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Sigmund Freud, ao longo de sua obra, apresenta uma intricada relação entre sujeito e sociedade. Para elucidar impasses que surgiam durante suas pesquisas, buscou conhecimentos exteriores ao campo psicanalítico, abordando questões sociopolíticas a partir da psicanálise (ROSA, 2004a).

Em Deve-se ensinar psicanálise nas universidades?, por exemplo, Freud (1919/2010) afirma que, na investigação dos “processos psíquicos e as funções intelectuais, a psicanálise segue um método próprio, cuja aplicação não se limita ao âmbito dos distúrbios psíquicos, mas se estende igualmente à resolução de problemas na arte, na filosofia e na religião”. O autor articula aspectos individuais, apresentando vinhetas clínicas de seus atendimentos, a aspectos sociais, recorrendo a materiais literário, científico e social e às suas experiências pessoais. Na primeira situação, utiliza conteúdos obtidos da escuta de seus pacientes, e, na segunda, da “escuta” da cultura e de sua experiência como pesquisador.

Já em O ‘Estranho’, Freud (1919/2006) analisa o Unheimlich a partir do uso linguístico dessa palavra, da obra literária O Homem de Areia, de E. T. A. Hoffmann, da análise de pacientes neuróticos, da teoria psicanalítica e de sua própria experiência com o Unheimlich – o que aponta a relação estreita das pesquisas clínica e social. Ademais, indica a impossibilidade de se sustentar a noção de neutralidade no campo psicanalítico, estando o pesquisador irremediavelmente embaraçado ao ato de pesquisar.

Nesta perspectiva, aproximamo-nos da proposição de Sauret (2003): na ciência moderna, o saber está do lado do pesquisador e de sua capacidade de produzir questões, tirando delas suas próprias conclusões. Para esse autor, com a divisão entre verdade e saber fundamentada por Descartes, o homem pôde se emancipar da certeza divina, situando-se como agente responsável pela produção de seu conhecimento:

A ciência não poderia se livrar dos limites do saber para ir dar uma volta do lado do real, simplesmente ao deixar que se nomeassem seus mecanismos lógicos. É necessário um sujeito que seja orientado, precisamente, pelo que ele não sabe – paixão da ignorantia docta. Nesse sentido, só há real para um sujeito; se a matemática, os discursos, as práticas etc. têm seu real, é sempre com a condição de que haja um sujeito que consinta em ‘esbarrar’ nele (SAURET, 2003, p. 92, grifo do autor).

Desse modo, na pesquisa em psicanálise, desde Freud, o pesquisador está às voltas com um não saber que o toca, orientando suas investigações. Ademais, aquele que empreende a pesquisa pode ser compreendido como “dado” de seu campo de pesquisa e de seu objeto de estudo. Isso porque não há pesquisador sem subjetividade, nem interpretação dos fenômenos pesquisados sem sujeito.

Nessa acepção, Castro (2008, p. 29) afirma que “não há uma extemporaneidade do pesquisador em relação ao ato de pesquisa”, pois sempre se transforma o objeto pesquisado. Assim, toda pesquisa pode ser considerada interventiva. Da pesquisa teórica à pesquisa de campo, a intervenção do pesquisador sobre seu objeto de estudo é patente, produzindo transformações seja na intervenção com grupos ou na produção teórica. No primeiro caso, intervém-se sobre o discurso dos sujeitos e, no segundo, sobre determinado campo de saber (GARCEZ; COHEN, 2011).

Decorre daí que a pesquisa é coerente com o método psicanalítico, posto que o psicanalista é, por imposição de seu trabalho, um pesquisador. Como afirma Nogueira (2004, p. 83), “a metodologia científica em Psicanálise confunde-se com a própria pesquisa, ou seja, a psicanálise é uma pesquisa”. Na escuta dos pacientes em seu divã ou do idoso em um serviço socioassistencial, na leitura dos textos freudianos e lacanianos, na supervisão clínica e na transmissão de sua experiência, o analista está às voltas com a articulação clínica e teoria.

Nesse contexto, o presente estudo não pretende estabelecer uma distância “segura”, baseada na noção de neutralidade; pelo contrário, essa investigação inclui a participação do pesquisador no campo de “coleta de dados”. Com efeito,

Aqui desaparece a respeitosa distância entre “pesquisador” e “referencial teórico” para dar lugar a um corpo-a-corpo do qual a psicanálise, Deus seja louvado, não sairá tal como entrou. Isso é, aliás, digno de nota: na academia ou fora dela, uma “pesquisa com o método psicanalítico” é sempre obra de psicanalista e capaz de trazer novidades à própria psicanálise (FIGUEIREDO; MINERBO, 2006, p. 259).

Em continuidade a essa perspectiva, considero que a elaboração de um método de pesquisa em psicanálise não pode ser considerado desde uma estrutura que anteceda o próprio percurso da investigação. Ainda que tenhamos pistas e questões originadas da experiência,

norteadoras do estudo, as quais nos possibilitam propor antecipadamente um método de coleta de dados, de intervenção e pesquisa bibliográfica, em psicanálise os achados podem nos surpreender, validando ou nos levando a descartar o planejado. Desse modo, a pesquisa em psicanálise se caracteriza pela construção de um método conveniente para o objeto de estudo investigado, bem como para alcançar o objetivo proposto.

Ainda, em função do meu objeto de estudo – o trabalho do psicanalista na Política de Assistência Social – bem como de meu objetivo geral – investigar como se dá o seu trabalho nessa política pública com os usuários e na interlocução com a equipe – é que nosso método de pesquisa foi se delineando em articulação com a nossa experiência, nossa prática. O meu trabalho se tornou o “dado” coletado para a análise a partir da descrição da experiência, resultando, em seguida, em uma possível conceituação, tal como afirma Nogueira (2004):

[...] da psicanálise fica a descrição. Ela parece muito singular, mas de fato não é. Desde o momento em que você começa a falar sobre uma coisa você já coloca a realidade no nível da linguagem. Isso já é pesquisa. Mas a Psicanálise conceitua, constrói conceitos sobre essa experiência (p. 103).

