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RETROSPECTIVA hISTóRICA SObRE O TRAbALhO FEmININO

A REVOLUÇÃO INDUSTRIAL

A industrialização começou na Inglaterra antes de se es- tender a todo o mundo ocidental, tendo especificidades em

cada país. Ela acarretou o deslocamento da mão de obra e dos recursos da produção primária (agricultura, pesca, silvicultu- ra) para as atividades industriais, comerciais e de serviço. A produção cresceu e a usina tomou o lugar da casa como cen- tro de atividade produtora (HOBSBAWM, 1982).

A economia doméstica assalariada, que tinha no pas- sado caracterizado a organização familiar das pessoas sem posses, torna-se a forma de economia mais comum da classe trabalhadora. O capitalismo foi o motor da industrialização europeia.

No Brasil, a industrialização começou no Nordeste do país a partir de 1840, mais especificamente com a indústria de tecido de algodão na Bahia e se deslocou para o Sudeste. Na passagem ao século XX, o Rio de Janeiro concentrava o maior número de operários/as do país, sendo superado por São Paulo somente em 1920 (RAGO, 1997).

É nesse momento histórico que vão se consolidar conceitos que influenciam a vida das mulheres até hoje: o conceito da esfera privada (para as mulheres), esfera pública (para os homens) e o conceito do menor valor da força de trabalho feminino. Na verdade, os conceitos da esfera privada e da esfera pública não são novos. Apareceram já na Grécia antiga e foram reforçados na Revolução Francesa, onde vários filósofos, políticos e os seus seguidores afirmaram que a mulher se mantém perpetuamente na infância e é incapaz de ver tudo o que é exterior ao mundo fechado da domesticidade (KOVALESKI, 2002).

Scott (1991) argumenta que a mulher trabalhadora ga- nhou destaque no século XIX e que essa visibilidade resul- tou da sua percepção como problema. Esse problema se ori-

ginou da compatibilidade da feminilidade com o trabalho assalariado:

[...] as questões que ela levantava eram as mesmas: deve a mulher trabalhar por um salário? Qual é o im- pacto do trabalho assalariado no corpo feminino e na sua capacidade de desempenhar as funções maternais e familiares? Que gênero de trabalho é adequado para uma mulher? Nem toda a gente esteve de acordo com o legislador francês Jules Simon que afirmou, em 1860, que “uma mulher que se torna trabalhadora deixa de ser mulher”, mas a maior parte das facções intervenien- tes nos debates sobre a mulher trabalhadora enqua- drava os seus argumentos em termos de uma oposição assumida entre lar e trabalho, entre maternidade e sa- lário, entre feminilidade e produtividade (SCOTT, 1991, p. 444).

Enquanto no período pré-industrial as mulheres combi- navam várias atividades produtivas e a criação de filhos sem provocar polêmica, então agora se dizia que a mudança do local de trabalho dificultava essa combinação. O resultado era que as mulheres só poderiam trabalhar durante curtos períodos, ge- ralmente antes de casar e ter filhos e voltando depois que os filhos eram autossuficientes. Em consequência, ficariam confi- nadas em empregos precários de baixa remuneração:

O “problema” da mulher trabalhadora, então, era ela ser uma anomalia num mundo onde trabalho assalariado e responsabilidades familiares se tinham tornado ocupa- ções a tempo inteiro e espacialmente diferenciadas. A “causa” do problema era inevitável, um processo de de- senvolvimento industrial capitalista com uma lógica pró- pria (SCOTT, 1991, p. 444).

Scott (1991) argumenta que o fato de representar o ho- mem como o trabalhador exemplar, ocultava diferença de for- mação, estabilidade e duração de emprego entre os próprios homens e, assim, padrões semelhantes de irregularidade e mudança de empregos entre os dois sexos:

Em consequência disso, o sexo era oferecido como a

única razão para as diferenças entre homens e mulhe- res no mercado de trabalho, quando essas diferenças poderiam de outro modo, ter sido entendidas em ter- mos do referido mercado, das flutuações econômicas e das relações variáveis entre a oferta e a procura (SCOTT, 1991, p. 445).

Os discursos sobre as mulheres, pós-Revolução Fran- cesa, oriundos dos filósofos, políticos, médicos, religiosos e sindicalistas glorificavam o papel da mãe. Ela devia se tor- nar o anjo do lar que zelaria pela família e dela dependeria o futuro da Nação. Badinter (1986) constata que, se no século XVI censurava-se a mãe pela sua ternura para com os filhos,

no século XVIII toda a intelligentia fará censura inversa. As- sim, segundo a autora, surge:

[...] um novo modo de vida que aparece no final do século XVIII e que se desenvolverá no século XIX. Voltada para o interior, a intimidade que conserva bem cálidos os laços afetivos familiares, a família moderna se agrupa em torno da mãe, que adquire uma importância que jamais tivera (BADINTER, 1986, p. 238).

