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2 O TRABALHO DO PSICANALISTA EM UM NÚCLEO DE CONVIVÊNCIA DE

3.2 A CONSTRUÇÃO DO CASO CLÍNICO

3.3.1 Sobre a constituição do grupo de trabalho

Após a elaboração da metodologia da intervenção e dos contatos iniciais com profissionais de serviços de acolhimento e do Centro de Referência Especializado de Assistência Social (CREAS), a proposta de realização da pesquisa e do grupo de trabalho foi encaminhada para avaliação da Secretaria Municipal de Assistência Social (SMADS).

O parecer dessa secretaria para a autorização da pesquisa foi favorável para a realização de entrevistas com os profissionais dos serviços de acolhimento e do CREAS, porém contrário à proposta de intervenção. A justificativa foi que não seria possível garantir a participação dos profissionais, principalmente de outras secretarias (saúde, educação, entre outras) e, principalmente, por não reconhecerem a existência de uma demanda para realização de um grupo de trabalho sobre o desacolhimento institucional por maioridade de adolescente. A informação era a de que a natureza da atividade correspondia à articulação de rede, já existente no território.

Assim, para que o trabalho fosse levado adiante, os profissionais do serviço de acolhimento permitiram que os encontros iniciais do grupo fossem realizados em suas dependências. Porém, com o desenvolvimento da atividade, mediante o convite de profissionais do CREAS, transferimos o local dos encontros para o prédio desse serviço. O que nos pareceu de grande relevância, pois tal instituição tem um papel fundamental na supervisão e articulação dos serviços da rede socioassistencial no território.

Os encontros iniciais do grupo foram palco de muitas queixas dos profissionais sobre as dificuldades no trabalho socioassistencial, inclusive da angústia em relação ao acompanhamento dos adolescentes acolhidos e em situação de desacolhimento ou desacolhidos. Se por um lado alguns profissionais, como a coordenadora de um SAICA (Serviço de Acolhimento Institucional para Crianças e Adolescentes), sentiam-se angustiados por não poderem ajudar alguns adolescentes desacolhidos, e que viviam em situações de grave risco pessoal, por outro havia a tendência de outros profissionais de localizar os problemas – e a fonte de sua angústia – no Estado.

Como exemplo, cito a fala do psicólogo de uma República Jovem22: “estamos aqui falando de ética, mas temos um Estado perverso...”. Ele afirmava que o Estado era o

22 A República Jovem é um serviço de acolhimento para jovens em situação de vulnerabilidade social e risco

pessoal; com vínculos familiares rompidos ou fragilizados; em processo de desligamento de instituições de acolhimento e que não tenham possibilidade de retorno à sua família de origem, colocação em família substituta e/ou não possuam meios para a sua autossustentação. O tempo máximo de permanência dos jovens nesse serviço

responsável pelos impasses vivenciados pelos trabalhadores e pelos cidadãos, indo ao extremo de dizer que era inútil a proposição do grupo de trabalho, pois radicalizava o “poder do Estado”, atribuindo-lhe totalmente a responsabilidade pelas mazelas sociais.

Diante disso, os pesquisadores precisaram intervir, apontando que também nós somos o Estado e que estávamos ali para tentar estabelecer um caminho diferente do atual – como ele dizia, “perverso” – para os adolescentes que saem por maioridade do serviço de acolhimento. E que apostávamos que isso poderia ser feito por meio de iniciativas como aquela, em que os profissionais que lidavam com o fenômeno se unissem em prol da busca de uma solução.

Nesse contexto, era necessário encontrar uma maneira de localizar e dimensionar as dificuldades sobre o tema sem reduzi-las à angústia ou queixa diante dos impasses, pois isso resultava em um sentimento de impotência, que paralisava as discussões, e de desesperança, que impossibilitava vislumbrar um futuro diferente.

Como solução para os encaminhamentos das reflexões para esse sentimento de impotência, uma profissional de um serviço jurídico indicou uma organização em dois níveis para as questões que vínhamos refletindo: o nível macropolítico e o nível micropolítico. O que teve um efeito muito importante de arranjo em nosso trabalho.

