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II. IDENTIFICAÇÃO DUMA REVOLUÇÃO

2.1. A Revolução que veio de cima

Uma das principais dificuldades sentida pelos militares peruanos para serem aceites como revolucionários, foi a própria imagem da instituição militar, tradicionalmente conservadora e ligada à defesa das oligarquias. Explicar que as revoluções também vêm de cima e os militares podem ser revolucionários, foi uma preocupação constante, que ficou bem marcada no inconsciente dos defensores do GRFA. Ainda nos nossos dias, Hugo Neira, um dos participantes na administração velasquista, me comentava o seguinte quando o entrevistei:

Foi uma coisa absolutamente surpreendente, uma anomalia! Normalmente os militares davam golpes de direita. Odría no Peru, viria depois Pinochet. Mas aqui, com uma atuação militar, acabava-se com essas haciendas que vinham do período colonial (…). Então há que ver as coisas dum outro ponto de vista, porque na Sociologia vê-se sempre a revolução como algo que vem de baixo. Falso! Há também revoluções que vêm de cima.

Esta necessidade de sublinhar a possibilidade de estarmos perante um movimento revolucionário, mesmo originado numa das forças tradicionalmente mais conservadoras da sociedade, explica-se na própria fórmula encontrada pelo regime para se legitimar e que se podería resumir numa expressão redonda: A revolução é legítima porque é revolução. O presidente da república disse-o claramente num dos seus discursos:

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A nossa legitimidade não vem dos votos, dos votos dum sistema político viciado à partida porque nunca serviu para defender os autênticos interesses do povo peruano. A nossa legitimidade tem origem no facto incontestável de que estamos a proceder à transformação deste país, precisamente para defender e interpretar os interesses desse povo que enganaram (…). Esta é a única legitimidade duma revolução autêntica como a nossa116 (VELASCO ALVARADO, 1970, pp 94-95).

Sinal disto mesmo é a entrevista dada por Velasco Alvarado à revista Caretas, em fevereiro de 1977, já depois da destituição em 1975, a última antes da sua morte em dezembro desse mesmo ano. O golpe de 1975 tinha sido palaciano e chefiado pelo primeiro-ministro, o regime mantinha-se militar e era revolucionário no discurso, mas na prática estava-se em pleno retrocesso reacionário. Nesta entrevista, Velasco começou por explicar: “A revolução deu-se o direito de fazer as transformações que não fizeram os civis. Os civis tiveram 150 anos no governo e não as fizeram. Por isso é que as Forças Armadas tiveram de a fazer”. Por fim, referindo-se à situação política do momento, conclui: “Se já não há revolução, então o governo militar já não se justifica. Deveria haver então um governo democrático. Não?”117

Temos então uma legitimação originada na própria história, uma espécie de imperativo daquilo que tinha de acontecer mas não acontecia e, portanto, alguém teria de concretizar para levar a história a ser história. Trata- se dum pensamento integrável nas correntes deterministas e no materialismo dialético, esse mesmo que procurou legitimar a revolução com base na ciência… Seria um debate tentador, mas fora do âmbito deste trabalho.

Nesta mesma linha foi, oito anos antes, o discurso dum Velasco Alvarado, então presidente, em outubro de 1969, no primeiro aniversário da nacionalização dos campos petrolíferos de Breña e Patiñas, instituído pelo governo como “Dia da dignidade nacional”:

Se o problema do petróleo tivesse sido resolvido, se as reformas estruturais que repetidas vezes se ofereceram ao povo se tivessem posto em marcha, nós não teríamos interferido no processo político do país. Sem embargo, a dura teimosia dos factos convenceu-nos de que os grandes políticos tinham desistido e que o povo não podia esperar deles as soluções mil vezes prometidas. A Revolução levou-se a cabo para fazer aquilo que outros nunca fizeram118 (VELASCO ALVARADO, 1970, p.128).

