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Relações de poder desiguais entre homens e mulheres dificultam a efetivação da igualdade nas relações de traba- lho e a realização dos direitos das mulheres. Mecanismos discriminatórios nos processos de contratação e de pro- moção profissional, segregação ocupacional e rendimentos mais baixos ainda fazem parte da realidade das trabalhado- ras brasileiras.

A reprodução de uma imagem feminina como ser se- cundário, estereótipos de gênero, associação das mulheres

prioritariamente ao espaço privado/doméstico, invisibilida- de/desvalorização de suas atividades e comportamentos ma- chistas/sexistas/misóginos presentes nos inúmeros espaços sociais interferem nas escolhas profissionais das mulheres e contribuem para a aceitação e naturalização de uma divisão sexual do trabalho na qual o trabalho masculino vale mais do que o feminino.

Assim, gênero continua sendo uma categoria relevante para a análise do mundo do trabalho. Ao relacionar deter- minadas atividades a características consideradas essencial- mente e/ou socialmente femininas (destacando-se as que são associadas ao cuidado, como a enfermagem, a assistência social e o magistério) assumimos um raciocínio que se asso- cia a uma falsa premissa: a de que homens e mulheres seriam naturalmente e/ou socialmente diferentes, seja resultado da Biologia e/ou de processos de socialização, existindo, assim, atividades e lugares mais adequados para uma e outro. Essa premissa é preliminarmente rejeitada, embora não seja ob- jeto de discussão neste trabalho, pois diferentemente, assu- mimos que somos todas/os iguais, mas também diferentes. Iguais, porque humanos; diferentes, porque nossas particu- laridades e diferenças fazem parte desse humano e é o que permanece nos humanizando durante a nossa existência. Sem diferenças, poderíamos tardiamente concretizar o poder de autômatos pré-humanos ou realizar antecipadamente o sonho de domínio dos ciborgues pós-humanos, produzidos fisicamente de maneira idêntica e programados para que as formas de pensar, viver a sexualidade, de se relacionar com entidades divinas e outras questões que fazem parte da exis- tência humana sejam todas idênticas; enfim o triunfo do fim do humano.

Sobre a discussão acerca de diferenças, vale destacar, todavia, a reflexão sobre a luta que grupos sociais discrimi- nados e excluídos travaram contra a discriminação e a exclu- são, e para questionar os critérios dominantes de igualdade e diferença e os diferentes tipos de inclusão e exclusão que legitimam, conforme Santos (2003, p. 79):

As diferenças sexuais e étnico-culturais passaram a ser valorizadas como formas próprias de pertença legítima a coletivos mais amplos e portadores de uma dignidade apenas negada pelos preconceitos dominantes sexis- tas, racistas ou colonialistas. (...) A partir de então a luta contra a discriminação e a exclusão deixou de ser uma luta pela integração e pela assimilação na cultura domi- nante e nas instituições suas subsidiárias, para passar a ser uma luta pelo reconhecimento da diferença, pela consequente transformação da cultura e das institui- ções de modo a separar as diferenças (a respeitar) das hierarquias (a eliminar) que atavicamente lhe estavam referidas.

Interessa-nos, assim, respeitando as diferenças huma- nas, compreender como determinadas diferenças (de gênero, particularmente) são hierarquizadas e transformadas em de- sigualdades sociais a partir de discriminações e preconceitos. A realidade associada ao objetivo de consolidar uma socieda- de humana, melhor e humanizada, nos conduzirá para dis- cussões ora do direito à igualdade, ora do direito às nossas di- ferenças, este último considerado condição sine qua non para a nossa dignidade e humanidade e sem o qual não se realiza a igualdade.

Nesta perspectiva, permanece essencial a continuidade das reflexões e lutas sobre o direito à igualdade entre homens

e mulheres no mundo do trabalho, pois a desigualdade de gê- nero tem-se consolidado como uma das inúmeras formas de exploração e de discriminação. Embora a luta das mulheres tenha concretizado conquistas nesse âmbito, ainda perma- nece um gap salarial entre homens e mulheres, não obstante a ampliação de sua escolaridade feminina; segregações hori- zontais e verticais continuam existindo e concentrando mu- lheres em determinados setores e dificultando a ascensão na carreira profissional; uma resistência masculina em assumir as atividades do âmbito doméstico e relacionadas ao cuidado (tarefas doméstica, cuidado com filhos, cuidado com doen- tes da família, etc.) ainda acarreta sobrecarga de trabalho e de responsabilidade feminina.