Assim, o nível macropolítico passou a se referir à política pública como um todo: leis, orientações técnicas, funcionamento dos serviços, implementação de equipamentos, entre outros. Sobre esse aspecto, visando suscitar uma atenção maior para o fenômeno do desacolhimento por maioridade, elaboramos uma carta-documento. Foi destinada aos órgãos públicos e a profissionais que mantêm alguma relação com a questão do desacolhimento, relatando as problemáticas e sugerindo uma ampla discussão intersetorial.

Já o nível micropolítico correspondia a tudo aquilo que os profissionais tinham a possibilidade de manejar diretamente, questões cotidianas correspondentes à sua função nos serviços e junto aos usuários. Por exemplo, interlocução com outros profissionais da rede de serviços acerca dos casos e elaboração coletiva de seu acompanhamento. Com efeito, era o que estávamos realizando quando nos reuníamos para refletir e pensar coletivamente sobre o trabalho socioassistencial com o adolescente em situação de desacolhimento por maioridade.

Mediante essa divisão, os pesquisadores propuseram, no nível micropolítico, que o caso de um adolescente do SAICA pudesse ser discutido no grupo, visando à elaboração de um acompanhamento singularizado. Ainda, o objetivo era compreender como se dava a

é de até três anos ou ao completar 21 anos. Em São Paulo, existem quatro Repúblicas Jovem (SECRETARIA MUNICIPAL DE ASSISTÊNCIA E DESENVOLVIMENTO SOCIAL, 2017a).

passagem do adolescente do cenário institucional para o social, oferecendo condições para que ela se efetivasse de maneira adequada, e não se configurasse como uma saída da instituição para uma situação de vulnerabilidade social (vivência de rua, tráfico de drogas etc.).

Com isso, surgiu a necessidade de se escolher um caso, iniciando-se uma discussão sobre os critérios da escolha. A equipe do serviço de acolhimento, assim, apresentou alguns casos que julgava importantes para que se pudesse realizar a discussão no grupo de trabalho. Alguns eram de adolescentes ainda acolhidos, em processo de desacolhimento, e outros de adolescentes já desacolhidos, e que vivenciavam situações de vulnerabilidade graves. Diante da apresentação dos casos, dois posicionamentos dividiram os participantes do grupo: o primeiro era o de que deveríamos escolher um caso em que havia algo emergencial a ser “resolvido”, referente a um adolescente já desacolhido; o segundo era de que o caso a ser discutido deveria ser o de um adolescente ainda acolhido, em processo de desacolhimento, para que fosse possível acompanhar a sua passagem da cena institucional para a social.

Os participantes que se atentavam à questão emergencial, afirmavam que estávamos “falando de vidas” e que não poderíamos “partir do que não é emergencial”. A impressão era a de que, se não optássemos por um caso em que o adolescente desacolhido estivesse em situação de perigo, estaríamos tirando a sua possibilidade de ser salvo.

Assim, os pesquisadores interviram, apontando que não se tratava de negar a urgência de alguns casos, em função do desacolhimento já ter ocorrido e de o adolescente estar em uma situação de risco, mas que parecia mais acertado construir um espaço para se elaborar um acompanhamento para o adolescente em seu processo de passagem da cena institucional para a cena social, evitando a repetição de situações de vulnerabilidade e a pura realização de ações emergenciais. Além disso, esse formato poderia nos auxiliar a identificar quais questões se articulavam – essa era a queixa da instituição ao demandar a realização da intervenção – ao fato de os adolescentes desacolhidos, que a princípio tinham condições de se inserirem socialmente, se colocarem em situações de perigo após a saída do serviço de acolhimento.

Diante disso, com a concordância da maioria dos participantes do grupo, inclusive dos profissionais do serviço que demandaram a realização do grupo, ficou decidido que durante nossas atividades iriamos discutir o caso de Caio. Isso porque se considerou que acompanhar o adolescente em sua passagem da instituição para a vida social poderia ser uma maneira tanto de compreender as dificuldades enfrentadas nesse processo quanto de auxiliar a equipe a elaborar o acompanhamento desse caso específico.