116 “Nuestra legitimidad no viene de los votos, de los votos de un sistema político viciado de raíz porque nunca sirvió para defender los auténticos intereses del pueblo

peruano. Nuestra legitimidad tiene su origen en el hecho inconvertible de que estamos haciendo la transformación de este país, justamente para interpretar y defender los intereses de ese pueblo al que se engañó (…). Esta es la única legitimidad de una revolución auténtica como la nuestra”. (tradução minha)

117 “La Revolución se ha dado el gusto de hacer las transformaciones que no hicieron los civiles. Los civiles tuvieron 150 años en el gobierno y no las hicieron. Por eso

es que la Fuerza Armada tuvo que hacer la revolución. Si ya no hay revolución, entonces el gobierno militar ya no se justifica. Debía haber pues, un gobierno democrático ¿No?” (tradução minha)

118 “Si el problema del petróleo hubiera sido resuelto, si las reformas estructurales que repetidas veces se ofrecieron al pueblo se hubieran puesto en marcha, nosotros

n hubiéramos interferido en el proceso político del país. Sin embargo, la dura porfía de los hechos nos convenció de que los grandes políticos habían claudicado y que el pueblo no podía esperar de ellos las soluciones ,il veces prometidas. La Revolución se llevó a cabo para hacer lo que otros nunca hicieron.” (Tradução minha)

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Carlos Delgado Olivera, considerado um dos ideólogos da revolução peruana119, abordaria esta questão em 1973:

As revoluções no mundo contemporâneo foram sempre processos iniciados e conduzidos por partidos políticos sujeitos a largos períodos de maturação ideológica (…). A revolução peruana escapa por inteiro a esta regra. Aqui o processo de transformação nacional inicia-se a partir da acção duma instituição, como a militar, que não só não é um partido político mas que, além disso, tradicionalmente cumpriu o papel de garante da ordem estabelecida120 (p.73).

E é a partir daqui que Delgado Olivera faz a defesa de que, sim, o processo peruano é revolucionário, recorrendo para isso a uma argumentação aporética:

Essa circunstância está provavelmente na raiz da errada opinião daqueles que defendem que, precisamente por ter sido originado numa instituição militar, o processo peruano ‘não pode’ ter um caracter revolucionário (…). Se aduz que uma coisa não pode existir, simplesmente porque não existiu no passado. E nega-se a possibilidade de que um fenómeno ocorra, simplesmente porque antes não ocorreu121 (p.73).

Este tipo de argumento é, aliás, dado pelo próprio presidente Velasco num encontro com a imprensa em março de 1974. Quando lhe perguntam como é possível continuar a revolução sem um partido político, o general diz não ser necessário:

Temos de criar, de encontrar um novo caminho para resolver esse problema capital. Que isso seja utópico, que nunca se tenha dado no Peru nem noutras partes? Certo, mas isso nada prova, tampouco se tinha dado antes o caso duma Força Armada que unida realizasse pacificamente uma grande transformação social, económica e política em país algum do terceiro mundo. Sem embargo isso é o que está a acontecer no Peru há cinco anos122

119 É voz corrente na historiografia que Carlos Delgado Oliveira era o ideólogo oficial de Velasco e também quem lhe escrevia os discursos. Afirma-o, por exemplo Carlos

Contreras e Marcus Cueto (2013, p.344). Entre a bibliografia que utilizei, estão dois volumes dos discursos de Velasco Alvarado (1970 e 1972) e uma compilação de artigos de Carlos Delgado Olivera (1973). A coincidência de estilo e pensamento é óbvia, dando-se até situações em que Delgado Olivera escrevia artigos depois de cada intervenção do presidente, expandindo-as e explicando o seu significado político.

120 “Las revoluciones en el mundo contemporáneo han sido siempre procesos iniciados y conducidos por partidos políticos sujetos a dilatados plazos de maduración

ideológica (…). La Revolución Peruana escapa por entero a esta regla. Aquí el proceso de transformación nacional se inicia a partir de la acción de una institución, como la militar, que no sólo no es un partido político sino que, además, tradicionalmente cumplió el papel de garante del orden establecido.” (Tradução minha)

121 “Esta circunstancia está probablemente en la raíz mismade la errada opinión de quienes sostienen que, precisamente por haberse originado en una institución

militar, el proceso peruano ‘no puede’ tener un carácter revolucionario (…). Se aduce que una cosa no puede existir, simplemente porque no existió en el pasado. Y se niega la posibilidad de que un fenómeno ocurra, sencillamente porque antes no ocurrió.” (Tradução minha)

122 “La Nueva Cronica”, 1 de março de 1974, p 2. “tenemos pues que crear, que encontrar un nuevo camino para resolver ese problema capital ¿Qué eso sea utópico,

que nunca se haya dado ni en el Perú ni en otras partes? Cierto. Pero esto nada prueba, tampoco se había dado antes el caso de una Fuerza Armada que unida realizara pacíficamente una gran transformación social, económica y política en país alguno del tercero mundo.. Y sin embargo eso es lo que está ocurriendo en el Perú desde hace cinco años.” (Tradução minha)

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Afirmar a inexistência de contradição entre ser militar e revolucionário, será um dos pilares permanentes do universo argumentativo do GRFA, o que não surpreende: como vimos, a base de legitimação formal do regime é, precisamente, o facto de ser revolucionário.

