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Ao destacar o pressuposto desta pesquisa, busco evidenciar que toda prática não é isenta de preconcepção. O que difere um tipo de prática de outra é aquilo que a embasa, a sustenta. Nesse sentido, não existe profissional ou pesquisador que não adentre a instituição ou a política pública sem carregar consigo um cabedal de saberes forjados a partir de sua formação e de sua experiência.

Como relatei, minha formação é determinada pela psicanálise – Freud e Lacan – forjada a partir de análise pessoal, supervisões clínicas, estudo teórico e experiência clínica. Diante disso, não posso me furtar a colocar em evidência que meu objetivo em todo o trabalho realizado no campo socioassistencial foi o de poder sustentar um lugar que corresponda ao do psicanalista. O cargo de técnico-psicólogo me conferia um outro lugar na instituição, mas não inviabilizava que fosse possível reconhecer os efeitos do inconsciente – fosse na escuta dos usuários ou na interlocução com a equipe. Ainda, é somente porque existe o cargo técnico de psicólogo no cenário da Política de Assistência Social que o psicanalista pode aí comparecer. Nessa perspectiva, considero que ser psicanalista na instituição é assumir uma posição que se

sustenta desde a hipótese do inconsciente7 presente em todas as relações e contextos sociopolíticos – como demonstram os autores que apostam em uma psicanálise implicada (FRAYZE-PEREIRA, 2005; MEZAN, 2011; FIGUEIREDO, 2011; ROSA, 2013, 2016).

Em proximidade a essa perspectiva, podemos encontrar trabalhos de psicanalistas nas instituições de saúde (MORETTO, 2006, 2013; MORETTO; PRISZKULNIK, 2014) e de saúde mental (FIGUEIREDO, 1997; RINALDI, 2017; ALENCAR, 2011; ALENCAR, 2016) realizando a aposta de que é possível fazer psicanálise e sustentar a posição de psicanalista fora do setting tradicional. Ainda, a psicanálise e sua contribuição são reconhecidas também para se pensar práticas institucionais e profissionais no campo educacional (KUPFER, 2007; VOLTOLINI, 2011; LAJONQUIÈRE, 2010; BRAGA, 2011, 2014) e jurídico-social (ALTOÉ, 2007, 2008, 2009, 2010; MARIN, 2011). Nos estudos realizados por esses autores, podemos reconhecer que o saber que o psicanalista elabora da escuta do sujeito e de sua relação com o social e a instituição pode surgir como uma contribuição, muitas vezes decisiva, para se refletir sobre as atividades realizadas no âmbito institucional.

No campo socioassistencial, no que se refere à contribuição do psicanalista, encontra- se estudos como os de Poli (2005), que, a partir do atendimento clínico de adolescentes que vivem em instituição, elabora uma teorização sobre uma adolescência experienciada nessas condições. No mesmo sentido, Altoé e Silva (2013) discutem como se dá a clínica com crianças e adolescentes abrigados. Enquanto isso, Ferreira (2017) apresenta um estudo sobre o silenciamento que marca o desacolhimento institucional de adolescentes por maioridade na política pública. E, ainda, Broide (2004, 2008) e Martins (2014) apresentam uma discussão sobre a violência que envolve os jovens da periferia. São apenas alguns dos estudos de psicanalistas que se amparam na escuta do sujeito e sua relação com a instituição e a sociedade, propondo reflexões que contribuem para o avanço da política pública na medida em que oferecem subsídios teórico-práticos para os profissionais que nela atuam.

Assim, vemos nas áreas da saúde, educação, assistência social e jurídica a presença de psicanalista e/ou a contribuição da psicanálise para a reflexão e a produção de novos paradigmas para se elaborar e conduzir as atividades nas instituições.

Especificamente no que se refere à Política de Assistência Social (BRASIL, 2005) e suas instituições, talvez em razão de seu nascimento tardio – 2004 –, ainda encontramos estudos iniciais sobre o trabalho do psicanalista nesse campo. Ainda mais se considerarmos as

7 Aqui o inconsciente é considerado como a cadeia de significantes que se repete e insiste em uma Outra cena

(LACAN, 1998c). Sendo esta Outra cena compreendida como o discurso sociopolítico e institucional, que a escuta do psicanalista pode revelar a estrutura e seus efeitos para além do sentido corrente.

produções que surgem da experiência do psicanalista como trabalhador social, ou seja, funcionário contratado – como psicólogo, por exemplo.

Sobre esse aspecto, a meu ver, há uma diferença fundamental em se elaborar uma pesquisa e uma produção teórica desde a sua inserção no campo de estudo como pesquisador e como pesquisador-funcionário contratado da instituição. Como pesquisador, por mais participativa que seja a pesquisa, ainda assim se está em uma posição de exterioridade. Pois, não sendo funcionário, não se está submetido as vicissitudes institucionais que envolvem condições de trabalho, remuneração, dificuldades no acompanhamento dos usuários, impasses no trabalho com a equipe, imposições institucionais, entre outros.

Assim, nesta pesquisa, optou-se por destacar os estudos forjados a partir da experiência do pesquisador como funcionário contratado. Não por negar a importância das pesquisas daqueles que não estão nessa posição, mas pelo interesse de produzir uma formalização teórico-prática que se aproxime de minha experiência enquanto psicólogo e psicanalista em serviços socioassistenciais. Afinal, como em toda pesquisa, é preciso se realizar escolhas e fazer recortes, sustentando o risco de nossas decisões.

Diante dessa diferença, ressaltando o trabalho do psicanalista a partir do cargo de técnico-psicólogo, encontramos estudos sobre a escuta do sujeito e a problematização de discursos e práticas. São dissertações de mestrado, teses de doutorado e artigos que revelam as vicissitudes de se adentrar as instituições socioassistenciais e ali realizar uma prática pautada pela ética e política psicanalíticas. Nessas investigações, é possível reconhecer ao menos duas concepções do trabalho do psicanalista na instituição. A primeira parece pautada por uma concepção próxima à do setting tradicional, nas quais os discursos social e institucional não parecem efetivamente ser considerados (MARIANO, 2011; PEREIRA; NICOLAU, 2012; SOUZA et al., 2015; PAULA; PAIVA, 2015). Já a segunda aproxima-se do viés da presente pesquisa, a escuta do sujeito é articulada à problematização de discursos e práticas construídas no âmbito da política pública socioassistencial, enfatizando seus efeitos sobre a vida dos usuários e o trabalho dos profissionais (SCARPARO, 2008; SANTOS, 2010; MOREIRA, 2010; CHATELARD; KRÜGER-BONANI, 2010; ROGONE, 2006; SOUZA, 2012; SUSIN, 2012; SOUZA; MOREIRA, 2014).

Tais estudos serão retomados e discutidos detalhadamente no Capítulo 1, mas adianto que eles apontam para a possibilidade de o trabalho do psicanalista trazer contribuições para a execução da política pública. E também para a elaboração do acompanhamento de usuários, considerando o sujeito em sua singularidade e o seu lugar na sociedade e na instituição.

Vale destacar que, mediante esta revisão de literatura, revelou-se que não é expressivo o número de estudos acadêmicos sobre o trabalho do psicanalista contratado como psicólogo em serviços socioassistenciais, apontando que se trata de um campo de investigação em início de construção. Ainda, não se evidencia nesses estudos pesquisados que o trabalho do psicanalista é pensado na interlocução com a equipe. Assim, esta pesquisa surge como uma tentativa de contribuir para avanço das discussões e de formalizações teórico-práticas que sustentem uma prática psicanalítica neste cenário.