escolar, mas que não houve aderência a nenhuma das propostas de trabalho por parte dos pais.

Em relação ao atendimento realizado no Serviço Social Polivalente (SSP), a assistente social relatou que estavam auxiliando a família com relação às dívidas de aluguel e também em relação às violências conjugais ocorridas. A profissional contou que o senhor Zaha foi sozinho à instituição, não sendo a primeira vez que fazia um acompanhamento nos moldes de uma mediação familiar. Ainda, a profissional relatou que, durante uma das entrevistas realizadas com o grupo familiar, os pais não deixaram de ser agressivos um com o outro mesmo na presença dos filhos. Nesse sentido, ela destacou um episódio, relatado pela senhora Zaha, no qual seu marido arrombou a porta de casa durante a noite para entrar, pois ela havia deixado a chave na fechadura, impedindo sua abertura por fora. Diante de tal relato, o marido deu outra versão para o acontecido, resultando em uma discussão entre o casal durante a entrevista com a profissional.

Em continuidade às apresentações dos serviços, a médica da Proteção Materna e Infantil (PMI) contou que estava acompanhando Eric, filho mais novo da senhora Zaha, e que já acompanhara seus outros filhos. Ela destacou que a mãe não fazia queixas sobre a situação

38 Services Sociaux Polyvalents: este serviço é destinado a pessoas com dificuldades de qualquer natureza:

financeira, social, moradia, entre outras (MAIRIE DE PARIS, 2017).

39 Centre Médico-Psychologique: oferece atendimento médico, psicológico e social em regime ambulatorial,

dos filhos ou sobre a relação com o marido, mantendo um vínculo com a profissional baseado em pouco diálogo.

Já a chefe de serviço da União Departamental de Associações de Famílias (UDAF) descreveu como durante as entrevistas com os profissionais desse serviço o senhor Zaha monopolizava a palavra, sem dar informações claras sobre sua situação e das crianças. Mantinha uma atitude marcadamente depreciativa em relação à sua esposa, inclusive não aceitando que durante a conversa a senhora Zaha pudesse falar e se posicionar. Com resistência, ela falou sobre outra esposa e filhos que seu marido supostamente possuía, o que o deixou bastante desconfortável. No geral, a profissional delineou a relação do casal situando a senhora Zaha numa posição bastante submissa, sendo que ela teria medo de uma atitude violenta por parte do marido.

Em referência ao medo da senhora Zaha de ser vítima de alguma violência do marido, os profissionais discutiram que, na cultura africana, a mulher é situada num lugar de submissão em relação ao homem, o que deveria ser levado em consideração na análise da situação e numa posterior intervenção. Dependendo da origem da família, um divórcio, por exemplo, só pode ser realizado se houver o consentimento de seus familiares (pai, mãe, entre outros), mesmo em uma conjuntura de violência grave. Porém, efetivamente, não ficou claro em que medida eles levavam em consideração essas diferenças culturais, já que, como venho discutindo, não me pareceu haver uma atenção para os efeitos da imigração sobre a dinâmica familiar e a subjetividade de seus membros.

A partir dos atendimentos oferecidos pelo serviço Assistência Educativa em Meio Aberto (AEMO), a educadora contou que, na visita ao domicilio da família, as crianças se mostraram como verdadeiros modelos de bom comportamento40. O que parecia artificial, sustentado na imagem de uma família ideal: crianças alegres, mãe atenciosa e gentil. O que não correspondia ao que se vinha observando sobre a organização familiar até o momento. Ainda, a psicóloga disse que vira Oumar muito agitado, falando vulgarmente e com dificuldades de escrever seu próprio nome. Ao se tocar no tema da família durante um diálogo, ele ficara bastante agressivo: “eu te disse que tudo está bem!”. Com relação as entrevistas com a mãe no serviço, a psicóloga contou que ela chegava atrasada no início, e que falou sobre uma possível separação do marido. Porém havia a questão da dissimetria na relação conjugal, o que dificultava sua efetivação.

40 A educadora dizia em francês enfants modèles, como crianças de capa de revista: comportadas, obedientes,

Como é possível notar, durante essa reunião cada profissional apresentou um aspecto do caso – relação da mãe com o filho, relação entre os pais, sintomas da criança, dificuldades de aderir a determinados encaminhamentos –, de acordo com o objetivo do seu serviço e a especificidade de sua profissão, visando elaborar coletivamente uma compreensão sobre o caso e destacar pistas de trabalho (pistes de travail). Essas pistas são fruto de um compartilhamento e uma interlocução de saberes por parte de cada profissional e de suas formação e função específicas no serviço.

Nesse cenário, o trabalho do psicólogo – psicanalista ou não – é o de destacar a maneira como as relações familiares se estabelecem, evidenciando as dificuldades da mãe e do pai no cuidado de seus filhos. Esse profissional toma o sofrimento dos pais e da criança como norteador para se pensar em intervenções: escutas individuais e da família, visitas à residência ou à escola, entre outras. Assim, a psicóloga do serviço AEMO relatou suas entrevistas com a senhora Zaha e dois de seus filhos, evidenciando a dificuldade dessa mãe em lidar com a independência do filho mais novo, Eric, e o fato de a filha mais velha, Idrissa, não falar sobre seu sofrimento e os conflitos entre os pais. A hipótese da profissional era a de que se evidenciava um silenciamento das crianças em relação às agressões perpetradas pela mãe, sobre a violência conjugal e, principalmente, sobre seu sofrimento particular com toda a situação.

Com base no que foi apresentado por cada profissional, as discussões se deram no sentido de pontuar os conflitos familiares (entre mãe e filhos, marido e esposa), as dificuldades das crianças (queixas de violência, problemas escolares, sintomas, silenciamento de seus sofrimentos) e a maneira como esses elementos se associavam. Em continuidade, forjaram o eixo prioritário de trabalho, no qual se elencava os pontos principais a serem visados no acompanhamento do caso em cada serviço e na rede interinstitucional: tratar das consequências sobre as crianças dos conflitos e da violência do casal parental; trabalhar sobre as relações entre pai e filhos, não observadas até aquele momento; compreender os efeitos da medida educativa sobre o senhor Zaha, já que se observava que a determinação judicial teve efeitos de contorno sobre sua atitude dominadora e hostil.

Com isso, o objetivo era produzir um discurso coerente para que se pudesse sustentar o acompanhamento da família na rede interinstitucional. Ademais, isso permitia que o serviço prestado não fosse fragmentado, evitando que cada instituição ou profissional realizasse uma intervenção isolada. Pois, do contrário, o acompanhamento nas instituições poderia ter efeitos desorganizadores sobre a família.

4.5 CONTRIBUIÇÕES DO ESTÁGIO PARA O TRABALHO DO PSICANALISTA NA