Isso aponta para uma questão importante tanto para a prática psicanalítica quanto para a pesquisa em psicanálise: cada encontro do psicanalista com seu objeto de estudo é particular e, portanto, precisa ser tomado de maneira particular – e nova – desde o método e teorização psicanalíticos. Como propõem Frayze-Pereira (2005), Mezan (2011), Figueiredo (2011) e Rosa (2013, 2016), da escuta flutuante do analista sobre o fluxo associativo do paciente, da obra de arte, do evento sociocultural ou do discurso sociopolítico e institucional podemos esperar como resultante um saber que possa ser considerado inédito.

Este ineditismo se refere ao esforço que cabe ao psicanalista em seu ofício. Contrariamente a um movimento de reproduzir velhas formas, mimetizando um conhecimento já estabelecido sobre determinado tema ou situação, o analista dia a dia faz o exercício de escuta do objeto e de uma forma de abordá-lo na particularidade do encontro analista-objeto. O que nos leva a considerar que não necessariamente uma intervenção que um psicanalista realizou em determinada instituição servirá para outro cenário institucional. Isso porque o saber em psicanálise não é uma orientação técnica nem um parâmetro burocratizado prontos a serem utilizados sem os rearranjos suscitados pela conjuntura na qual a psicanálise é exercida. Mas, ainda assim, pode sinalizar direções e princípios para futuras intervenções.

Nesse âmbito, tomar nossa experiência como objeto a ser investigado, propondo seu acesso pela descrição e conceituação, é próximo à construção do caso. E mais, um caso

atravessado pela coletividade, pois se trata do trabalho do psicanalista com alguns outros e o Outro mediado pela relação transferencial. Como afirma Nogueira (2004), tal relação “é um fenômeno humano, não é psicanalítico, é um fenômeno que ocorre, justamente, nas relações entre os falantes” (p. 86). Ou seja, nesta pesquisa, o caso em psicanálise é o resultado da transferência que se estabelece entre o psicanalista e o sujeito, o psicanalista e a equipe na instituição.

Ainda, como aponta Rosa (2004a):

A transferência apresenta-se como instrumento e método não restritos apenas à situação de análise. Se partirmos do princípio de que em outras situações (não estritamente analíticas) o método não se aplica, seus fenômenos não resultam da associação livre, temos que admitir que o inconsciente está restrito às manifestações do tratamento psicanalítico, à prática clínica. Ora, tal constatação significa, acima de qualquer consideração, desprezar o fato de que o inconsciente está presente como determinante nas mais variadas manifestações humanas, culturais e sociais. O sujeito do inconsciente está presente em todo enunciado, recortando qualquer discurso pela enunciação que o transcende (p. 341).

Desse modo, se a construção de um caso se dá pela descrição de aspectos subjetivos do analisante, evidenciados na escuta do psicanalista sob transferência, resultando em uma conceituação, propomos que a construção do caso aqui seja encarada como a descrição da experiência do psicanalista na relação transferencial com os usuários e a equipe de serviços socioassistenciais, tendo como consequência a proposição de um formalização teórico-prática.

Os contextos da pesquisa foram os seguintes:

• Núcleo de Convivência de Idosos (NCI): serviço socioassistencial gerido por uma organização não governamental, conveniada à Prefeitura Municipal de São Paulo. Está situado em um bairro periférico na zona sul da cidade de São Paulo. Nesse serviço, trabalhei como técnico-psicólogo contratado de fevereiro de 2013 a outubro de 2014. O capítulo correspondente a essa experiência foi construído a partir de minhas anotações pessoais.

• Grupo de trabalho sobre desacolhimento institucional de adolescentes por maioridade: intervenção realizada em parceria com a pesquisadora Mariana Belluzzi Ferreira e com profissionais das redes socioassistencial e intersetorial em um território na zona leste da cidade de São Paulo. Foi feito em cinco encontros realizados entre dezembro de 2015 e dezembro de 2016. O capítulo referente a essa experiência foi elaborado com o auxílio do diário de bordo dessa intervenção.

• Serviço de Assistência Educativa em Meio Aberto (AEMO): serviço público vinculado ao sistema de proteção à infância e adolescência francês, localizado na cidade de Paris. Nesse local, realizei um estágio em outubro de 2016. O capítulo dessa experiência foi produzido a partir do diário de bordo do estágio. Por fim, destaco que a pesquisa foi submetida e aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (CEPH-IPUSP) – CAAE 51846515.2.0000.5561. Sendo que, na realização do Grupo de trabalho sobre desacolhimento institucional de adolescentes por maioridade, os participantes assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, no qual se explicitavam os objetivos da pesquisa, a forma de utilização dos dados coletados e o sigilo quanto à identidade dos participantes. Quanto aos dados coletados no Núcleo de Convivência de Idosos e no Serviço de Assistência Educativa em Meio Aberto, sua apresentação segue os preceitos éticos, sendo omitidos nomes e outros dados que possibilitem a identificação das instituições, dos usuários e dos profissionais.

Antes de passar à estruturação dos capítulos, não posso deixar de demarcar que esta pesquisa é tributária das discussões feitas no Laboratório Psicanálise e Sociedade (IPUSP) e no Núcleo de Pesquisas Psicanálise e Política (PUC-SP), coordenados pela Profa. Miriam Debieux Rosa, onde se reúnem pesquisadores de mestrado, doutorado e pós-doutorado que teorizam e elaboram intervenções clínico-políticas.