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2 O TRABALHO DO PSICANALISTA EM UM NÚCLEO DE CONVIVÊNCIA DE

3.4 O MANEJO DA ANGÚSTIA DE UMA EQUIPE E OS EFEITOS DE

Neste capítulo, apresentei o impasse que uma equipe vivenciou e que, motivada por um estado de angústia, demandou a realização de uma intervenção visando manejar as dificuldades no acompanhamento de adolescentes em situação de desacolhimento por maioridade.

Em seguida, a partir das proposições de Viganò (2012), formalizei como pode se realizar a construção do caso clínico e a elaboração do acompanhamento institucional singularizado. Sobre isso, destaca-se o saber que é produzido da escuta do sujeito em sua relação com o Outro institucional e social. Um saber que é fruto não do diagnóstico do sujeito, mas do discurso, considerado como laço social.

Nas vinhetas clínico-institucionais, a partir do que é proposto por esse autor, discuti como em um grupo de trabalho sobre desacolhimento institucional de adolescentes por maioridade foi possível elaborar um acompanhamento para Caio através da discussão de seu caso. O que foi realizado com profissionais do serviço de acolhimento no qual o adolescente residia e de outros serviços das redes socioassistencial e intersetorial.

Nesse contexto, gostaria de destacar dois pontos importantes, e que apontam para o trabalho do psicanalista no cenário da Política de Assistência Social a partir da construção do caso clínico: manejo da angústia da equipe e efeitos de problematização de discursos e práticas.

Sobre o manejo da angústia da equipe, destaquei inicialmente que essa angústia estava em referência ao entendimento dos profissionais de que os casos de adolescentes em situação de desacolhimento resultavam em um fracasso. Isso porque colocava em cena situações de uso de drogas, vivência de rua, envolvimento com o tráfico, entre outras.

Em uma perspectiva, a angústia pode paralisar os profissionais na escuta dos adolescentes, dificultando que se reflita sobre como o acompanhamento pode ser elaborado. Essa era a queixa da equipe, pois ela não conseguia compreender o que estava dando errado na modalidade de acompanhamento que eles propunham. Assim, considero que, se a angústia não encontra um contexto para ser colocada em palavras e articulada na construção de algum saber sobre suas fontes, temos como resultado a paralização.

Por outro lado, e penso que é isso o que o grupo de trabalho faz notar, essa mesma angústia pode ser o motor para que um trabalho seja efetivado, produzindo efeitos concretos

no tipo de acompanhamento que se realiza no âmbito institucional. Se a angústia é inserida como um elemento a partir do qual um objetivo é visado, ela pode trazer frutos. Sendo manejada, torna-se produtiva.

A isso se articula a tarefa do psicanalista: reconhecer e acolher a angústia da equipe e, então, propor um tipo de intervenção que venha permitir que ela seja manejada e usada como força motriz para a construção de um trabalho.

Nessa tarefa, não se trata de o psicanalista se colocar como aquele que tem as respostas para o impasse que produz a angústia. Isso poderia ter como efeito a sua diminuição da angústia, porém não permitiria que uma construção coletiva se efetivasse. Desse modo, o psicanalista não visa reduzir a angústia, mas sustentá-la para que assim se possa realizar a escuta do sujeito e a problematização de discursos e práticas. Se os profissionais não se angustiam minimamente com os limites de sua prática, dificilmente se pode instaurar um grupo de trabalho e propor a construção do caso clínico. Enfatizo: não se trata de diminuir a angústia, mas de construir um contexto no qual ela possa ser manejada.

Assim, considero que a angústia dos profissionais deu condições para que o grupo de trabalho ganhasse vida, bem como que a elaboração do acompanhamento singularizado se efetivasse. Ao demandarem um espaço para que o desacolhimento institucional pudesse ser colocado em questão, a equipe pôde dizer o que se passava quando do acompanhamento do adolescente em situação de desacolhimento. As dificuldades, as impossibilidades, as decepções e o sentimento de impotência ganharam palavras numa transmissão coletiva, ouvidas por outros profissionais, igualmente a par das vicissitudes do trabalho socioassistencial.

A equipe do serviço de acolhimento tornou público o que se passava no privado da instituição. Como efeito, os profissionais puderam compartilhar as dificuldades de se elaborar o acompanhamento de Caio. Aos menos em parte, tiveram a oportunidade de dividir com os participantes do grupo sua responsabilidade. Essa grande responsabilidade que era produzir uma intervenção decisiva na vida do adolescente. Ainda, ao se revelarem para o grupo, tornaram pública uma situação silenciada na rede de serviços públicos: as dificuldades que atravessa o desacolhimento institucional e a inexistência de uma política pública que realmente incluísse essa questão em sua pauta (FERREIRA, 2017).

O que se estende aos outros participantes do grupo, de serviços das redes socioassistencial e intersetorial, que, de acordo com suas possibilidades, contribuíram a partir de suas experiências para a reflexão sobre os vários aspectos do acolhimento, do

desacolhimento e das práticas no campo da Assistência Social. Sem esses interlocutores, não teria sido possível chegar aos resultados a que chegamos.

