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Como eu era muito jovem, o meu pai deixou-me a viver em casa da minha madrasta, que era dona da metade dum pueblo. Tinha muitos servos indígenas e o tradicional menosprezo e ignorância sobre o que é um índio. E como me tinha tanto desprezo como aos índios, decidiu que eu deveria viver com eles na cozinha; comer e dormir aí. A minha cama foi uma dessas masseiras em que se faz o pão, sobre umas peles de ovelha e com um cobertor um pouco sujo mas bem abrigador24

O escritor peruano José María Arguedas (1911-1969) fez esta declaração durante uma conferência em 1965, onde também afirmou25:

Ficaram na minha natureza as coisas que aprendi: a ternura e o amor dos índios, o amor que têm entre si e à natureza, às colinas, às montanhas; e o ódio àqueles que, quase inconscientemente e com um mandato praticamente supremo, os faziam sofrer.

Esta separação entre os donos da terra ou haciendados, localmente conhecidos como gamonales, e os indígenas, tem origens históricas vindas do período colonial. Em 1532, Francisco Pizarro, um aventureiro

24 “Arguedas Canta y Habla” (CD). Lima: Escuela Nacional Superior de Folclore José María Arguedas, Vol I 2005.

“Como yo era muy joven, mi papá me dejó viviendo en la casa de mi madrastra, que era dueña de la mitad de un pueblo. Tenía mucha servidumbre indígena y el tradicional menosprecio e ignorancia sobre lo que era un indio. Y como a mí me tenía tanto desprecio como a los indios, decidió que yo debería vivir con ellos en la cocina; comer y dormir ahí. Mi cama fue una batea de esas en que se amasa para hacer pan, sobre unos pellejos y con una frazada un poco sucia, pero bien abrigadora.” (Transcrição e tradução minhas)

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membro da pequena aristocracia espanhola, chegava ao Império Inca, aportando na costa norte do atual Peru, onde hoje fica a cidade de Tumbes. Este acontecimento mudaria radicalmente os modelos políticos, económicos e sociais da região andina.

A chegada do conquistador espanhol marca o início do período colonial e mudou estruturalmente a sociedade, com consequências aos mais diversos níveis, a maior parte dos quais não são directamente relevantes para o objeto deste trabalho. Limitarei esta abordagem aos impactos que, persistindo no tempo, me parecem mais importantes para percebermos como se estruturou a sociedade peruana e também ajudam a explicar a revolução de 1968, com as reformas subsequentes.

Depois de ter capturado com alguma facilidade o último inca26 em Cajamarca (serra norte), graças a uma grande emboscada, mas também a uma subestimação pelos locais do poderio dos espanhóis, Pizarro dominou o território sem grandes dificuldades, tirando proveito de profundas divisões políticas internas, resultantes duma recente guerra civil e do facto de, nos seus curtos 100 anos de existência, o império não ter conseguido chegar a uma consolidação cultural, como seria de esperar neste território onde surgiu um mosaico de culturas formadas a partir de condições naturais que, como vimos, não estimulavam a concentração.

A subestimação não era a única vantagem que Pizarro e as suas tropas tinham em Cajamarca. Também sabiam da guerra civil inca e contavam com um plano de batalha com provas dadas: repetir a tática seguida por Cortés no México de capturar o imperador e aliar-se com os seus inimigos, numa estratégia de divide-e-vencerás27 (KLARÉN, 2015, p.61).

Recebidos em Cusco, a capital do império, como libertadores pelo partido derrotado da guerra civil, os espanhóis não perderam tempo para saquear os templos e os palácios da cidade, começando assim e de imediato uma relação tensa com os indígenas (p. 65).

Instalando-se numa nova capital costeira, Lima, os esforços colonizadores foram orientados para explorar o ouro e a prata de que os Andes eram e são extremamente ricos. “Na segunda metade do século XVI já tinham conseguido por em marcha uma produção mineira de grande escala, sobretudo de prata, que se tornou na principal exportação do país. O auge da prata durou até meados do século XVII”28 (CONTRERAS e CUETO, 2013, p.33).

26 Ainda que o povo e o império tenham ficado conhecidos como inca, na realidade este era o nome pelo qual era conhecido o imperador. Localmente, o espaço que

dominavam era conhecido como Tahuantinsuyo (terra dos quatro suyos, as unidades administrativas em que se subdividia) e ocupava toda a faixa andina e litoral, desde a Colômbia e Equador, até ao Chile a Argentina,

27 La subestimación no era la única ventaja que Pizarro y sus tropas tenían en Cajamarca. También sabían de la guerra civil inca y contaban con un plan de batalla ya

probado: repetir la táctica seguida por Cortés en México de capturar al emperador y aliarse con sus enemigos, en una estrategia de divide-y-vencerás”. (tradução minha)

28 “En la segunda mitad del siglo XVI, el Estado colonial logró poner en marcha una producción minera en gran escala, productora sobre todo de plata, que así se

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A exploração intensiva deste metal levou ao crescimento de centros urbanos e de acampamento mineiros, com toda uma população a precisar de ser alimentada. Alguns colonos viram na satisfação dessas necessidades uma oportunidade de enriquecimento, mas para isso tinham de controlar dois fatores: a terra e os braços que a trabalhavam.