Para a compreensão dessa realidade, a discussão acerca da divisão sexual do trabalho é essencial. Para Hirata e Ker- goat (2007), essa forma particular de divisão social do traba- lho se organiza a partir do princípio da separação, para o qual existem trabalhos para homens e trabalho para mulheres; e, a partir do princípio hierárquico, no qual o trabalho dos ho- mens tem maior valor do que o trabalho das mulheres.

Uma das formas de divisão sexual do trabalho é a que destina prioritariamente as atividades da esfera doméstica e reprodutiva às mulheres e as do âmbito da produção aos ho- mens. Essa divisão per se não acarretaria a desvalorização das atividades femininas, se a sociedade não atribuísse maior va- lor ao trabalho dos homens do que ao das mulheres. Este úl- timo, em grande medida, aparece como invisível, associado com amor, afeto e solidariedade, o que pressupõe doação e um caráter essencialmente não monetário e não profissional.

Realizar atividades que não se traduzem em retribuições financeiras fazem parte do humano e também per se não se configuram como um problema social, pois homens e mu- lheres têm compromissos com sua família, sua comunidade, com pessoas de seu e de outros países, ou seja, consigo mes- mo e com o outro. O compromisso de zelar e cuidar de crian- ças, idosos, doentes, familiares, enfim, daquelas/es que fazem parte da nossa vida e da nossa comunidade (que pode e deve ser entendida da forma mais ampla possível) é uma obrigação de todos/as, sejamos homens ou mulheres. Entretanto, este compromisso ético e moral pode se transformar em fonte de exploração, discriminação e segregação feminina.

Parte das mulheres são mães (biológicas e/ou afetivas), parte dos homens são pais (biológicos e/ou afetivos) e este fato pode gerar doação e afeto. O cuidado, assim, poderá ser identi- ficado para além de um simples fato, consolidando o ser mãe/ ser pai/ser avó/ser avô, etc., como um ato de extrema beleza e que envolve compromisso e solidariedade. Ser mãe ou pai, no entanto, não poderia condicionar escolhas profissionais.

Mulheres e homens podem ser docentes, enfermeiras/ os, engenheiras/os, matemáticas/os ou escolher qualquer outra profissão. Associar educação infantil com as mulheres porque elas podem ser mães, o que as tornaria mais adequa- das ao cuidado humano e ao magistério, seria o equivalente a afirmar que os cursos de formação de docentes (formação inicial ou continuada) deveriam assumir como pré-requisito a maternidade, o que configura um absurdo.

Embora todo o processo de socialização contribua para escolhas e definições de vida, inclusive as de cunho profissio- nal, o preparo para o exercício de qualquer profissão ocorre em cursos profissionais (básicos, técnicos ou formação supe-

rior, por exemplo) e, mesmo em atividades que o profissional tem sua formação fora dos processos formais, o saber/conhe- cimento e habilidades profissionais são ensinados e aprendi- dos e não fruto de uma suposta natureza de gênero.

Pensar a mulher como um ser mais dócil, passivo, afe- tivo, emotivo, paciencioso, delicado, solidário, voltado para as relações entre as pessoas, ao cuidado, à maternidade e à beleza, em contraposição a uma natureza masculina mais agressiva, competitiva, racional, objetiva, de maior força física e voltada para a liderança e o mando, realimenta a dicotomia masculino/feminino e os estereótipos de gênero que condi- cionam as escolhas profissionais de homens e mulheres. Essa dicotomia constitui fonte dos processos de hierarquização das profissões, desvalorizando atividades desenvolvidas por mulheres porque associadas a atributos que são hierarquiza- dos de forma que os considerados como masculinos são per- cebidos como de maior relevância social (docilidade x agres- sividade, afetividade x racionalidade, etc).

Essa dicotomia cristaliza o que deve ser entendido como atribuição masculina e feminina e impossibilita percepções de outras formas de relações sociais:

O esquema binário que situa o masculino e o feminino como categorias excludentes estende-se para definições do que é ser homem e do que é ser mulher, professor e professora em nossa sociedade. Essa dicotomia cristaliza concepções do que devem constituir atribuições mascu- linas e femininas e dificulta a percepção de outras ma- neiras de estabelecer as relações sociais. O cuidado, por exemplo, é visto como uma característica essencialmen- te feminina – para alguns uma responsabilidade natural, para outros, fruto da socialização das mulheres. Muitas atividades profissionais associadas ao cuidado são con-

sideradas femininas, como a enfermagem, o tomar conta de crianças pequenas, a educação infantil, etc. O ato de cuidar, fundamental na relação com a criança, deve ser entendido como uma atividade que envolve compromis- so moral.