Como observou Martín Sanchez (2002), o poder militar nascia duma convicção: concretizava a vontade da maioria eleitoral, bloqueada pelas rivalidades entre os partidos. Então, só com uma ditadura seria possível concretizar o verdadeiro sufrágio dos peruanos. Uma vez dado o golpe, é essa mesma disjuntiva legitimidade que leva os militares a procurar uma fonte de soberania na própria revolução. Afirma Sanchez que,

A revolução – com a sua natureza paradoxal de subversão e soberania, por um lado, e acontecimento particular e projeto universal, pelo outro – foi o guião central da ideologia e da prática política do governo militar (…).

A dimensão ideológica do governo militar consistiu numa atualização radicalizada da ambição política hegemónica no Peru daquela época: ter um estado nacional sobreano e desenvolvido. A este objectivo correspondia claramente uma estratégia que, devido ao estado dos partidos políticos do país, não podia ser outra que a revolução123 (pp.31-32) (sublinhado meu)

A este propósito, são claras as palavras de Velasco Alvarado (1970), na mensagem à nação de 3 de outubro de 1969, por ocasião do primeiro aniversário do golpe. O presidente aproveita para se referir claramente aos partidos e à sua incapacidade para levar a cabo reformas, mesmo quando as defendem ideologicamente, paralisados por aquele grupo constantemente identificado pelo general como “a oligarquia”:

E que não se diga que estamos a romper a harmonia entre todos os peruanos. Ela nunca existiu na realidade. No passado porque a concórdia foi impossível entre um povo explorado e os seus exploradores. No presente, porque a harmonia não pode existir entre aqueles que defendem os interesses da oligarquia e os que defendemos os interesses do povo. Não pode haver harmonia entre a revolução e a anti-revolução124 (pp.106-107).

Mas a dúvida quanto à legitimidade revolucionária surgia, até entre simpatizantes do GRFA. Era o caso do historiador marxista britânico Eric Hobsbawm (2018), quando, em novembro de 1969, escrevia um artigo na

123“la revolución —con su naturaleza paradójica de subversión y soberanía, por un lado, y acontecimiento particular y proyecto universal, por otro— fue el guion clave

de la ideología y la práctica política del gobierno militar peruano presidido por el general Juan Velasco Alvarado. Esto suponía un intento de cambio estructural y simultáneo del sistema político por una minoría consistente, con una fuerte autonomía relativa en ese sistema y en una posición privilegiada en el Estado y la sociedad.

La dimensión ideológica del gobierno militar consistió en una actualización radicalizada de la ambición política hegemónica en el Perú de aquella época: el tener un Estado nacional soberano y desarrollado. A este objetivo le correspondía claramente una estrategia que, debido al desarrollo de los grupos políticos del país, no podía ser otra que la revolución”. (tradução minha)

124 “Y que no se diga que estamos rompiendo la armonía entre todos los peruanos. Ella nunca ha existido en realidad. En el pasado porque la concordia fue imposible

entre un pueblo explotado y sus explotadores. Y en el presente porque la armonía no puede existir entre quienes defienden los intereses de la oligarquía y los que defendemos los intereses del pueblo. No puede haber armonía entre la revolución y la anti-revolución”. (Tradução minha).

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New Society sob o sugestivo título “Os Militares como revolucionários”, onde perguntava “É isto uma revolução?” e respondia:

Sim na medida em que é súbita, virtualmente não planificada e potencialmente muito rica em consequências, pelo menos para a sociedade rural. Não, na medida em que foi imposta desde cima a uma população (até agora) passiva, por generais que certamente não querem uma mobilização descontrolada de massas, e provavelmente nenhuma mobilizaçã0125 (pp.352-353).

Como veremos adiante, esta necessidade de justificar a possibilidade duma revolução vinda de cima, é um dos fatores que vai chamar a atenção peruana para a revolução portuguesa.