O fundamento legal para a apropriação das haciendas foi a Bula Inter Coeteris (AROCA MEDINA, 2011, p.181), com a qual o Papa Alexandre VI oficializou o tratado de Tordesilhas em 1493 e que se aplicou na América espanhola e portuguesa. A virtual impossibilidade do monarca usufruir directamente desse direito, levou à cedência do usufruto aos colonos,

através das chamadas ‘gracias’ ou ‘mercedes’ que eram títulos precários que o rei podia revogar (…), mas que na prática revogou em pouquíssimos casos. Consequentemente, esse direito e usufruto que exerciam os conquistadores espanhóis foi na realidade um direito de propriedade que, inclusive, se tornou objeto de sucessão testamentária. Com a terra vinham também os indígenas que aí viviam e que, na prática, se transformavam em servos (pp.181-182).

Esta apropriação era feita através da instituição dos cabildos, uma espécie de município, controlada pelos colonos, responsável pela distribuição de mercedes agrícolas e de pastoreio no território sob sua jurisdição (KLARÉN 2015, p. 74). Além de perderem a terra por esta via, os nativos ficavam obrigados a prestar tributos em géneros e dias de trabalho, através da instituição da encomienda:

Esta instituição tipicamente espanhola, implicava a administração de um grande número de índios que o rei concedia aos conquistadores como recompensa pelos serviços prestados na conquista e na colonização do novo mundo. Os encomenderos podiam receber tributos na forma de bens ou de trabalho em nome do rei29 (Klarén, 2015, p. 68).

Segundo Natan Wachtel (2017), os encomenderos aproveitavam também este privilégio para usurpar as terras dos índios, pois a encomienda dava-lhes o direito a cobrar um tributo normalmente usado para despojar os nativos (p.100).

Esta situação prestava-se a imensos abusos, que a coroa procurou, de alguma forma, controlar e mitigar. Graças ao registo que ficou desse controlo, hoje sabemos as condições de vida dos índios nas haciendas. Em 1583 o corregedor Diego Muñez Ternero fez uma visita ao vale de Huaura, na costa central, falando directamente com os nativos, submetidos com mão de ferro pelo encomendero local:

Os índios descrevem um quadro sinistro. Trabalham nas terras do encomendero inclusive aos domingos e dias festivos (…). Um dos interrogados, Juan Tanta, conta como lhe ataram uma corda ao

29 “Esta institución singularmente española, implicaba la administración de un gran número de indios que el rey concedía a los conquistadores como recompensa por

los servicios prestados en la conquista y colonización del Nuevo Mundo. Los encomenderos podían recibir tributo en forma de bienes o trabajo en nombre del rey” (tradução minha)

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pescoço para o açoitarem publicamente. Trata-se portanto dum trabalho forçado, em todo o sentido da palavra. Quase todos os índios repetem que o cumprem ‘contra a sua vontade’, submetidos pela violência30 (pp.124-125)

Wachtel conclui formarem assim os índios uma mão-de-obra submetida a trabalho forçado, irremediavelmente presa à grande propriedade do encomendero, constituída à custa de terrenos anteriormente seus (p.127). Esta perspectiva leva Peter Kláren (2015) a caraterizar o período seguinte à conquista como um tipo de feudalismo, proporcionando o exercício de uma soberania de facto do encomendero sobre a população nativa (p. 73). Segundo Marcelo Carmagnani (2015), esta situação foi comum a toda a América Latina e resultou do recuo demográfico verificado depois da chegada das doenças epidémicas europeias e da imposição de novos paradigmas económicos. A população asteca baixou de 25,3 a 6,3 milhões entre 1518 e 1548 e, em 1622, era apenas composta por um milhão. No Império Inca esta quebra terá sido de 9 a 1,3 milhões entre 1520 e 1570, baixando depois até aos 600.000 (p.61). Referindo-se a toda a américa ibérica do século XVII, Carmagnani acrescenta:

A impressionante abundancia de recursos naturais representa uma vantagem e uma desvantagem na organização produtiva, já que a carência de mão-de-obra leva os proprietários a introduzir formas de trabalho servil baseadas na coacção, o que impede a mobilidade dos trabalhadores e reduz o custo do trabalho, dando origem a um regime paternalista que dissimula entre os trabalhadores a dureza da opressão senhorial31 (p.67)

Entre finais do século XVI e inícios do XVII, Madrid faz um esforço de reorganização dos territórios americanos, destinado a garantir um controlo negociado, tanto com nativos como com colonos. Esta estratégia está patente, por exemplo, na profusão de municípios criados neste período (pp. 73-77). O Peru seguiu essa tendência geral: com o governo do Vice Rei Francisco Toledo (1569-1581), a coroa organizou-se, procurando paulatinamente acabar com os poderes privados. O direito dos encomenderos de cobrar tributos e dispor do trabalho dos nativos foi abolido, criando-se em alternativa uma burocracia local de corregedores, dependentes de Lima, que desprivatizaram as funções públicas (KLARÉN, 2015).