Embora Badinter (1986) esteja falando particularmente da sociedade francesa, podemos generalizar para as socie-

dades ocidentais, incluindo o Brasil, no qual, segundo Rago (1997, p. 26):

Muito influenciadas pelo filósofo francês Jean Jacques

Rousseau, pelo pensamento vitoriano e por concepções religiosas, as elites intelectuais e políticas do começo do século XX procuraram redefinir o lugar das mulheres na sociedade [...] para muitos médicos e higienistas, o trabalho feminino fora do lar levaria à desagregação da família.

Scott (1991, p. 470) argumenta: “Ao definir o papel repro- dutor da mulher como primário, o Estado reforçou o estatuto secundário da sua atividade produtiva”.

Nessa conjuntura, os economistas da época definiram o salário masculino para a própria subsistência do trabalha- dor como também para manter a família. Eles demonstraram que, devido a sua fisiologia, a mulher nunca poderia ser um trabalhador normal e o produto do seu trabalho sempre infe- rior àqueles dos homens: “A mulher é, industrialmente falan- do, um trabalhador imperfeito”, escrevia Buret (BURET2, 1840,

p. 287, apud SCOTT, 1991, p. 457).

Apoiando-se nesses fatos, os industriais definiram o sa- lário feminino como “suplementar, quer compensando falta, quer proporcionando dinheiro para além do que era neces- sário para a sobrevivência básica” (SCOTT, 1991, p. 456). A mulher “trabalha apenas para seus botões” (SOIHET, 1997, p. 367), dizia a ideologia dominante no Brasil.

2 BURET, Eugène. De la misère des classes laborieuses en France et en Angleter- re. Paris: Renouard, 1840.

Assim, o salário feminino era fixado como se fosse um suplemento aos ganhos de outros membros da família, mes- mo se a assalariada fosse solteira.

Scott (1991, p. 457) comenta:

À descrição que a economia política fazia das “leis” dos salários femininos criou uma espécie de lógica circular, na qual os baixos salários femininos tanto causavam como demonstravam o “facto” de que as mulheres eram menos produtivas que os homens.

Assim, ao propor duas leis para o trabalho, isto é, dois sistemas diferentes de cálculo do preço do trabalho, os eco- nomistas enxergavam a força de trabalho segundo o sexo, justificando-a em termos de uma funcional divisão sexual do trabalho (SCOTT, 1991).

Até hoje, apesar das leis garantirem a igualdade de direito entre homens e mulheres no trabalho, persiste a noção de que a força de trabalho das mulheres é menos valiosa. Isso se traduz mais sutilmente pelo teto de vidro3 ou

mais abertamente, por exemplo, na rede de supermercado Wal-Mart dos Estados Unidos, em que 1,5 milhões de trabalhadoras e ex-trabalhadoras estão processando a rede por discriminações de gênero4. O laboratório Novartis foi

condenado pelo tribunal do distrito sul de Nova York a pagar 250 milhões de dólares por discriminações de gênero: as vendedoras eram pagas sistematicamente cento e três

dólares a menos que os homens para realizarem exatamente

3 O conjunto dos obstáculos visíveis e invisíveis que separam as mulheres dos mais altos cargos na hierarquia profissional e organizacional (ROSENDE, 2010). 4 Desde 2001, as trabalhadoras estão com uma ação coletiva contra o Wal-Mart,

o mesmo trabalho (ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. ONU MUJERES, 2011/2012).

É interessante e ao mesmo tempo sintomático notar que, se de um lado, os reformadores dos séculos XVIII, XIX, XX davam ênfase ao trabalho reprodutivo para as mulheres, de outro, destituíam esse trabalho de qualquer valor econômico. Assim, os censos de 1881 na Inglaterra e de 1896 na França, excluíram as tarefas domésticas da categoria trabalho. Antes disso, o trabalho das donas de casa e dos empregados domés- ticos era classificado na rubrica Doméstico. Existia uma as- similação entre donas de casa e os/as domésticos/as. Sobre o trabalho feminino do século XIX, no Brasil, Fonseca (1997, p. 517) comenta:

[...] apesar de ser evidente que em muitos casos a mulher trazia o sustento principal da casa, o trabalho feminino continuava a ser apresentado [...] como mero suplemen-

to à renda masculina. Sem ser encarado como profissão, seu trabalho em muitos casos nem nome merecia. Era ocultado, minimizado em conceitos gerais como “servi- ços domésticos” e “trabalho honesto”.

Ao mesmo tempo, elaborou-se uma representação radi- calmente nova do trabalho que distinguiu a população ativa da população inativa. Conforme Battagliola (2008), essa dis- tinção se apoiou na definição do trabalho como sendo traba- lho mercantil retribuído por uma remuneração direta, seja pela venda de bens ou serviços, seja pela percepção de um salário. A visão do trabalho, como sendo uma atividade remu- nerada, afasta definitivamente as mulheres, efetivando o tra- balho reprodutivo da população ativa (BATTAGLIOLA, 2008; SCOTT, 1991).