Criam-se, assim, vários estereótipos sobre homens e mulheres: agressivos, militaristas, racionais, para eles; dóceis, relacionais, afetivas, para elas. Em decorrência, funções como alimentação, maternidade, preservação, educação e cuida- do com os outros ficam mais identificadas com os corpos e as mentes femininas, ganhando, assim, “um lugar inferior na sociedade, quando comparadas às funções tidas como mas- culinas” (VIANNA, 2002, p. 93).

A aceitação social de uma divisão sexual do trabalho, na qual as mulheres têm suas atividades desvalorizadas social- mente, decorre de processos que naturalizam e reforçam essa dicotomia entre o feminino e o masculino. Discursos que as- sociam a mulher ao espaço privado e ao cuidado são trans- feridos para o espaço público e para o mercado de trabalho, favorecendo uma maior concentração feminina em profis- sões associadas a esse âmbito, bem como contribuindo para o afastamento das mulheres de outras atividades identificadas com o masculino e mais valorizadas socialmente, dentre as quais as do âmbito político.

A distribuição, por sexo, dos cargos eletivos políticos re- vela que as mulheres ainda têm pouca participação em um espaço de poder que, não obstante a discursos que desprivi- legiam e desqualifiquem os detentores desses cargos, ainda se configura como de grande relevância para os avanços (ou retrocessos) das políticas públicas e para a implementação da

igualdade, além de ser um âmbito que detém elevado status social, mas que permanece majoritariamente masculino.

Embora, em 2010, o Brasil tenha eleito sua primeira Pre- sidenta da República– Dilma Rousseff – a participação das mulheres no parlamento nacional permanece bastante re- duzida. Naquela eleição, o número de senadoras passou para 12 (doze), de um total de 81 (oitenta e um) senadores, o que representa aproximadamente 15%. Em relação ao número de deputadas federais, passou para 45 (quarenta e cinco), de um total de 513 (quinhentos e treze) deputados, o que represen- ta aproximadamente 8,8%. Vale destacar que as mulheres re- presentavam, naquele momento, aproximadamente 52% do eleitorado brasileiro. Esse resultado expressa um monopólio

masculino dos espaços de poder político na atual divisão se- xual do trabalho no país.

Ao discutir as tendências sobre o trabalho no Brasil, Silva (2005) apresenta outras formas de manifestações dessa divisão. A primeira, refere-se à ampliação da participação feminina no mercado de trabalho brasileiro e é associada a diversos fatores, dentre os quais, necessidade econômica, oportunidades de tra- balho, queda do número de filhos ou ampliação da escolarida- de das mulheres:

o significativo aumento das atividades das mulheres – uma das mais importantes transformações ocorridas no País desde os anos 70 – seria resultado não apenas da necessidade econômica e das oportunidades oferecidas pelo mercado, em conjunturas específicas, mas também, em grande parte, das transformações demográficas, cul- turais e sociais que vêm ocorrendo no Brasil e que têm afetado as mulheres e as famílias brasileiras. A intensa queda da fecundidade reduziu o número de filhos por

mulher, sobretudo nas cidades e regiões mais desenvol- vidas do País, liberando-a para o trabalho. A expansão da escolaridade e o acesso às universidades viabilizaram o acesso das mulheres a novas oportunidades de trabalho. [...] transformações nos padrões culturais e nos valores relativos ao papel social da mulher, intensificadas pelo impacto dos movimentos feministas desde os anos 70 e pela presença cada vez mais atuante das mulheres nos espaços públicos, alteraram a constituição da identidade feminina, cada vez mais voltada para o trabalho produti- vo. A consolidação de tantas mudanças é um dos fatores que explicaria não apenas o crescimento da atividade fe- minina, mas também as transformações no perfil da for- ça de trabalho desse sexo (BRUSCHINI, 2000, p. 16). Outro destaque foi dado à coexistência dessa amplia- ção da participação da mulher no mercado de trabalho com a permanência do processo de segregação, discriminação e precarização do trabalho feminino, bem como das desigual- dades salariais entre homens e mulheres. No que se refere à discussão sobre precarização do trabalho, Hirata (2010) alerta que o trabalho precário é majoritariamente feminino e que é necessário estabelecer relação entre desigualdade entre mu- lheres e homens no mercado de trabalho com as desigualda- des na família e na esfera doméstica (relação de trabalho, de poder, de saber, relações de dominação).