Esta mudança, porém, não significou uma melhoria na situação dos índios, nem esse era o objectivo de Toledo. Realmente interessava à coroa intensificar a exploração das minas de prata, numa tentativa de cobrir o brutal gasto do sonho imperial europeu de Carlos V, transformado num pesadelo financeiro. O aumento da

30 “Los indios describen un cuadro siniestro. Trabajan en las tierras del encomendero incluso los domingos y días de fiesta (…). Uno de los testigos, Juan Tanta,

cuenta como le ataron una cuerda al cuello y lo arrastraron hasta la plaza para azotarlo públicamente. Se trata pues de un trabajo forzado, en todo el sentido de la palabra. Caso todos los índios repitan que lo cumplen ‘contra su voluntad’, sometidos por la violencia” (Tradução minha)

31 “La impresionante abundancia de recursos naturales representa una ventaja en la organización productiva, ya que la carencia de mano de obra lleva a los

propietarios a introducir formas de trabajo servil basadas en la coacción, lo que impide la movilidad de los trabajadores y reduce el coste del trabajo, dando origen a un régimen paternalista que disimula entre los trabajadores la dureza de la opresión señorial”. (Tradução minha)

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produção mineira implicava grandes quantidades de energia humana e a única forma de a conseguir foi retirando-a aos encomenderos, passando-a directamente para a coroa.

Toledo decretou o reassentamento e concentração dos índios desde as suas aldeias nucleares e dispersas para reducciones, ou povoados maiores. O objectivo do reassentamento massivo e forçoso era estabelecer o controlo estatal direto e facilitar a cristianização da população nativa, ao mesmo tempo que melhorar a cobrança do imposto e a utilização de trabalhadores32 (p. 90).

Com a população nativa realocada em centros facilmente controlados, o vice-rei instituiu em seguida um trabalho rotativo forçado nas minas de prata do Peru e do Alto Peru (Bolívia). Além disso, esta mão-de-obra era também utilizada em diversos outras tarefas, incluindo nas haciendas e em serviços de interesse público (pp. 92-93).

A má localização das reducciones, o domínio a que aí estavam sujeitos e as epidemias resultantes da concentração humana, levaram muitos nativos a fugir mal o controlo do vice-reinado abrandou. Não tendo já para onde ir, muitos procuraram instalar-se nas haciendas, onde passaram a fazer parte da força laboral na condição de yanaconas, recebendo um salário, ou uma pequena parcela de terra que podiam cultivar em troca de prestarem trabalho ao senhor (p 112).

As condições vividas pelos camponeses nas fazendas e os abusos dos haciendados sobre as comunidades nativas, provocaram um desgaste social e motivariam levantamentos e revoltas no período colonial, a mais importante das quais ocorreu 40 anos antes da independência, entre novembro de 1780 e maio de 1781, tendo sido conduzida por José Gabriel Condorcanqui, o famoso Tupac Amaru II.

A grande rebelião de Tupac Amaru II custou mais de 100.000 vidas numa população de 1,2 milhões de pessoas, quase 10% do total, e durante um século ou mais deixou na consciência popular peruana um legado traumático nas relações raciais andinas. De facto, abriu-se uma enorme ferida entre o Peru indígena e o hispânico que ainda não fechou depois de mais de duzentos anos. Ao mesmo tempo, a Grande Rebelião uniu crioulos e espanhóis numa causa comum contra a ameaça que as massas indígenas representavam para as suas posições privilegiadas no topo da hierarquia andina33 (KLRÉN, 2004, p.159).

Em conclusão, sem qualquer dúvida os grandes perdedores do período colonial foram os nativos. As sociedades andinas eram profundamente agrárias e regiam-se por normas de reciprocidade e

32 “El objetivo del reasentamiento masivo y forzoso, era establecer el control estatal directo y facilitar la cristianización de la población nativa, al mismo tiempo que

mejorar el cobro del tributo y la asignación de trabajadores” (tradução minha)

33 “la Gran Rebelión de Tupac Amaru II costó más de cien mil vidas de una población total de 1,2 millones de personas, casi el diez por ciento de la población, y

durante un siglo o más dejó en la conciencia popular un legado traumático en las relaciones sociales andinas. De hecho, ella abrió una enorme brecha entre el Perú indígena y el hispano que aún no ha cerrado después de más de doscientos años después. Al mismo tiempo, la Gran Rebelión unió a criollos y españoles en una causa común contra la amenaza que las masas indígenas planteaban a sus posiciones privilegiadas en la cima de la jerarquía andina” (Tradução mina)

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complementaridades que as mantinham em equilibro social e natural (MURRA, 1975). A chegada dos conquistadores trouxe consigo a usurpação das terras ancestrais e os nativos viram-se transformados em servos dos novos proprietários, sujeitos a tributos laborais e em espécie. Quando acontece a independência, o mundo rural peruano vivia sob este modelo, situação que não parece ter mudado quando o novel país soltou as amarras de Espanha.