O encontro de todos esses profissionais, assim, caracterizou-se como a efetivação do que a política pública prevê, qual seja: articulação da rede de serviços públicos. Como encontramos na PNAS (BRASIL, 2005):

[...] a operacionalização da política de assistência social em rede, com base no território, constitui um dos caminhos para superar a fragmentação na prática dessa política. Trabalhar em rede, nessa concepção territorial significa ir além da simples adesão, pois há necessidade de se romper com velhos paradigmas, em que as práticas se construíram historicamente pautadas na segmentação, na fragmentação e na focalização, e olhar para a realidade, considerando os novos desafios colocados pela dimensão do cotidiano, que se apresenta sob múltiplas formatações, exigindo enfrentamento de forma integrada e articulada (p. 44).

Com isso, podemos considerar que o trabalho dos pesquisadores (e psicanalistas) de manejar a angústia da equipe através de um grupo de trabalho, caracterizado pela construção do caso clínico, colocou em cena uma prática democrática, sustentada pela autogestão e pela autoanálise. Em consequência, produziu-se um distanciamento da simples instrumentalização técnica e burocrática dos profissionais e das instituições, fazendo jus a uma concepção de cidadania e da defesa da implementação de direitos civis, políticos e sociais (BENELLI; FERRI; JUNIOR, 2015).

No que se refere à problematização de discursos e práticas, pode-se colocar em questão o discurso preponderante sobre o desacolhimento institucional e a prática decorrente desse discurso. Em um primeiro momento, os casos de desacolhimento eram pensados como um caso social, tal como refere Viganò (2012), marcado por um acompanhamento jurídico e assistencial. Assim, o adolescente era concebido como aquele que, aos dezoitos anos, como previsto no ECA (1990), chegava à maioridade, tendo que estar, assim, apto à vida adulta. A isso, como aponta Ferreira (2017), articulava-se a concepção desenvolvimentista veiculada na política pública, a partir da qual o sujeito é visto como aquele que vai, ao longo da vida, superando determinadas etapas até alçar a maturidade.

Com isso, ancorados no discurso jurídico, atravessado pela concepção desenvolvimentista, os participantes do grupo afirmavam que o acompanhamento a ser oferecido ao adolescente deveria visar a que ele fosse autônomo e independente ao fim de sua estadia na instituição. Como resultado, eles propunham um conjunto de ações assistenciais, caracterizadas por ensinar o adolescente a lidar com dinheiro, a cuidar dos afazeres de casa, a

ser responsável, a não se envolver com drogas, entre outros. Além disso, os participantes do grupo pressupunham que a contribuição do serviço de acolhimento, e de seus profissionais, por exemplo, articulava-se a ajudar o adolescente a alugar um imóvel, a mobiliá-lo e a manter sua contratação no trabalho.

Como resultado, diante dos desacolhimentos institucionais que não eram considerados bem-sucedidos, considerando apenas os aspectos jurídicos e assistenciais, surgia uma culpabilização do serviço de acolhimento por fracassarem em fazer com que os adolescentes, aos dezoito anos, estivessem prontos para viver sozinhos, conseguindo realizar tudo o que era previsto no acompanhamento elaborado em referência ao caso social.

Nesse contexto, sem negar a importância do caso social, mas, sim, apontando os limites de um acompanhamento apenas baseado nessa perspectiva, o que a construção do caso clínico introduz é que existem outras questões a serem levadas em conta quando do acompanhamento dos adolescentes na situação de desacolhimento por maioridade. Tais questões se referem à relação que o sujeito estabelece com o Outro institucional e social, evidenciadas a partir da escuta da fala do adolescente realizada pela equipe que o acompanha.

Além do que descrevo nas vinhetas clínico-institucionais, revelando o desamparo do adolescente quando da saída da instituição, o grupo de trabalho, bem como a construção do caso clínico, possibilitaram que os discursos e as práticas que cito acima fossem questionadas, apontando para o surgimento do discurso analítico. Indo além do discurso jurídico, desenvolvimentista e assistencial, que pressupunham uma prática baseada em um saber sobre as necessidades do adolescente anterior à sua escuta, o discurso analítico introduz uma prática sustentada pelo saber que se constrói a partir da fala do adolescente sobre a situação que vivenciava. A partir disso, em referência ao caso de Caio, os profissionais puderem se colocar como aprendizes, sendo que quem ensinava qual o melhor acompanhamento a se propor era o próprio sujeito. Então, a partir da fala do sujeito, considerando sua relação com a instituição, a equipe do serviço de acolhimento se colocou como amparo para a travessia do adolescente da cena institucional à social.

Em suma, o trabalho do psicanalista no cenário da Política de Assistência Social pode ser o de contribuir para a construção do caso clínico em equipe, visando à elaboração de um acompanhamento singularizado. Isso pode ter como efeitos a problematização de discursos e práticas e a possibilidade de os profissionais se questionarem sobre o seu papel diante dos usuários dos serviços.

4 RELATO DE ESTÁGIO EM UM SERVIÇO DE ASSISTÊNCIA EDUCATIVA EM MEIO ABERTO FRANCÊS

Neste capítulo, apresento as minhas motivações para a realização de um estágio em um Serviço de Assistência Educativa em Meio Aberto (AEMO) em Paris. Destaco a função desse serviço, o objetivo do estágio e as atividades realizadas. Em seguida, apresento vinhetas clínico-institucionais acerca da minha experiência no estágio, realizando algumas análises a partir da minha participação em reuniões e em uma entrevista realizada por uma psicóloga clínica. Por fim, faço uma breve discussão sobre as contribuições desse estágio para se pensar o trabalho do psicanalista na política socioassistencial brasileira.