Silva (2005) destacou ainda a existência da permanên- cia de ocupação de cargos a partir de concepções tradicionais de atributos masculinos e femininos simultaneamente à exis- tência de mudanças, entre as quais a elevação no número de mulheres que ocupam cargos hierarquicamente superiores, o aumento da participação de mulheres em ocupações tradi- cionalmente masculinas e de homens em ocupações tradicio- nalmente femininas.

Tais tendências revelaram mudanças na divisão sexual do trabalho, mas também expressam contradições que estão presentes em uma sociedade que luta, reivindica e quer al- terações nas condições de vida, mas também resiste a elas e permanece defendendo relações já estabelecidas e que repro- duzem diversas formas de injusto. Deve-se considerar que a reprodução de uma divisão de trabalho não igualitária, por- tanto não justa, cria condições para perpetuar a desigualda- de social. A grande presença de mulheres em atividades que ocupam inúmeras horas de trabalho, mas que pouco contri- buem para alterar as suas condições precárias de vida, gerar autonomia financeira ou efetivar o direito à dignidade huma- na, mantém as mulheres entre a parcela mais pobre da popu- lação, o que reforça as desigualdades de gênero e nos distan- cia da justiça social.

Deve-se considerar ainda a bipolarização do trabalho fe- minino como resultado, em parte, dos processos que ocorrem na esfera educacional. Para Hirata (2010), a maior instrução e diplomação feminina possibilitaram que mulheres se tornas- sem executivas, profissionais intelectuais de nível superior (médicas, advogadas, juízas, arquitetas, engenheiras, jorna- listas, professoras universitárias, pesquisadoras, publicitárias, etc.). Todavia essa realidade coexiste com outro polo consti- tuído por mulheres em setores tradicionalmente femininos: empregadas domésticas e diaristas (categoria profissional bas- tante numerosa no Brasil); setor público de saúde (auxiliares de enfermagem); educação (professoras de maternal e ensino fundamental, sobretudo); prestação de serviços; profissionais do trabalho de cuidado. A partir dessa polarização, verifica-se a exacerbação das desigualdades sociais e antagonismos, tanto entre mulheres e homens, quanto entre as próprias mulheres.

O que se verifica é que por inúmeros fatores (profissio- nais e extraprofissionais), a presença feminina no mundo do trabalho continua marcada por processos que contribuem para a desvalorização de suas atividades – precarização (ter- ceirização, informalidade, tempo parcial, baixos salários, fle- xibilidade no uso do trabalho, etc.); segregação, seja vertical (pouca mobilidade na carreira e dificuldade para ascender aos postos hierarquicamente mais altos) ou horizontal (con- centração do trabalho feminino em determinados setores e funções) e a bipolarização do trabalho feminino que expressa desigualdades entre as próprias mulheres. Assim, o trabalho feminino no Brasil ainda pode ser caracterizado por:

a) dupla ou tripla jornada de trabalho – mulheres ainda as principais responsáveis pelas atividades do âmbito doméstico (cuidado);

b) segregação do trabalho feminino, alocando as mu- lheres em atividades e setores associados ao femini- no e com salários menores e menor prestígio social; c) precarização como característica de parte significativa

do trabalho feminino – trabalho sem vínculo formal; pouca mobilidade na carreira, trabalho temporário; d) assédio sexual e moral no trabalho, sendo as mulhe-

res as principais vítimas;

e) doenças ocupacionais, afetando grande número de mulheres;

f) presença feminina em atividades laborais que pouco contribuem para a autonomia financeira e que cola- boram para a manutenção de um processo de femi- nização da pobreza.

É certo que a instrução e o acesso ao trabalho formal contribuíram para o questionamento da estrutura patriarcal,

para alterar as relações de poder entre homens e mulheres e para a consolidação de uma sociedade mais igualitária; toda- via, as desigualdades de gênero no mundo do trabalho, apre- sentadas anteriormente, continuam desafiando e exigindo reflexões e ações que visem a sua eliminação.